sexta-feira, 25 de abril de 2014

'O Novo Tempo do Mundo'

O mais recente livro de Paulo Arantes (USP) promete ser daqueles que, analiticamente, não deixam pedra sobre pedra. Uma boa novidade por estas paragens, tão na mesmice acadêmica dos lugares comuns.  Chama-se 'O Novo Tempo do Mundo'. Abaixo, uma breve apreciação da obra. 


 
Pedro Rocha de Oliveira  
O que há de comum entre o extermínio colonial, os campos de concentração, a destruição nuclear mútua assegurada, e a criminalização da pobreza? Resposta: a sociedade moderna, com seu regime de guerra civil permanente e a “máquina de moer gente” da produção de mercadorias. Essa sociedade, que nasceu falando de sua própria novidade, nasceu também contando o tempo que –  quando o que está em jogo é o controle do trabalho – é dinheiro. Inventou a promessa do desenvolvimento perpétuo, a inclusão social total a perder de vista, o projeto civilizatório de uma felicidade-depois como paga do sofrimento-agora.
Mas na época em que o próprio dinheiro, no cassino geral do capitalismo especulativo, também virou coisa do futuro; em que a supostamente dourada aliança entre welfare state e corrida armamentista internacional deu lugar à combinação de neoliberalismo e militarização do quotidiano; em que a mercadoria colonizou a vida privada até o último pelo pubiano; em que o horizonte de contagem do tempo é a catástrofe ambiental, o colapso urbano, a emergência militar e a crise econômica; na época, enfim, do que Paulo Arantes há tempos já chama de “fuga para a frente”, o próprio adiamento, a relativização da vida, a espera, se transformou em fim-em-si-mesmo, espelhando e explicitando com fulgor sinistro a lógica circular da modernização-acumulação capitalista.Desde o Estado que combina agenciamento do sub-emprego e promoção do microcrédito à prática descarada da exceção, até as empresas que, através de violência econômica e extra-econômica, chantageiam povos inteiros, as típicas construções sociais modernas estão com os dentes de fora, mostrando a quê vieram, para quem quiser ver. E Paulo Arantes não desvia o olhar.
Lançando mão ocasional do seu sutil humor de cadafalso – procedimento de distanciamento que não tira ninguém do sufoco, mas devolve a ele com vitalidade renovada para a crítica do existente – o autor analisa a economia de guerra, a indústria dos presídios, os campos de extermínio, as revoltas nos guetos, o golpe militar, e promove a experiência conceitual cuidadosa e radical desse tempo novo que dá a sensação de que a novidade morreu, mostrando o enraizamento dessa sensação na pré-histórica história catastrófica do capitalismo, defrontando o leitor com a necessidade de rejeitar urgentemente sua continuidade tediosa, trabalhosa, patogênica, destrutiva – rejeitar seus escombros, que persistem em se manter de pé.
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Fonte: http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/o-novo-tempo-do-mundo3



'Elogio da Sombra'

Ao perder a visão, o argentino Jorge Luís Borges passou a narrar a sua cegueira em poemas, oferecendo um panorama emblemático do mundo que estava a viver. O poema aí abaixo, intitulado 'Elogio da Sombra', que encerra o livro que tem esse mesmo título, é dessa época. 

Thomson_Ann-Windlass 1983

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal está morto ou quase morto.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que ainda não são a treva.
Buenos Aires,
que dantes se espraiava em arrabaldes
rumo à planície sem fim,
voltou a ser a Recoleta, o Retiro,
as confusas ruas do bairro Once
e as vacilantes casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Houve sempre na minha vida demasiadas coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os olhos para pensar;
o tempo foi o meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e é parecida com a eternidade.
Os meus amigos não têm rosto,
as mulheres são o que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isto deveria amedrontar-me,
mas é uma doçura e um regresso.
Das gerações de textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que ainda hoje leio na memória,
lendo-os e transformando-os.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
ao meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
devaneios e sonhos,
cada ínfimo instante de outrora
e dos outroras do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o partilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego ao meu centro,
à minha álgebra e à minha chave,
ao meu espelho.
Em breve saberei quem sou.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dia Nacional do Choro


Hoje, 23 de abril, é o Dia Nacional do Choro. Choro, chorinho, chorões - trata-se de um gênero musical brasileiro, que, apesar da 'máquina trituradora' da indústria cultural, tem sobrevivido, e mesmo conquistado o gosto de novas gerações. Neste sentido, é de se referir os pernambucanos do Grupo Ororubá, com raízes no agreste do estado. De toda forma, o espaço do choro continua sendo restrito - se não fosse por uma 'circunstância familiar' é provável que eu próprio, por exemplo, não tivesse interagido com o Grupo Ororubá. Aí abaixo uma amostra do trabalho do Grupo. 



