quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A análise: entender o Charlie Hebdo e o atentado de Paris

Muitas abordagens precipitadas sobre o atentado de Paris, já para não dizer que são perpassadas por uma profunda ignorância do encadeamento dos fatos, do que está em causa. Nas, digamos, "incumbências de férias", não tenho como levar a efeito uma focagem ampliada a respeito da questão. Por outro lado, os fatos também ainda estão "quentes", o que requer alguma cautela na análise. Contudo, já é possível divisar duas tendências: uma, a dominante, a bradar contra o islamismo, a defender uma suposta liberdade de expressão que não admite regulação (e assim, portanto, paradoxalmente, tudo se pode dizer, até reproduzir preconceitos e discriminações); a outra tendência, minoritária e fazendo ginástica com as palavras, a realçar os excessos do Charlie Hebdo, ao atentar contra os símbolos sagrados de uma religião (o islã), mas, ao mesmo tempo, parece, desconhecendo a linha editoral do jornal e o seu histórico. Diante dessas duas tendências, estou mais para uma terceira perspectiva de análise do ocorrido. Nem se pode desconhecer o histórico do Charlie Hebdo e nem tampouco se abonar o ufanismo da primeira tendência, que, além de determinadas incongruências, termina por alimentar a islamofobia. Aí abaixo um texto do sociólogo João Alexandre Peschanski, que, de forma preliminar, procura desenvolver uma abordagem menos apressada da questão. 


Charlie Hebdo, cuja redação foi alvo de um atentado terrorista em 7 de janeiro de 2015, é um veículo de comunicação de extrema-esquerda. A origem política e artística dos principais nomes do veículo remonta aos anos 1960 na França. É a essa geração original que pertenciam Cabu e Wolinski, que estão entre as doze vítimas confirmadas até o momento em que escrevo este texto, com vários feridos ainda em estado grave. A marca inicial soixante-huitarde – dos participantes dos protestos de 1968 – está impregnada em toda a trajetória do semanário satírico.
O diretor de redação do Charlie Hebdo, Charb, também assassinado no ataque, era parte de uma nova geração de artistas e jornalistas, diretamente herdeira do grupo original. Três décadas mais jovem que Cabu e Wolinski, era ele quem orientava a linha política e editorial do semanário desde 2009. Segundo o jornal francês Libération, foi ele o principal alvo dos terroristas.
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Charb é especialmente conhecido por seu engajamento com bandeiras progressistas na França. Atuou diretamente em campanhas do Partido Comunista Francês e da Frente de Esquerda. Preparou o material de divulgação de mobilizações contra o racismo e a guerra. Uma de suas tiras mais conhecidas, Maurice et Patapon, reúne um cão (Maurice) anarquista, bissexual, pacifista e extrovertido, e um gato (Patapon) fascista, assexuado, violento e perverso. Essa obra, de traços simples, se preocupa principalmente em revelar as tensões muitas vezes escatológicas entre as personagens – o cão como aquilo que sonhamos ser e o gato como nos pressionam a ser, diz Charb em entrevista. O nome da tira remete a um dos símbolos do colaboracionismo francês com o nazismo, Maurice Papon, responsável direto pela morte de milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. No trabalho de Charb, o alvo era muitas vezes a extrema-direita crescente na Europa, especialmente o Front National (Frente Nacional), da família Le Pen. O ex-presidente Nicolas Sarkozy foi também objeto frequente dos desenhos de Charb, a quem dedicou vários livros de ilustrações.
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No Brasil, o trabalho de Charb ficou especialmente conhecido pelas ilustrações que acompanham o livro Marx, manual de instruções, de Daniel Bensaïd, lançado em 2013. Aí, apresenta caricaturas sobre o mundo do trabalho, a vida de Marx, os dilemas da esquerda. Há uma charge especialmente marcante, um “aviso” intitulado “Nem todos os barbudos são Marx”, onde retrata o encontro de Marx com um islâmico radical. A mensagem que fica é: não basta a esquerda revolucionária e os extremistas religiosos terem inimigos em comum para estarem na mesma luta. Aliás, Charb não poupava sátiras a todas as religiões.
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A partir de 2006, quando Charlie Hebdo ficou mundialmente conhecido por republicar charges cômicas retratando Maomé e ser alvo de críticas e ataques de grupos islâmicos fundamentalistas, Charb adotou como tema central de seu trabalho o Islã. Anticlerical, dizia: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo” – e a guerra e o capitalismo, poderia sem dúvida ter acrescentado. Quando Charb assumiu a direção do semanário, a satirização do Islã tornou-se tão importante na linha editorial quanto a ridicularização do fascismo e das perversões do capitalismo, rendendo várias primeiras-páginas do Charlie Hebdo e ataques contra a redação, incluindo um atentado contra sua sede em 2011.
Charb, na frente do Charlie Hebdo, após o atentado que explodiu a sede do semanário na manhã 2 de novembro de 2011. Em suas mãos, a edição programada para o dia de 3 de novembro, que motivou o ataque
A linha sistemática de sátira do Islã fez com que Charlie Hebdo fosse alvo de críticas por parte da esquerda francesa. Por um lado, as críticas eram justas, pois na tentativa de satirizar o Islã pela esquerda muitas charges acabaram deslizando para abjeto racismo e islamofobia, servindo principalmente de material aos grupos próximos à família Le Pen e sua campanha xenófoba na França. Vale dizer que o mau gosto e os excessos também eram e são cometidos no semanário contra judeus, católicos etc. Por outro lado, havia e há ainda certa perplexidade na esquerda francesa sobre sua posição política em torno do crescente movimento islâmico, o uso do véu em escolas e por militantes, o árabe como idioma nacional. Parte da esquerda combativa francesa via-se diante do problema de não saber “o que fazer” com o Alcorão. Nesse contexto, o semanário satírico dirigido por Charb marcava uma posição firme, a mesma que tradicionalmente adotara contra instituições conservadoras: a chacota inveterada, atravessando muitas vezes o limite do bom gosto. “Não tenho a impressão de assassinar alguém com nossas caricaturas”, salientava Charb em entrevista.
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A sátira ao Islã nas páginas do Charlie Hebdo dava-se a partir de uma leitura progressista, de rejeição ao conservadorismo clerical, diretamente alinhada a posições tradicionais do semanal contra o sionismo, o fascismo, o imperialismo e o capitalismo. Entender o atentado de 7 de janeiro, um dos mais graves já ocorridos na França, apenas como um ataque à liberdade de expressão é uma meia verdade e envolve um grande risco político de interpretação. A liberdade de expressão de Charb, Cabu, Wolinski e a equipe do Charlie Hebdo era um meio para um posicionamento político radicalmente democrático e profundamente progressista, na tradição da extrema-esquerda francesa. O risco de interpretar o atentado como meia verdade é alimentar ainda mais um dos principais oponentes do semanal satírico, o fascismo europeu, e fomentar a polarização entre os extremistas de direita e do Islã. Não indicar os assassinatos de Paris como um atentado à extrema-esquerda – e não contra a liberdade no abstrato da sociedade ocidental – abre espaço para fortalecer aquilo que os jornalistas do Charlie Hebdo mais repudiavam: a extrema-direita. E, como dizia Charb, “a Frente Nacional e o fascismo islâmico são da mesma seara e contra eles não economizamos nossa arte”.
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quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O atentado de Paris e as intolerâncias religiosas



