O meu apreço pela diversidade faz-me respeitar todas as crenças religiosas, embora com elas não tenha que concordar. Quando vivi fora do Brasil, cheguei mesmo a dividir residência com budistas e hindus, em quem, aliás, sob certos aspectos, vi bem mais tolerância e menos arrogância do que em determinados segmentos da religiosidade ocidental. Pois bem, analisando-se os últimos acontecimentos envolvendo algumas igrejas no Brasil, é, no mínimo, de se lamentar. Intolerância e discriminação têm dado o mote. E, de par com isso, a transformação da religiosidade num grande comércio. Líderes de igrejas já estão sendo apontados até por revistas estrangerias como pertencentes a listas de milionários e bilionários. "Milagres" são vendidos 24 horas, já não mais em templos, mas em canais televisivos. Onde vamos parar? Está na hora dos 'mercadores religiosos' serem chamados à responsabilidade. Em 2009, uma reportagem conduzida por Hélio Schawartsman, para a Folha de São Paulo (edição do dia 29/11), já indicava o que estava por vir. Passados quatros anos, hoje estamos vendo bem o ponto em que a situação chegou. Abaixo, vale a pena reler o texto de Schawartsman.
Bastam R$ 418 para criar igreja e se livrar de
imposto
Após fundar igreja, reportagem da
Folha abre conta bancária e faz aplicação isenta de IR
Além de vantagens fiscais, ministros religiosos têm direito a prisão especial e estão dispensados de prestar serviço militar
HÉLIO SCHWARTSMAN
Além de vantagens fiscais, ministros religiosos têm direito a prisão especial e estão dispensados de prestar serviço militar
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Bastaram dois dias úteis e R$ 218,42 em despesas de cartório para a reportagem
da Folha criar uma igreja. Com mais três dias e R$ 200, a Igreja Heliocêntrica
do Sagrado EvangÉlio já tinha CNPJ, o que permitiu aos seus três fundadores
abrir uma conta bancária e realizar aplicações financeiras livres de IR
(Imposto de Renda) e de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras).
Seria um crime perfeito, se a prática não estivesse totalmente dentro da lei.
Não existem requisitos teológicos ou doutrinários para a constituição de uma
igreja. Tampouco se exige um número mínimo de fiéis.
Basta o registro de sua assembleia de fundação e estatuto social num cartório.
Melhor ainda, o Estado está legalmente impedido de negar-lhes fé. Como reza o
parágrafo 1º do artigo 44 do Código Civil: "São livres a criação, a
organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações
religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro
dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento".
A autonomia de cada instituição religiosa é quase total. Desde que seus
estatutos não afrontem nenhuma lei do país e sigam uma estrutura jurídica
assemelhada à das associações civis, os templos podem tudo.
A Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, por exemplo, pode sem muito
exagero ser descrita como uma monarquia absolutista e hereditária. Nesse
quesito, ela segue os passos da Igreja da Inglaterra (anglicana), que tem como
"supremo governador" o monarca britânico.
Livrar-se de tributos é a principal vantagem material da abertura de uma
igreja. Nos termos do artigo 150, VI, b da Constituição, templos de qualquer
culto são imunes a impostos que incidam sobre o patrimônio, a renda e os
serviços, relacionados com suas finalidades essenciais.
Isso significa que, além de IR e IOF, igrejas estão dispensadas de IPTU
(imóveis urbanos), ITR (imóveis rurais), IPVA (veículos), ISS (serviços), para
citar só alguns dos vários "Is" que assombram a vida dos
contribuintes brasileiros. A única condição é que todos os bens estejam em nome
do templo e que se relacionem a suas finalidades essenciais -as quais são
definidas pela própria igreja.
O caso do ICMS é um pouco mais polêmico. A doutrina e a jurisprudência não são
uniformes. Em alguns Estados, como São Paulo, o imposto é cobrado, mas em
outros, como o Rio de Janeiro e Paraná, por força de legislação estadual,
igrejas não recolhem o ICMS nem sobre as contas de água, luz, gás e telefone
que pagam.
Certos autores entendem que associações religiosas, por analogia com o disposto
para outras associações civis, estão legalmente proibidas de distribuir patrimônio
ou renda a seus controladores. Mas nada impede -aliás é quase uma praxe- que
seus diretores sejam também sacerdotes, hipótese em que podem perfeitamente
receber proventos.
A questão fiscal não é o único benefício da empreitada. Cada culto determina livremente
quem são seus ministros religiosos e, uma vez escolhidos, eles gozam de
privilégios como a isenção do serviço militar obrigatório (CF, art. 143) e o
direito a prisão especial (Código de Processo Penal, art. 295).
Na dúvida, os filhos varões dos sócios-fundadores da Igreja Heliocêntrica foram
sagrados minissacerdotes. Neste caso, o modelo inspirador foi o budismo
tibetano, cujos Dalai Lamas (a reencarnação do lama anterior) são escolhidos
ainda na infância.
Voltando ao Brasil, há até o caso de cultos religiosos que obtiveram licença
especial do poder público para consumir ritualisticamente drogas alucinógenas.
Desde os anos 80, integrantes de igrejas como Santo Daime, União do Vegetal, A
Barquinha estão autorizados pelo Ministério da Justiça a cultivar, transportar
e ingerir os vegetais utilizados na preparação do chá ayahuasca -proibido para
quem não é membro de uma dessas igrejas.
Se a Lei Geral das Religiões, já aprovada pela Câmara e aguardando votação no
Senado, se materializar, mais vantagens serão incorporadas. Templos de qualquer
culto poderão, por exemplo, reivindicar apoio do Estado na preservação de seus
bens, que gozarão de proteção especial contra desapropriação e penhora.
O diploma também reforça disposições relativas ao ensino religioso. Em
princípio, a Igreja Heliocêntrica poderá exigir igualdade de representação, ou
seja, que o Estado contrate professores de heliocentrismo.
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Colaboraram os bispos CLAUDIO ÂNGELO, editor de Ciência, e RAFAEL
GARCIA, da Reportagem Local
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