Analista social consagrado, Neil Postman é Professor Titular do Departamento de Comunicação da Universidade de Nova York. O livro que aqui aludo é de já algum tempo, mas teve as suas teses centrais reafirmadas na reimpressão da tradução brasileira há não muito tempo. Para Postman, as crianças estão sendo levadas a se tornarem adultos precoces ou pseudo-adultos. Assinala que os 'mistérios do sexo' foram sendo desvelados pala mídia e, com as informações disponíveis e fora de controle dos pais, a 'adultificação' das crianças tomou um impulso inesperado, de onde decorre um fenômeno correlato: o aumento das estatísticas de gravidez na adolescência, fato este empiricamente verificado em todos os países ocidentais. E a escola? Postman responde: continua existindo, mas perde espaço. Pelo que representa e suas implicações, o livro O desaparecimento da infância (Rio de Janeiro: Editora Graphia) merece a atenção não só de cientistas da educação, pedagogos, interessados na temática educativa, etc, mas também dos pais. Abaixo, a reprodução de uma resenha do mesmo, de responsabilidade de Ceci Vilar Noronha (socióloga e Doutora em Saúde Pública), publicada na Revista Ciência e Saúde Coletiva, vol 12, nº 05.
Por Ceci Vilar Noronha
O crítico social Neil Postman, professor titular do Departamento
de Comunicação, da Universidade de Nova York, escreveu vários livros
focalizando as relações entre os meios de comunicação e a educação. A obra que
vamos comentar foi lançada nos Estados Unidos, em 1982, e reeditada em 1994. No
Brasil, a publicação teve o mesmo destino, após ser lançada em 1999, foi
reimpressa em 2005. Concluímos que esta obra é um sucesso editorial porque nos
instiga a pensar nos deslocamentos que a idéia de infância vem passando e, ao
mesmo tempo, nos paralelismos que o autor estabelece entre tecnologia de
comunicação, consciência, valores culturais e sentimentos. Composto em duas
partes, a primeira trata da construção social da infância, retomando a linha
dos estudos sobre os costumes, uma senda traçada por Norbert Elias, Ariès
Philippe e outros, e a segunda expõe a tese do desaparecimento da infância. No
prefácio à nova edição, o autor reafirma a mesma tese e se declara impotente em
apontar saídas para interromper a tendência por ele identificada. Sendo
reconhecida a veracidade do prognóstico, vamos aos seus argumentos. Neste
sentido, o termo desaparecimento deve ser colocado entre aspas porque expressa
que as crianças estão se tornando seres adultos precoces ou pseudo-adultos. O
fio condutor da argumentação recupera as semelhanças e distinções entre
crianças e adultos no que tange ao vestuário, a linguagem, as atitudes e os
desejos, em diferentes contextos históricos.
No esforço de demonstração da sua
tese, o autor nos dá exemplos da transformação da infância na
contemporaneidade, entre os quais, o início aos 12 anos da carreira de modelo.
Ocupação ligada indissoluvelmente à venda de mercadorias, ao exercer esse papel,
a criança torna-se um símbolo erótico, tal como as mulheres adultas que se
dedicam à mesma atividade. No entanto, esse limite etário pode ser menor, como
no caso da modelo estadunidense JonBenet Ramsey, assassinada, no auge da fama,
aos seis anos. Outro exemplo é o aumento dos crimes cometidos por adolescentes
menores de 15 anos, cuja punição se faz com penas idênticas às que são
atribuídas aos adultos. Ainda podemos acrescentar os atos violentos ocorridos
com freqüência no ambiente escolar, seja nos países ricos ou pobres do
hemisfério ocidental. Os jogos infantis também mudaram substancialmente,
tornando-se mais semelhantes ao gosto dos adultos. Com a habilidade de quem
articula vários fios dispersos e de natureza distinta para compor um único
tecido, o autor enfatiza a queda das barreiras ou dos limites entre o mundo dos
adultos e das crianças.
O percurso argumentativo inclui a
recuperação dos sentidos atribuídos à infância nos grandes períodos históricos.
Deste modo, o lugar da criança na sociedade da Antiguidade clássica pouco se
sabe, mas assinala-se que entre os gregos e os romanos se desenvolveu uma
concepção de educação. Nesta época, surgiram interditos na convivência entre
adultos e crianças, ou seja, restrições do que falar e como proceder na presença
das crianças, indicando a existência do sentimento de vergonha. Este
descortinar de uma atenção diferenciada dos adultos para com os imaturos, no
entanto, se perdeu durante a Idade Média. E, após as invasões bárbaras, houve
também uma retração do hábito da leitura, dos propósitos da educação e mudanças
de postura dos adultos em relação às crianças.
Deste modo, no período medieval,
as crianças eram adultos pequenos; estes só não estavam prontos para a guerra e
para manter relações sexuais. Predominava no ambiente doméstico uma intimidade
considerada hoje como promíscua entre os adultos e entre eles e as crianças.
Neste ambiente, era praticado sem censura o hábito dos adultos brincarem com os
órgãos genitais das crianças. A mudança deste hábito só veio a ocorrer na
Modernidade por força do avanço do processo civilizatório, que compreende o
exercício do autocontrole da pulsão sexual por parte dos adultos e atitudes
discretas em relação ao sexo na presença dos jovens.