Chocante é o mínimo que se pode dizer do atentado levado a cabo em Paris contra o jornal semanal Charlie Hebdo, vitimando doze pessoas. Em horas assim, cabe pensar no que os fanatismos e intolerâncias religiosas são capazes de fazer. No plural mesmo, intolerâncias, porque a intolerância religiosa não existe apenas no islamismo. Está presente em outras diversas religiões, como uma retrospectiva histórica de imediato pode mostrar. Aliás, atualmente, no Brasil, temos presenciado um misto entre comércio da fé e intolerância religiosa, invadindo canais televisivos, gritando em templos, e condenando ao "quinto dos infernos" todas as pessoas que não acreditam no que os seus "profetas" proclamam. Não é mesmo algo para ser levado a sério. Mas esses "profetas" não se contêm, e passam dia e noite a prescrever juízos morais a respeito de como as pessoas devem se comportar, o que devem fazer e até o que devem pensar. Espaços públicos, que devem ser eminentemente laicos (pois são mantidos com os recursos oriundos dos impostos de quem tem e não tem crença religiosa), vão sendo colonizados por religiões específicas. Ora bem, caro leitor, desconfie dos fanatismos, das intolerâncias, das pessoas, enfim, que querem impor, a qualquer custo, a sua crença religiosa.  E não respeitam quem pensa diferente, por ter outra religião ou por não ter nenhuma. A propósito das questões envolvidas neste debate, é apropriado voltar a um texto de José Saramago, o qual reproduzo aí abaixo.  


 O Fator Deus 
Por José Saramago 

Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. 
Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um 
negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. 
Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.
As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.
E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.
Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.
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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Onde o tempo e o vento te levam: curvas do presente





I'll miss the comfort of my mother and the weight of the world
I'll miss my sister, miss my father
miss my dog and my home
Yeah I'll miss the boredom and the freedom
And the time spent alone
But there is really nothing, nothing we can do

(Time to pretend – MGMT)