terça-feira, 22 de abril de 2014

Dia da comunidade luso-brasileira


Por Ives Gandra Filho
(Advogado, Professor Emérito da Universidade Mackenize) 

Em 1964 e 1981, em dois Congressos das Comunidades Portuguesas espalhadas pelo mundo, realizados em Lisboa, defendi a tese de que a vocação lusíada de integração de povos, ao longo de sua história, poderia permitir que as nações de língua portuguesa, em quatro continentes, conformassem uma autêntica confederação de países.
É que a história brasileira está indissoluvelmente ligada à de Portugal, mais do que a história das nações hispânicas à de sua colonizadora.
Assim é que o Brasil teve sua independência proclamada por um rei português (Pedro 4º, em Portugal e 1º, no Brasil) e ofertou uma rainha brasileira que governou Portugal (Maria da Glória) durante anos, em face da característica maior do povo lusitano de integração e permanência nos espaços aonde chega. Essa maneira de ser de seu povo torna os países de língua portuguesa na África, na Europa e na América, além do Timor Leste, nações com cultura, costumes e tradições mais próximas do que aquelas de outros povos.
Numa área territorial de dimensões semelhantes, em que se dividiu a América Latina entre a Espanha e Portugal, o gênio português conseguiu manter, no Brasil, a unidade que a Espanha não obteve, vendo o território por ela colonizado, quando independente, ser fracionado em inúmeras nações. Talvez a razão disso tenha sido o fato de Portugal, desde 1140, ano de sua independência, ter sido uma nação de governo centralizado, não sofrendo a instabilidade do resto da Europa, onde, muitas vezes, os senhores feudais eram mais fortes que os reis.
Temos um patrimônio cultural comum, uma maneira de receber outros povos --veja-se o cosmopolitismo da cidade de São Paulo-- que é, talvez, a característica maior dessa solidariedade, hoje tão necessária, num mundo conturbado, em que as ideologias --corruptoras de ideais-- conformam regimes políticos geradores de turbulências, semiditaduras, ódios plantados e violências claras à dignidade humana, em muitos espaços geográficos.
A característica maior da maneira de ser dos portugueses no mundo foi aceitar a cultura local, mantendo a unidade de sua própria cultura e valores, que nós, no Brasil, herdamos, ao recebermos de Portugal uma nação continental. Acolhemos todos os povos, mantendo nossa maneira de ser, o que pode transformar-se em plataforma para a valorização futura do diálogo e entendimento entre os povos.
Por isso, poderíamos aproveitar, num mundo em transformação, essa ponte que Portugal representa, na União Europeia, e o Brasil, no continente americano, para os povos de língua portuguesa. É de se lembrar que a comunidade luso-brasileira cresce continuamente, tanto de portugueses no Brasil, como de brasileiros em Portugal, sendo que para lá se dirige nosso maior contingente de estudantes no exterior.
Devemos abrir, pois, novas perspectivas, que transcendam as soluções políticas de conveniência de pactos regionais limitativos, para acordos mais abrangentes, visto que as raízes da comunidade luso-brasileira são cada vez mais profundas e ofertam, se soubermos aproveitar, oportunidade de integração de espaços muito mais amplos, com as potencialidades daquele europeu, tese que defendi em Lisboa em 1964 e 1981, via uma autêntica comunidade das nações de língua portuguesa.
À luz de tais horizontes comunitários, que têm no idioma e nos valores culturais indestrutíveis alicerces, é que a data de 22 de abril mereceria uma reflexão maior por parte de lusos e brasileiros.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/162402-dia-da-comunidade-luso-brasileira.shtml


Pessoas e identidades

Aí abaixo, você tem um ensaio sobre a questão das identidades, de autoria de Claude Dubar, especialista francês na abordagem do assunto. Não é nem necessário dizer que a questão da identidade tem assumido um lugar central na sociedade contemporânea e no seio da análise social, seja pelas modalidades da sua construção e/ou desconstrução, seja pelos 'desvios de personalidade' que levam inclusive a delitos/crimes, seja ainda por outra razão qualquer. A conferir o trabalho de Dubar. 


 Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns esclarecimentos conceituais e metodológicos*

Por Claude Dubar

Este texto almeja distinguir e, a seguir, pôr em paralelo os dois modos de se considerar qualquer trajetória individual: objetivamente, como uma "seqüência de posições" num ou mais campos da prática social, e subjetivamente, como uma "história pessoal" cujo relato atualiza visões de si e do mundo. Não raro, ambos os pontos de vista interferem nos usos múltiplos da noção de identidade. Esclarecer os diversos sentidos deste termo será, aqui, diretamente relacionado à explicitação dos métodos de análise subjacentes aos usos empíricosda noção de identidade. Isso resulta em duas maneiras muito diferentes de se analisar trajetórias individuais, em função do que se entende por este termo.
O ponto de vista aqui apresentado defende que igual importância seja dada às categorias institucionais, determinando "posições objetivas" (escolares, profissionais...), e às categorias de linguagem utilizadas por indivíduos em situação de entrevista de pesquisa. Para o sociólogo, tomar a sério falas sobre si mesmo vindo de um sujeito incitado "a se narrar" e entrando num diálogo particular, verdadeiro "exercício espiritual" (Bourdieu 1993), com um pesquisador capacitado para escutar, talvez constitua uma condição sine qua non para um uso sociológico da noção de identidade.