Ao longo da Idade Média, o autor
assinala que só a partir do século XVI começaram a ser impressos livros
relativos à criação de filhos e orientações dirigidas às mães. E vale lembrar
as altas taxas de mortalidade infantil do período em que se combinava
analfabetismo e falta de um conceito de educação. O primeiro livro pediátrico
em língua inglesa foi publicado em 1544, antecedido por publicação similar na
Itália em 1498. Tais acontecimentos expressam a instituição da idéia de que as
crianças são seres frágeis que necessitam de proteção por parte dos adultos. O
autor assegura que a construção social da infância levou aproximadamente
duzentos anos para se firmar como um valor socialmente compartilhado.
Entrelaçada com estas mudanças, o
autor nos trás uma reflexão sobre os limites temporais da infância: como
estabelecer os limites de passagem do mundo infantil ao adulto? Para Rousseau,
um filósofo dedicado ao tema da educação, o desenvolvimento do hábito da
leitura, que se consegue por volta dos sete anos, significa o fim da infância e
o ingresso na idade adulta. Para a Igreja Católica, o marco dos sete anos vale
como a idade da razão, o saber discernir entre o certo e errado, ou a virtude e
o pecado. O Estado brasileiro também utilizou a idade dos sete anos para o
ingresso no sistema educacional público.
Para além da idade, o que mais
diferencia a criança do adulto? O conhecimento de certas facetas trágicas da
vida como as guerras faz parte da experiência dos adultos, mas não do universo
infantil. Aí cabe fazer um lembrete sobre a participação dos meninos soldados
em guerras civis nos países africanos. Seria esta uma distinção válida apenas
para os países ricos e industrializados?
Quanto a isso, o autor reafirma
que os significados da infância, longe de expressar apenas uma fase biológica
do desenvolvimento humano, são moldados na esfera da cultura. A infância com
suas distinções face à vida adulta é um produto cultural, histórico e passível
de transformações radicais. Nesta linha de argumentação, a base material para o
surgimento da infância e também para o seu declínio está articulada às mudanças
nas tecnologias de comunicação, uma vez que esses meios tecnológicos
disponíveis passam a modificar a nossa própria estrutura de interesses, a
esfera simbólica e o contexto no qual pensamos. Ou seja, à medida que nós
consumimos livros, jornais, rádio e televisão (a Internet não entrou nas
referências do autor), estamos nos adequando às possibilidades dadas pela
comunicação e, simultaneamente, transformando a nossa consciência.
No início da Idade Moderna, a
tipografia auxiliou na expansão do conhecimento e instituiu o hábito individual
da leitura e esse fato rompeu com a longa tradição de transmissão oral do
saber. Essa mudança veio a fundar uma outra etapa no desenvolvimento infantil,
significando que após o domínio da linguagem oral, a criança tinha que
desenvolver as habilidades para dominar a escrita. Só desta forma ela poderia
ter acesso às informações que os adultos dominavam. Neste particular, o autor
reconhece que a infância é análoga ao aprendizado da linguagem, conta com uma
base biológica, mas não só. Ou seja, aprender uma língua depende de habilidades
para partilhar de um universo simbólico.
Como sabemos, a introdução da
linguagem escrita veio a demandar longos anos de educação formal das crianças,
implicando isso no compromisso dos seus pais. Para o autor, a nova concepção de
infância também instituiu a família moderna, com preocupações de apoiar seus
filhos por longos anos, sustentá-los e educá-los. Aprender os códigos da
leitura e da escrita exige tempo e investimentos afetivos e financeiros.
Contudo, mudanças ocorreram na família em todo o século XX, assinalando-se uma
crise da família conjugal que passa por dificuldades, inclusive de ordem
financeira, resultando em mais horas de trabalho dos pais e na falta de
supervisão sobre a prole.
Por conseguinte, uma nova
perspectiva de relações entre adultos e crianças começou a se delinear com o
alargamento dos meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão, cuja
linguagem é pictórica, facilmente compreensível, dispensando qualquer
aprendizado específico. E são os efeitos não previstos das novas formas
comunicacionais que estão fazendo ruir as barreiras entre adultos e crianças. A
escola continua existindo, mas perde espaço por utilizar uma linguagem difícil
e tradicional. Os jovens, por vezes, se sentem "perdendo tempo" ao
freqüentar a escola, ainda que ela demande poucas horas diárias, no nosso país.
Sobretudo, os mistérios em torno
do sexo foram sendo desvendados pela televisão e, com as informações acessíveis
e fora do controle dos pais, a "adultificação" das crianças tomou
impulso acelerado. Um fenômeno correlato ao desvendamento precoce do sexo é o
aumento das estatísticas sobre gravidez na adolescência, o que vem ocorrendo na
maior parte dos países ocidentais.
Por fim, o autor conclui que há
um duplo movimento em que as crianças tendem a se tornar adultos precocemente e
os adultos tornarem-se mais frágeis em sua estrutura psicológica e moral,
infantilizando-se. Os adultos-crianças podem ser vistos em programas reality show, tão
apreciados em nossa sociedade e copiados de estações de televisão estrangeiras.
Do mesmo modo, o noticiário "sério" da tevê contribui para abalar na
criança a crença na racionalidade dos adultos e faz com que ela coloque em
suspeição se conseguirá, ao crescer, ter controle sobre a sua própria
agressividade.
Evidentemente que a velocidade
dessas tendências não será a mesma em todas as sociedades ou grupos sociais,
mas estão colocadas como desafios atuais. Resta-nos indagar: a quem interessa
salvar a infância?
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