Por Leont Etiel

Nos hesitantes passos em direção ao incerto, a transmutação de uma operação alquímica que perpassa as enigmáticas sombras refletidas no espelho do pensamento. O que será, o que virá, o que há de ser. Imagina-se o desconhecido, quase conhecendo-o, mas a inadmissão de que quase se conhece faz parte de um jogo de cartas ocultas de um baralho traçado pela dúvida.
Por outras sendas, Camus expressou a questão em outros termos: se a vida vale a pena ser vivida. E aí, diante de novas situações, a interrogação: vale a pena? Aos existencialistas, não caberá perder muito tempo com elucubrações dessa natureza. Mas se, adotando-se essa perspectiva, as dúvidas persistem, tu deves então procurar limpar os pulmões e o cérebro. Pegues o carro e deambules pelo noturno da cidade. Pares na praia, observes as estrelas e fiques a imaginar o longo caminho que levaram as pequenas moléculas de hidrogênio, ascendendo a escala da complexidade, até, por fim, atingir o nível de organização de uma estrutura igual a tua...  e tu, difícil acreditar, convenhamos, ainda pensando se a vida vale a pena ser vivida?!
Como diria Angelus, o Novus, abisma-te em nostalgia. Imagines a hipótese da teoria do Universo fechado, com milhares e milhares de bilhões de galáxias divergindo mutuamente até um certo ponto crítico, de onde retrocedem de novo umas sobre as outras, espatifando-se finalmente numa imensa bola de fogo – que, por sua vez, iniciará um outro ciclo de expansão do tempo e do espaço. Irmana-te, pois, com o Cosmos e respires deste êxtase panteísta que já era o de Francisco de Assis, o santo, ou de Giordano Bruno, o mártir pagão. E sejas existencialista. Bebas o cálice da vida (nas mais diversas tonalidades, de brancos a tintos) até o último trago.
Ainda persistem dúvidas? Sentes falta de uma “certeza absoluta”, de um dogma, de uma “sombra metafísica”, para conferir sentido à vida? Assim não, mil vezes não. Diferente do que se pode inferir de Emil Cioran, não é necessária uma ilusão dogmática para conferir intensidade à vida, sem a qual ela, a vida, definharia numa espécie de anoerexia cética em decorrência do excesso de reflexão crítica.  
Digamos como, na verdade, as coisas são. A ideia de liberdade sempre “perseguiu” a humanidade, e, no fundo, a humanidade sempre a temeu na sua intensidade, e assim dela sempre procurou escapar, fugindo para abrigar-se em discursos onde a palavra liberdade é repisada apenas como retórica, para fins outros que não a sua vivência genuína e integral. Teme-se, por exemplo, assumir que a existência precede a essência, com todas as consequências que daí decorrem. Admita-se que os seres humanos precisam de regras para a (con)vivência em sociedade, e portanto abone-se a máxima da ética kantiana segundo a qual deve-se proceder sempre de tal modo que, em cada momento, tu possas desejar que a tua conduta se erija em lei universal. Trata-se de uma definição de um procedimento moral. Mas não se deve esquecer que uma definição não constitui ciência.
Isto posto, é de se dizer que o valor fundamental não é a “mumificação” do conjunto normativo que rege a vida social. O valor fundamental, numa sociedade laicizada e liberta de toda ‘metafísica finalista’, é a própria vida como irrupção desordenada e rebelde, criadora do seu próprio sentido. A vida que, enfim, se vive apenas uma vez em face da morte. O perecer. Crepúsculo dolorido a separar o que já não se é. Tudo será então terra, como escreveu Potiguar Matos, em ‘Ventos de Agosto’. A terra úmida ou seca, morna ou fria; resta a terra, escorrendo, terra que se mistura à terra, numa espécie de sinfonia eterna, que vem da origem dos tempos e se perde na noite da consumação das galáxias. Terra que, ao fim, serás tu.
O caminho então não há de ser outro. Ir onde o tempo e o vento te levam – às curvas do tempo presente, o tempo em que estás a viver. Porque o passado já passou e do futuro tu não tens notícias. Nas curvas dessa temporalidade de agora, hás de te deparar com momentos de alegria, de desânimo, de enternecimento e melancolia. Mas isto significará exatamente que estás a viver a vida em intensidade, experimentando todas as suas dimensões. Pois só assim são encontrados os momentos de felicidade que se abrigam nas sutilezas de uma química imemorial.









quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Românticos e revolucionários

Michael Löwy: para uma síntese dos intelectuais românticos, surrealistas e revolucionários 

Por Marcelo Ridenti 

Talvez não tenha havido um momento da história recente mais marcado pela convergência entre política, cultura, vida pública e privada que os anos 60 - não só na sociedade brasileira, sobretudo entre a intelectualidade.1 Para pensar essa convergência, usa-se aqui de um modo próprio o conceito de romantismo revolucionário, formulado por Michael Löwy e Robert Sayre (1995).
Eram anos de guerra fria entre os aliados dos Estados Unidos e os da União Soviética, mas surgiam esperanças de alternativas libertadoras no Terceiro Mundo, inclusive no Brasil, que vivia um processo acelerado de urbanização e modernização da sociedade. Naquele contexto, certos partidos e movimentos de esquerda, seus intelectuais e artistas, valorizavam a ação para mudar a História, para construir o homem novo, nos termos de Marx e Che Guevara. Mas o modelo para esse homem novo estava no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do "coração do Brasil", supostamente não contaminado pela modernidade urbana capitalista, o que permitiria uma alternativa de modernização que não implicasse a desumanização, o consumismo, o império do fetichismo da mercadoria e do dinheiro. São exemplos no âmbito das artes: o indígena exaltado no romance Quarup, de Antonio Callado (1967); a comunidade negra celebrada no filme Ganga Zumba, de Carlos Diegues (1963), e na peça Arena conta Zumbi, de Boal e Guarnieri (1965); os camponeses no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1963), etc. Em suma, buscava-se no passado uma cultura popular autêntica para construir uma nova nação, ao mesmo tempo moderna e dasalienada, no limite, socialista.
Eram versões de esquerda para as representações da mistura do branco, do negro e do índio na constituição da brasilidade, não mais no sentido de justificar a ordem social existente, mas de questioná-la. É a isso, em linhas gerais, que se pode chamar de romantismo revolucionário brasileiro do período, sem nenhuma conotação pejorativa. Recolocava-se o problema da identidade nacional e política do povo brasileiro, buscava-se a um tempo suas raízes e a ruptura com o subdesenvolvimento, numa espécie de desvio à esquerda do que se convencionou chamar ultimamente de Era Vargas, caracterizada pela aposta no desenvolvimento nacional, com base na intervenção do Estado.
Essa versão brasileira não se dissociava de traços do romantismo revolucionário da época em escala internacional: a liberação sexual, o desejo de renovação, a fusão entre vida pública e privada, a ânsia de viver o momento, a fruição da vida boêmia, a aposta na ação em detrimento da teoria, os padrões irregulares de trabalho e a relativa pobreza, típicas da juventude de esquerda na época, são características que marcaram os movimentos sociais nos anos 60 em todo o mundo, fazendo lembrar a velha tradição romântica.2

