Por Francisco Mangas
O
fim da vida foi tema de vários romances e textos introspectivos do Prémio
Nobel. O escritor José Saramago conhecia a inevitabilidade da morte, mas
trabalhou literariamente os vários trocadilhos possíveis sobre a única coisa
certa que a humanidade tem
Ainda
criança, na aldeia da Azinhaga, ouviu a avó a fazer um comovedor elogio à vida.
'O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.' Assim mesmo. 'Eu estava
lá', conta Saramago no livro As Pequenas Memórias. A avó, 90 anos 'e o fogo de
uma adolescência nunca perdida', estava sentada na soleira da porta, 'aberta
para a noite estrelada e imensa'.
O
jogo da vida e da morte está bem presente na obra de José Saramago. 'De Deus e
da morte não se tem contado senão histórias', dizia o autor de Levantado do
Chão. A morte, a palavra morte, que andarilha por muitas páginas da densa
prosa, emerge também no título de dois dos seus romances: O Ano da Morte de Ricardo
Reis e As Intermitências da Morte. Esta última obra, grande metáfora da vida e
da morte, Saramago abre com a frase, 'no dia seguinte ninguém morreu'. A partir
de um Janeiro, num determinado país, ninguém mais morreu. Mas, como viver
sempre também cansa, a dada altura, a morte, através de carta, retoma a regras
antigas do mundo. Retomou os seus implacáveis poderes: 'A partir da meia-noite
de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios.'
Saramago
não contará mais histórias sobre a morte. Mas as palavras que nos deixa são 'o
viático, o salvo-conduto, graças ao qual', agora que chegou a hora, se
libertará do silêncio mais profundo.
'Mas
a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob
a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá
modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe
como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o
pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal,
abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não
voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o
ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e na eterna interrogação
dos astros. Que palavras dirá então?'
'Então
ela, a morte, levantou- -se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou
a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar
onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou
então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem
descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo
humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma
impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos,
e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que
fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram
cinzas. A morte voltou para a cama,
abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que
nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No
dia seguinte ninguém morreu.'
'(…)
E os homens avançaram para o terreno revolvido, com carros de não e pás,
enchendo aqui, no monte, despejando além, na encosta para Mafra, ao passo que
outros homens, de enxada ao ombro, desciam aos caboucos já fundos, neles
desapareciam, enquanto mais homens lançavam cestos para dentro e depois os
puxavam para cima, cheios de terra, e os iam despejar afastadamente, aonde
outros homens iam por sua vez encher carros de mão, que levavam no aterro, não
há diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para
ali porque as forças não dão para mais, e depois vem outro homem que
transportará a carga até à próxima formiga, até que, como de costume, tudo
termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens
lugar de morte, como se vê não há diferença nenhuma.'
'(…)
Nenhum condenado à cadeira eléctrica, ou à forca, ou à guilhotina, ou ao
garrote, ou à fogueira, terá dado voz de acção para ligar a corrente, ou abrir
o alçapão, ou soltar a lâmina, ou girar o parafuso, ou riscar o fósforo, talvez
por não terem estas mortes dignidade, incluindo as de mais longa tradição na
arte, talvez por faltar nelas o factor militar, a instituição das armas, onde
tão mais de costume faz ninho o heroísmo, que mesmo quando o condenado não
passava de vulgar paisano as balas que recebeu no peito procederam como resgate
da mediocridade e foram o viático, o salvo-conduto, graças ao qual lhe virá a
ser permitido, quando chegar a hora, entrar no paraíso dos heróis.'
'E
nós, portugueses, que poeta devermos ir buscar a França, se lá nos ficou algum,
Que eu saiba, só o Mário de Sá Carneiro, mas esse nem vale a pena tentar,
primeiro, porque não havia de querer vir, segundo, porque os cemitérios de
Paris são lugares bem guardados, terceiro, porque tendo passado tantos anos
depois que morreu, a administração duma capital não cometeria os erros duma
comuna de província que, ainda por cima, tem a desculpa de ser mediterrânica,
Além disso, de que serviria tirá-lo dum cemitério para o pôr noutro, uma vez
que em Portugal não há-de ser autorizado enterrar os mortos fora do lugar, ao
ar livre. Nem os ossos dele ficariam quietos se os deixássemos à sombra duma
oliveira no Parque Eduardo VII.'
'Enquanto
andava, ia pensando que ali eu não era eu, que o meu corpo ficara morto virado
ao mar, no alto da arriba, e que o mundo estava todo cheio de sombras e
confusão. A noite apanhou-me na margem do rio, com uma cidade diante que eu não
reconhecia, como as torres ameaçadoras dos pesadelos. Ainda hoje, tantos anos
passados, me pergunto que vulto de mim terá ficado disperso na brancura das
areias ou imobilizado em pedra na arriba cortada pelo vento. E sei que não há
resposta.'
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Fonte: https://www.dn.pt/dossiers/gente/jose-saramago/perfil/interior/a-morte-segundo-saramago-1598883.html