Apresentação do problema: As duas faces dos processos identitários
O artigo de Jean-Claude Kaufman (1994), mencionando em várias oportunidades meu livro sobre La Socialisation(1991), permite-me retomar uma questão central em qualquer análise sociológica de trajetórias individuais. Quero falar da distinção entre dois universos de sentido vinculados à palavra "identidade" nas ciências sociais. O primeiro que Kaufman nos propõe chamar de processo identitário individual é, geralmente, apreendido a partir de produções de linguagem do tipo "biográfico" e diz respeito às diversas maneiras pelas quais indivíduos tentam dar conta de suas trajetórias (familiares, escolares, profissionais...) por meio de uma "história", no intuito, por exemplo, de justificar sua "posição" em dado momento e, às vezes, antecipar seus possíveis futuros. Na medida em que o que está mesmo em jogo aqui é a (re)construção subjetiva de uma definição de si, eu mesmo propusera chamar este processo, condensado em poucas fórmulas, de "identidade biográfica" ou, ainda, de "identidade para si". O segundo diz respeito ao que Kaufman chama de quadros sociais da identificação, ou, ainda, quadros de socialização e envolve as categorias utilizadas para identificar um indivíduo num dado espaço social (o que eu mesmo chamei de "identidade estrutural" ou "identidade para outrem"), as categorias do discurso do indivíduo definindo-se do ponto de vista de outrem (quer este outrem seja "significativo" e personalizado, quer seja "generalizado" e institucional) inclusive. Na linha de G-H Mead (1993), Kaufman propõe que voltemos ao termo de "papel" para designar este aspecto da identidade.
O modo de pensar e tornar operacional esta distinção entre "identidade pessoal" (o que sou/gostaria de ser) e "identificação social" (como sou definido/o que dizem que sou) dá margem a múltiplos desdobramentos e permite caracterizar, de modo bastante grosseiro, não apenas as grandes teorias da socialização na literatura das ciências sociais (Dubar 1991) como também as concepções correntes, subjacentes aos discursos comuns, que, às vezes, constituem uma espécie de vulgarização das primeiras. Duas orientações se opõem: uma, chamada por alguns de "psicologizante", mas que prefiro chamar de essencialista, fundada no postulado da realidade de um self(ou de um ego, ou de um eu...) como realidade "substancialista", permanente e autônoma construindo sua unidade (Abramowski 1987 etc.); e a outra, inversa, às vezes chamada de "sociologista", embora eu prefira chamá-la de relativista, que reduz o self e, portanto, a identidade biográfica a uma "ilusão", ocultando a pluralidade dos papéis sociais e sua dependência para com a posição ocupada em cada campo social em particular, e no sistema das classes sociais em geral (Bourdieu 1986).
Não é simplesmente, nem talvez primeiramente, o estatuto da individualidade que está em jogo nesta polarização entre dois modos de se abordar a questão da identidade. É também, e talvez acima de tudo, a concepção do "social" e a relação estabelecida entre categorização e identificação. Para os que consideram a identidade como vinculada a uma "essência individual" - quer se trate de caráter, personalidade ou qualquer outro traço permanente -, a identificação psíquica precede e orienta a categorização social: o self, constituído de maneira precoce no jogo das identificações da primeira infância, condiciona e norteia uma biografia vivenciada ou interpretada como destino ("torna-ti o que és"). O "social" emerge, então, como uma espécie de superestrutura, um exterior ou um ambiente do sujeito, quer este seja o do inconsciente ou o das condutas socializadas (o pólo "passivo" do ego ou o pólo "ativo" do eu, na terminologia meadiana). Para os que consideram a identidade biográfica como uma "ilusão", as categorizações sociais determinam identificações coletivas que constituem uma matriz de disposições (o habitus em Bourdieu), condicionando o acesso a posições sociais e o cumprimento de papéis sociais. As categorias sociais, interiorizadas no decorrer do ciclo de vida (níveis escolares, categorias profissionais, posições culturais...), constituem o material a partir do qual os indivíduos inventam para si identidades singulares, para unificar suas existências e tentar fazer valer sua pretensão em um ou outro campo da prática social. Mas então é a trajetória social "objetiva", categorizada pelas instituições, que determina as identificações subjetivas e, conseqüentemente, "a pessoa não existe de fato fora de seus quadros sociais" (Elias 1991a).
Diante de ambas as posturas, inconciliáveis quanto à questão da identidade, a história das ciências sociais oferece várias tentativas conceituais, buscando ultrapassar a oposição entre o essencialismo de uma identidade pessoal preestabelecida e o relativismo das categorizações sociais diversas, estruturando identidades biográficas ilusórias. Só abordarei aqui as que tentaram tal ultrapassagem a partir da vertente sociológica, isto é, tomando a sério os processos de categorização social na construção das identidades individuais. De fato, considerar a identidade de alguém como um processo e não como uma espécie de estado inicial (e a fortiori como um destino) não implica ipso facto que a subjetividade das elaborações biográficas (por exemplo, em entrevistas de pesquisas) deva ser considerada como ilusória nem mesmo "secundária" em face das determinações sociais objetivas. Inversamente, tomar muito a sério os modos subjetivos pelo quais indivíduos se narram não significa, necessariamente, menosprezar o lugar das categorizações "objetivas" nas construções identitárias pessoais. Entre o ponto de vista "essencialista" das entidades como "unidades psíquicas coerentes e permanentes" (Mary Douglas 1990) e o ponto de vista "relativista" das "fórmulas mutáveis destinadas a se engendrar através dos acontecimentos" (Gofman 1968), um ponto de vista relacional a respeito dos processos identitários pode ser encontrado em tradições de pesquisas tão diferentes quanto a abordagem genética de Piaget, a fenomenologia de Schütz, a escola de Chicago ou a etnometodologia. Este ponto de vista será, também, encontrado em certas tentativas mais recentes de desenvolver abordagens longitudinais de diversos tipos de populações, que procuram integrar as relações entre a subjetividade dos "relatos de vida" e a imposição das categorizações institucionais.
É uma posição constante dos sociólogos de Chicago, esta de considerar os documentos pessoais e, mais particularmente, os materiais biográficos, como dados sociológicos importantes e suscetíveis de interferir nos processos sociais mais estruturantes. A noção de identidade elaborada por Everett Hughes, Howard Becker ou Anselm Strauss almeja, cada qual a seu modo, articular quadros sociais de identificação (e, essencialmente, asfilières profissionais, estruturando os espaços de trabalho ou as categorizações dos grupos desviantes) com itinerários individuais, apreendidos de maneira compreensiva. Ela atribui um lugar privilegiado às interações sempre suscetíveis de infletir, e até mesmo de "converter" as identidades anteriores. Ela concede um valor importante aos processos de negociação, de transação (Strauss 1992) e de compromisso entre as "definições de situação" (Thomas e Znaniecki 1919) resultando das interações presentes e dos esquemas culturais (valores e atitudes) oriundos da socialização passada. Mesmo se essa tradição não legou a seus sucessores uma "teoria" unificada da identidade, ela produziu pesquisas muito sugestivas e formalizou eixos de um procedimento indutivo relativamente operatório (Glaser e Strauss 1967).
Mais recentemente, o fato de levar em conta trajetórias, itinerários e percursos individuais traduziu-se, na França, por uma abundância de trabalhos empíricos promissores que, embora não unificados teoricamente, privilegiam as abordagens longitudinais e se recusam a favorecer uma das duas posições acima definidas (Coutrot e Dubar 1992). Esses trabalhos, na sua grande maioria, almejam reconstruir indutivamente classes de percursos, principalmente no mercado de trabalho, para aproximá-las das categorias consideradas como mais ou menos "objetivas" (classes de idades, níveis escolares, categorias profissionais, setores de atividade, tipo de empresas). Às vezes, eles tentam também interpretar relatos biográficos de maneira mais compreensiva, recorrendo a categorias mais "subjetivas". Não raro, eles buscam relacionar políticas institucionais com práticas de emprego, de formação, de mobilidade. Algumas destas pesquisas procuram contrapor "classes de trajetórias biográficas", delimitadas por meio de calendários de atividade, com "tipos de relatos biográficos", reconstruídos a partir de dados de entrevistas (Demazière e Dubar 1996). Elas recorrem também à noção de identidade, embora de forma específica, articulando a análise das categorizações mais ou menos oficiais ou mais informais com a das trajetórias interpretadas subjetivamente (Demazière 1992; Pottier 1992). Essas pesquisas procuram relacionar "trajetórias subjetivas" com "mundos vividos", organizados em torno de categorias específicas e oriundos da análise de relatos biográficos, e propõem a noção de "formas identitárias" (Dubar 1991, 1992; Demazière 1992; Demazière e Dubar 1996). A seqüência deste texto será dedicada a precisar o sentido desses conceitos e a traduzi-los em orientações metodológicas.