OS ANOS ROMÂNTICOS
O florescimento cultural e político internacional dos anos 60 ligava-se a uma série de condições materiais comuns a diversas sociedades, além das especificidades locais ¾ no caso brasileiro, em especial, as lutas pelasreformas de base no pré-1964 e contra a ditadura após essa data, que levaram alguns ao extremo da luta armada. Essas condições comuns estavam presentes especialmente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, mas eram compartilhadas também por países em desenvolvimento, como o Brasil: crescente urbanização, consolidação de modos de vida e cultura das metrópoles, aumento quantitativo das classes médias, acesso crescente ao ensino superior, peso significativo dos jovens na composição etária da população, incapacidade do poder constituído para representar sociedades que se renovavam, avanço tecnológico (por vezes ao alcance das pessoas comuns, que passaram a ter cada vez mais acesso, por exemplo, a eletrodomésticos como aparelhos de televisão, além de outros bens, caso da pílula anticoncepcional - o que possibilitaria mudanças consideráveis de comportamento), etc. Essas condições materiais não explicam por si sós as ondas românticas de rebeldia e revolução, apenas possibilitaram que frutificassem ações políticas e culturais inovadoras e diversificadas, aproximando a política da cultura e da vida cotidiana, buscando colocar a imaginação no poder.
Foram características dos movimentos libertários dos anos 60, particularmente de 1968, no mundo todo: inserção numa conjuntura internacional de prosperidade econômica; crise no sistema escolar; ascensão da ética da revolta e da revolução; busca do alargamento dos sistemas de participação política, cada vez mais desacreditados; simpatia pelas propostas revolucionárias alternativas ao marxismo soviético; recusa de guerras coloniais ou imperialistas; negação da sociedade de consumo; aproximação entre arte e política; uso de recursos de desobediência civil; ânsia de libertação pessoal das estruturas do sistema (capitalista ou comunista); mudanças comportamentais; vinculação estreita entre as lutas sociais amplas e os interesses imediatos das pessoas; aparecimento de aspectos precursores do pacifismo, da ecologia, da antipsiquiatria, do feminismo, de movimentos de homossexuais, de minorias étnicas e outros que viriam a se desenvolver nos anos seguintes.
O ensaio geral de socialização da cultura3 brasileira dos anos 60 construiu-se sobre coordenadas históricas específicas, que podem ser observadas nas sociedades que adentram definitivamente na modernidade urbana capitalista, conforme sugestão de Perry Anderson: a "intersecção de uma ordem dominante semi-aristocrática, uma economia capitalista semi-industrializada e um movimento operário semi-insurgente". Ou seja, o modernismo caracteriza-se historicamente:
- pela resistência ao academicismo nas artes, indissociável de aspectos pré-capitalistas na cultura e na política, em que as classes aristocráticas e latifundiárias dariam o tom;
- pela emergência de novas invenções industriais de impacto na vida cotidiana, geradora de esperanças libertárias no avanço tecnológico;
- e pela proximidade imaginativa da revolução social, fosse ela mais "genuína e radicalmente capitalista" ou socialista (Anderson, 1986:18-19).
Já foi argumentado em outro trabalho (Ridenti, 1993:76-81) que as coordenadas históricas do modernismo sugeridas por Anderson estavam presentes na sociedade brasileira, do final dos anos 50 até por volta de 1968: havia luta contra o poder remanescente das oligarquias rurais e suas manifestações políticas e culturais; um otimismo modernizador com o salto na industrialização a partir do governo Kubitschek; também um impulso revolucionário, alimentado por movimentos sociais e portador de ambigüidades nas propostas de revolução brasileira, democrático-burguesa (de libertação nacional), ou socialista, com diversas gradações intermediárias.
Os Anos Pragmáticos
Com a derrota das esquerdas brasileiras pela ditadura e os rumos dos eventos políticos internacionais, perdeu-se a proximidade imaginativa da revolução social, paralelamente à modernização conservadora da sociedade brasileira e à constatação de que o acesso a novas tecnologias não correspondeu às esperanças libertárias no progresso técnico em si. Então, ficou explícito que o modernismo temporão não bebia na fonte da eterna juventude; e o ensaio geral de socialização da cultura frustrou-se antes da realização da esperada revolução brasileira, que se realizou pelas avessas, sob a bota dos militares, que depois promoveriam a transição lenta, gradual e segura para a democracia, garantindo a continuidade do poder político e econômico das classes dominantes.
Paradoxal é que a nova ordem da ditadura - uma vez devidamente punidos com prisões, mortes, torturas e exílio os que ousaram se insurgir abertamente contra ela - soube dar lugar aos intelectuais e artistas de oposição. A partir dos anos 70, concomitantemente à censura e à repressão política, ficou evidente o esforço modernizador que a ditadura já vinha esboçando, desde a década de 60, nas áreas de comunicação e cultura, incentivando o desenvolvimento capitalista privado ou até atuando diretamente por intermédio do Estado.
As grandes redes de TV, em especial a Globo, surgiam com programação em âmbito nacional, estimuladas pela criação da Embratel, do Ministério das Comunicações e de outros investimentos governamentais em telecomunicações, que buscavam a integração e segurança do território brasileiro. Ganhavam vulto diversas instituições estatais de incremento à cultura, como a Embrafilme, o Instituto Nacional do Livro, o Serviço Nacional de Teatro, a Funarte e o Conselho Federal de Cultura. À sombra de apoios do Estado, floresceu também a iniciativa privada: criou-se uma indústria cultural, não só televisiva, mas também fonográfica, editorial (de livros, revistas, jornais, fascículos e outros produtos comercializáveis em bancas de jornal), de agências de publicidade, etc. Tornou-se comum, por exemplo, o emprego de artistas (cineastas, poetas, músicos, atores, artistas gráficos e plásticos) e intelectuais (sociólogos, psicólogos e outros cientistas sociais) nas agências de publicidade, que cresceram em ritmo alucinante a partir dos anos 70, quando o governo também passou a ser um dos principais anunciantes na florescente indústria dos meios de comunicação de massa.4
Celso Frederico, seguindo trilhas abertas por Jameson, dá pistas significativas para compreender a inserção de setores artísticos e intelectuais de esquerda nesse processo. Para ele, com a terceira revolução tecnológica capitalista, a partir dos anos 60, "a esfera cultural e artística, totalmente envolvida pela mercantilização, deixou paulatinamente de ser um campo à parte dentro da vida social". Com a ocupação quase completa do espaço cultural pela lógica mercantil, tendia a diluir-se a presença da esquerda nessa área, na qual permanecera até então como "reduto, pólo de resistência contra os efeitos desumanizadores da lógica do capital" (Frederico, 1998:298-99).
A atuação cultural do regime civil-militar também implicou a modernização conservadora da educação, com a massificação (e degradação) do ensino público de primeiro e de segundo grau, o incentivo ao ensino privado e a criação de um sistema nacional de apoio à pós-graduação e à pesquisa para as universidades, nas quais a ditadura encontrava alguns dos principais focos de resistência, que reprimiu duramente, mas sem deixar de oferecer uma alternativa de acomodação institucional. Buscava-se atender, dentro dos parâmetros da ordem estabelecida, às reivindicações de modernização que haviam levado os estudantes às ruas nos anos 60.
Na esfera dos costumes, as forças da ordem também souberam adaptar para seus propósitos o que originariamente eram transgressões - e isso não ocorreu só na sociedade brasileira. Por exemplo, num artigo provocativo, "A consolação da revolução sexual", Jean-Claude Guillebaud observa que a liberação sexual teve um sentido de esquerda nos anos 60, ao "sacudir a velha moral, o velho mundo pudico, autoritário, patriarcal, arcaico", em que sua geração foi criada (1999:176). Contudo, essa liberação nos dias de hoje teria perdido seu caráter subversivo, ao contrário das auto-ilusões dos militantes de 1968, que, derrotados na política, teriam como consolo a suposta vitória da revolução sexual. Esta, de fato, teria sido digerida e reaproveitada pelo capitalismo, que soube transformá-la em mercadoria, num tempo marcado pelo que alguns especialistas chamam de desemprego estrutural, em que não se precisa mais canalizar para o trabalho todas as energias da população, a quem o mercado busca oferecer opções (inclusive sexuais) de diversão, para acomodá-la à ordem e lucrar. Hoje, segundo Guillebaud (1999:179) - invertendo as condições de 1968 - , "a virtude, a moral, a família são estruturas parasitas que se opõem à tirania do mercado".
O fato é que a sociedade brasileira foi ganhando nova feição e a intelectualidade que combatia a ditadura aos poucos adaptava-se à nova ordem, que criava até mesmo um nicho de mercado para produtos culturais críticos, censurando seletivamente alguns deles. Universidades, jornais, rádios, televisões, agências de publicidade, empresas públicas e privadas tendiam a fornecer ótimas oportunidades a profissionais qualificados, dentre os quais se destacavam os que se consideravam de esquerda, expoentes da cultura viva do momento imediatamente anterior.
A situação não se alterou muito após a redemocratização da sociedade brasileira, a partir de 1985, que daria sinal verde para uma parcela significativa dos intelectuais de oposição comprometer-se com a Nova República. Eram as "aves de arribação", a deixar o campo de uma oposição mais consistente à ordem estabelecida, na expressão de um artigo da época de Francisco de Oliveira (1985).
Nada será como antes. Nada?
Ao menos desde o final da década de 70,5 ia ficando cada vez mais evidente a necessidade de renovar os parâmetros da esquerda, em busca da revalorização da democracia, da individualidade, das liberdades civis, dos movimentos populares espontâneos, da cidadania, da resistência cotidiana à opressão, das lutas das minorias, entre outras.
Houve uma infinidade de manifestações nos diferentes campos da sociedade a expressar essa virada no pensamento e na prática de esquerda. Na esfera política, foi criado o Partido dos Trabalhadores (PT), ancorado num tripé: as Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, inspiradas na teologia da Libertação; o chamado novo sindicalismo, liderado pelos metalúrgicos do ABC paulista; além de intelectuais e remanescentes de organizações políticas marxistas-leninistas derrotadas pelo regime civil-militar. O PT procurava dar vez e voz aos deserdados, que haviam começado a se organizar em movimentos sociais a partir de meados dos anos 70. Paralelamente, surgia uma literatura para teorizar a importância e a autonomia desses movimentos em relação ao Estado e a outras instituições, inclusive os partidos. Por exemplo, num artigo muito difundido, Tilman Evers (1984) celebrava a independência dos movimentos e seu caráter libertário; apostava no PT como partidoservo dos movimentos, jamais seu guia, como os tradicionais partidos de esquerda. Alguns anos depois, Eder Sader faria um balanço da experiência desses movimentos em Quando novos personagens entram em cena(1988). Por sua vez, vários intelectuais procuravam compreender os dilemas da esquerda, como os que participaram do debate, depois transformado em livro, As esquerdas e a democracia ¾ dentre eles, Carlos Nelson Coutinho, Francisco Weffort, Maria Victória Benevides, Marco Aurélio Garcia e Daniel Aarão Reis. (Garcia, 1986).6
Os acontecimentos dos anos 80 - da reformulação partidária brasileira de 1980, passando pelo fim da ditadura civil-militar em 1984, até a queda do Muro de Berlim em 1989, episódio emblemático da derrocada dos regimes pró-soviéticos, que no Brasil culminaria com a auto-extinção do Partido Comunista Brasileiro, já na década de 90 - consolidaram o esgotamento do modelo bolchevique de partido revolucionário no Brasil, embora uma ou outra organização continuasse posteriormente a se estruturar nesses moldes. Dentre outras razões, porque os militantes já não encontravam motivos para o auto-sacrifício em nome do Partido e da revolução. Se o sacrifício da individualidade parecera-lhes fazer sentido em conjunturas passadas, isso já não ocorreria no presente. Para a maioria, não teria mais cabimento integrar partidos que impusessem aos militantes o que Daniel Aarão Reis Filho chamou de "estratégia da tensão máxima".7
Ganhavam projeção, nos anos 80, correntes de esquerda - quer se autodesignassem marxistas, quer não - que buscavam contato com a realidade imediata das vidas cotidianas, contra a visão doutrinária fechada de certas vertentes do marxismo.
Mas há o outro lado da moeda. Às vezes a (auto)crítica do engajamento dos anos 60 não foi senão a máscara para o triunfo da concepção (neo)liberal do indivíduo, da sociedade e da política. No lugar do intelectual indignado, dilacerado pelas contradições da sociedade capitalista, agravadas nas condições de subdesenvolvimento, passava a predominar o intelectual profissional competente e competitivo no mercado das idéias, centrado na carreira e no próprio bem-estar individual.
Entrava em franco declínio o modelo de intelectual ou artista de esquerda dos anos 60, engajado, altruísta, em busca da ligação com o povo, tido hoje por muitos como mera expressão do populismo, manipulador dos anseios populares; ou, na melhor das hipóteses, como arquétipo do intelectual quixotesco e ingênuo. Ia-se estabelecendo o protótipo do scholar contemporâneo, egocêntrico, desvinculado de compromissos sociais, a não ser que eles significassem avanço em suas carreiras profissionais individuais, como as dos inúmeros professores que já foram críticos da ordem capitalista a ocupar cargos públicos em governos que adotam medidas neoliberais. Atuam como técnicos a serviço do funcionamento saudável da ordem estabelecida, sem maiores dramas de consciência, talvez se agarrando ainda à ideologia de que estão no poder para o bem do povo e da nação, uma vez amadurecidos e livres das utopias voluntaristas dos anos 60, que só aparentemente teriam sido revolucionárias.
Os tempos mudaram e, especialmente a partir dos anos 80, já era visível o progressivo trajeto de desaparecimento do intelectual ou artista atormentado com sua condição relativamente privilegiada numa sociedade subdesenvolvida e desigual, como a brasileira. Gradativamente, a ânsia de muitos intelectuais de esquerda ia deixando de dirigir-se para a ruptura coletiva da condição do subdesenvolvimento nacional e da exploração de classe; a busca passaria a ser o acesso individual ao desenvolvimento de um mundo globalizado, ainda que muitas vezes o discurso continuasse com tons esquerdistas.
Aos poucos, foi-se esgotando o arquétipo do intelectual ou artista rebelde, cada vez mais raro nos dias de hoje. Os intelectuais críticos e comprometidos com a superação das contradições da modernidade capitalista tendem a dar lugar a intelectuais resignados, contemplativos das eternas contradições, contra as quais pouco ou nada poderiam fazer. O intelectual militante, libertário, é substituído pelo intelectual passivo, a fruir sem culpa sua liberdade e relativa autonomia na modernidade em eterna mutação. Em vez de colocar-se em sintonia com "os sinais da rua", como por exemplo sugere Berman (1986 e 1987), esse intelectual-narcisista apenas observa o movimento perpétuo da rua, instalado na janela à prova de balas de seu confortável gabinete, com vista para o mar, que não cansa de mirar, aguardando notícias da última moda intelectual no exterior, ou a oportunidade de conferi-la pessoalmente em Paris, Londres ou Nova York.
O acerto de contas com os anos 60 colocava a intelectualidade brasileira dos anos 80 na fronteira entre uma (auto)crítica que poderia redundar na continuidade do engajamento contra a ordem estabelecida, agora num patamar superior - o intelectual ao mesmo tempo dilacerado pelas contradições da modernidade e engajado prazerosamente no processo de transformação, sem renunciar à sua individualidade - ou uma (auto)crítica que envolveria o desaparecimento do intelectual inconformista, tendência que ganharia cada vez mais força nos anos seguintes. As personalidades modernas, ao "assumir a fluidez e a forma aberta dessa sociedade" (Berman, 1986:94), podem implicar o reconhecimento de que pouco caberia fazer para mudar as encruzilhadas históricas, para resolver as contradições da modernidade, que teria um movimento próprio de eterna autodestruição criadora, a que todos deveriam se ajustar.
A vivência das contradições da modernidade pode levar o intelectual ao engajamento na mudança, ou a preferir adaptar-se à ordem em transformação constante, aceitando o "destino", livre do dilaceramento existencial. Em vez de intelectual revoltado contra o mundo, ou revolucionário a propor um novo mundo - típico dos anos 60 -, consolida-se o intelectual reconciliado com o mundo, no qual reconheceria o eterno e inevitável movimento em que deve se inserir, e não combater, usufruindo ao máximo o prazer e a dor de viver em meio às intempéries da modernidade.
De modo que se estabeleciam tardiamente - durante o período da ditadura, consolidando-se posteriormente com a redemocratização no Brasil - novas condições que fazem lembrar os comentários de Jacoby (1990) sobre o declínio do intelectual atuante na vida pública da sociedade norte-americana já na década de 50: os intelectuais e artistas estariam ocupados e preocupados especialmente com as exigências das carreiras profissionais, como na Universidade; à medida que a vida profissional prospera, a cultura pública fica mais pobre e mais velha; haveria a substituição crescente de empresários, trabalhadores e profissionais independentes por empresas corporativas, processo indissociável da explosão da educação superior; desaparecimento do espaço urbano barato e agradável que podia nutrir uma intelligentsia boêmia, modelar de uma geração de intelectuais (diferente da boêmia massificada de hoje, comercializada e popularizada); eliminação das moradias baratas, restaurantes, cafés e livrarias modestos; comercialização acelerada da cultura, num cenário em que "a literatura e a crítica se tornam carreiras, não vocações", com autores independentes dando lugar à profissionalização da vida cultural.
A institucionalização de intelectuais e artistas neutralizaria a liberdade de que em teoria dispõem, de modo que eventualmente o sonho com a revolução conviveria com o investimento na profissão, na qual prevaleceria a realidade cotidiana da burocratização e do emprego. A profissionalização da vida intelectual nos limites do campus universitário conduziria à privatização ou à despolitização, à transferência da energia intelectual de um domínio mais amplo para uma disciplina mais restrita, em que as pressões da carreira e da publicação intensificariam a fragmentação do conhecimento. Esse processo ocorreria lentamente: "a transformação do ambiente do intelectual tradicional não é instantânea; ela é paralela ao declínio das cidades, ao crescimento dos subúrbios e à expansão das universidades" (Jacoby, 1990:245). Tudo isso misturado a uma recomposição do público, ao sucesso da televisão, à expansão dos subúrbios, deterioração das cidades e inchaço das universidades.
Não seria o caso de retomar aqui todo o pensamento de Jacoby para ajudar a explicar em outro contexto o declínio público da intelectualidade brasileira de esquerda. Mas pode-se imaginar um exemplo de como se esgarçou o espaço para a produção de uma intelectualidade radical: a São Paulo dos anos 60 contrastada com a de hoje. Naqueles anos, o ponto nevrálgico de encontro de artistas e intelectuais estava num breve espaço geográfico no centro da cidade, em que se concentravam o Teatro de Arena, o Cine Bijou, a Faculdade de Filosofia e outras da Universidade de São Paulo (USP), escritórios de arquitetos, advogados e outros profissionais liberais engajados, todos se encontrando em restaurantes e bares da região, como o Redondo, na confluência entre a avenida Ipiranga e as ruas da Consolação e Teodoro Baima. Ali circulavam: o pessoal de teatro dos inovadores Arena e Oficina, escritores, cineastas, artistas plásticos, jovens representantes da insurgente música popular brasileira, professores da USP, militantes do movimento estudantil e de organizações de esquerda, enfim, todo um conjunto que representaria o florescimento cultural do período.
Hoje alunos e professores estão instalados no distante campus universitário da USP no Butantã, e muitos deles se espalharam pelas inúmeras universidades públicas e privadas que surgiram pelo interior do Estado e por outras unidades da federação ao longo dos anos, onde encontraram seu lugar profissional. O pessoal do teatro em geral alcançou êxito na televisão ou na indústria dos espetáculos teatrais. Os cineastas encontraram apoio na Embrafilme e outras alternativas de financiamento público que a sucederam, quando não nas agências de publicidade. Artistas plásticos viram frutificar um mercado rentável para suas obras, escritores se deram bem em jornais ou na expansão da mídia em geral, sem contar a crescentemente próspera indústria do livro. Vários músicos da MPB alcançariam sucesso de mercado maior que artistas de qualquer outro setor. E os políticos radicais de então encontrariam lugar nos mais diversos partidos da ordem, do PMDB ao PSDB, passando até pelo PT - cada vez mais confiável - e outros partidos, pelos quais muitas vezes chegaram a governos municipais, estaduais e federais. Inviabilizava-se a condensação de uma intelligentsia crítica num espaço geográfico e histórico criativo. Talvez uma das imagens mais expressivas da mudança e do esvaziamento desse espaço esteja no destino do local do famoso bar Redondo: virou uma loja de fast food.
Assim, pode-se constatar, com certo desencanto, os rumos que tomou uma parcela da intelectualidade que já se propôs a mudar o mundo e a vida, cuja despolitização - quando não mudanças de rota em direção à direita - talvez não se deva apenas e essencialmente à vontade dos agentes, mas às próprias transformações por que passou a sociedade brasileira.
Que ninguém se iluda: não há como voltar às circunstâncias do passado de oportunidades perdidas de um ponto de vista de esquerda. É sabido que a tendência à fragmentação social do capitalismo de hoje dificulta projetos coletivos alternativos, como aqueles dos anos 60, levando muitas vezes os atuais artistas e intelectuais engajados a meramente transferir a uma dada causa seus apoios e prestígios pessoais, por exemplo, declarando apoio a certos candidatos ou partidos no horário político obrigatório na televisão. Mas nem por isso seria adequado conformar-se com o presente de burocratização inofensiva das atividades intelectuais e artísticas.
Para um estudo do enfraquecimento da arte política nos anos 70 e sobretudo nos 80 e 90, é instigante a análise de Jameson (1994) sobre os problemas envolvidos na produção de uma arte política em nossos dias, em que o capitalismo quase inviabilizaria quaisquer atividades grupais que pudessem embasar socialmente uma arte subversiva, numa era de ocupação quase completa do espaço cultural pela lógica mercantil. Haveria umaatomização reificada, imposta pelo capitalismo de hoje. Jameson admite, contudo, como fundamento social para uma nova arte política e uma produção cultural autêntica a ser criada, a constituição de um grupo novo e orgânico, por meio do qual o coletivo abriria caminho na atomização reificada da vida social capitalista, a partir da luta de classes.
Parece que seria equivocado reproduzir ao pé da letra propostas culturais e políticas dos anos 60. Mas seria possível encontrar alternativas melhores de inserção da sociedade brasileira e de sua cultura no mundo de hoje do que o ceticismo passivo, de submissão à nova ordem mundial do "consenso de Washington". Não cabe reviver o passado, mas isso não implica a inviabilidade de retomar suas esperanças, apostar em novos projetos coletivos de transformação social ¾ inclusive nas esferas intelectuais e artísticas ¾ em vez da carreira individual de cada um no mercado.
Nesses anos todos, a sociedade brasileira continuou submetida à "subordinação interiorizada e imperceptível" de um "complexo de experiências, relações e atividades" que constituem a hegemonia burguesa, para usar uma formulação de Chauí (1987:21-2). Ela está ancorada no conceito de hegemonia de Raymond Williams, derivado de Gramsci, que envolve "um conjunto de práticas e expectativas sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores - constitutivo e constituidor - que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um senso de realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas de sua vida." (Williams, 1979:113).
Não há dúvida de que hoje predomina o senso de realidade experimentada que supõe a reprodução eterna da sociabilidade capitalista. Mas por que não inventar uma contra-hegemonia para os novos tempos, alternativa à hegemonia neoliberal e à atomização reificada da sociedade do espetáculo, nos termos respectivamente de Jameson (1994) e Debord (1967)? Utopia irrealizável? Talvez não. O recente Fórum Social de Porto Alegre, o movimento "Arte contra a barbárie" ¾ que desde 1999 tem mobilizado artistas e intelectuais comprometidos com a "função social da arte" no Brasil ¾ e outros indícios sinalizam que a roda-viva da História não parou na posição mais confortável para os donos do poder.

NOTAS
Neste artigo, o autor retoma e sintetiza idéias expostas mais longa e sistematicamente em alguns de seus últimos escritos sobre cultura e política a partir dos anos 60. É o caso do livro Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV (Ridenti, 2000a), e dos artigos "O sucesso no Brasil da leitura do Manifesto Comunista feita por Marshall Berman" (Ridenti, 1998), e "Intelectuais, artistas e estudantes: Paris, 1968" (Ridenti, 2000b). 
1. Intelectualidade entendida como "categoria social definida por seu papel ideológico: eles são os produtores diretos da esfera ideológica, os criadores de produtos ideológico-culturais", o que engloba "escritores, artistas, poetas, filósofos, sábios, pesquisadores, publicistas, teólogos, certos tipos de jornalistas, certos tipos de professores e estudantes etc.", como define Michael Löwy (1979:1). 
2. Veja-se, por exemplo, o que diz Jerrold Seigel a respeito do perfil dos boêmios de Paris do século XIX (Seigel, 1992). 
3. O termo é de Walnice Nogueira Galvão (1994 ). 
4. Um balanço expressivo da criação e do avanço da indústria cultural nos anos de ditadura, inclusive com dados estatísticos e rica menção de fontes empíricas e bibliográficas, encontra-se em A moderna tradição brasileira, de Renato Ortiz (1988). 
5. Em 1979 entrou em vigor a lei da anistia aos condenados políticos pela ditadura; em 1980 ressurgiria o pluripartidarismo, entre outras medidas que mudavam a cena política brasileira. 
6. Os livros mencionados são uma amostragem relativamente aleatória de um movimento intelectual e político muito mais amplo. Eles são citados por indicar reflexões de intelectuais engajados, como sintoma da procura de novos caminhos por parte das esquerdas, valorizando os "sinais das ruas" e a democracia. 
7. Essa estratégia envolveria uma série de mecanismos: o complexo da dívida do militante com a organização comunista, o leque das virtudes do revolucionário modelo, o massacre das tarefas com que o Partido sobrecarregaria seus integrantes, a celebração da autoridade dos dirigentes, a ambivalência das orientaçõespartidárias, bem como a síndrome da traição ¾ pela qual seriam renegados aqueles que deixassem o Partido. (Reis Filho, 1991).


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