Trajetórias "objetivas" e "classes de trajetórias típicas"
A primeira grande dificuldade para as abordagens longitudinais consiste em reagrupar a multiplicidade de itinerários, demarcados a partir de posições sucessivas, numa variável sintética abrangendo todos os estados possíveis, num pequeno número de "classes de trajetórias" reunindo os itinerários considerados semelhantes. Isto se consegue de maneira indutiva, por meio de uma análise de variância minimizando a dispersão dentro de cada classe e maximizando a variância interclasses, isto é, a distância vetorial entre as classes. Com isso, procura-se obter o menor número possível de classes, reunindo um número máximo de itinerários. A dificuldade principal consiste em caracterizar as classes assim obtidas e em conferir-lhes um sentido que não seja puramente nominalista. Desse modo, a categoria de "estabilização" aplicada a todos os itinerários de inserção de jovens que, durante os três (Pottier 1992) ou sete (Demazière e Dubar 1996) primeiros anos após o fim de seus estudos, possuem um CDII constando apenas um ou dois empregadores não implica que todos os jovens contemplados se considerem "estabilizados" ou queiram permanecer "estabilizados" no seu emprego (nem mesmo que recorram a este termo para "se narrar"). O mesmo acontece com a categoria de exclusão, freqüentemente utilizada para definir o percurso de jovens não inseridos que nunca conseguiram um CDI (Demazière e Dubar 1994) ou de desempregados "contumazes" "desmotivados" que acham não mais poder encontrar um emprego (Demazière 1992, 1996): ela se baseia raramente numa explicitação dos sentidos veiculados pelos usos sociais e políticos que, na maioria das vezes, remetem mais a um estado do que a um processo (Dubar 1996; Paugham 1996). Diante da falta de análise qualitativa rigorosa, a adequação da categorização do pesquisador com a da pessoa em questão resulta, muitas vezes, problemática e o risco é grande, para o sociólogo, de considerar categorias administrativas ou termos do debate social como conceitos descritivos, e de, portanto, confundir "nominação" com "etiquetagem".
A segunda dificuldade, mais temível, é a de ordenar e interpretar as diversas classes de trajetórias em termos de mobilidade social. Para que um itinerário de emprego ou um itinerário matrimonial (ou residencial) possa ser sociologicamente interpretável, é geralmente preciso que os estados usados para avaliá-lo sejam hierarquizados de modo a podermos distinguir "trajetórias ascendentes", "descendentes" e "estagnantes". Trata-se, dessa vez, de um procedimento dedutivo consistindo em confrontar as classes empíricas obtidas pela tipologia estatística com trajetórias teóricas resultando de um modelo a priori.
Pode-se utilizar, por exemplo, um modelo simplificado derivado da hipótese - formulada, entre outros, por Bourdieu (1974) - segundo a qual é a inclinação da trajetória social que determina o sistema de disposições (habitus) que estrutura as práticas sociais. Podemos aplicá-lo à mobilidade tanto intergeracional (avós/pais/entrevistados) quanto intrageracional: basta definir pontos de referências temporais precisos (por exemplo: fim dos estudos/ingresso na vida ativa/posição quando da entrevista) e medir a posição social do indivíduo numa mesma escala (exemplo: classes superiores[S]/Médias[M]/Populares[ P]) nestes três momentos.
Chamaremos de trajetória objetiva a seqüência de posições sociais ocupadas por um indivíduo ou sua linhagem. Selecionando três pontos no tempo, por exemplo, e medindo a posição por meio de uma variante tricotômica, obtemos 27 trajetórias teóricas que podem ser agrupadas da seguinte maneira:
- As trajetórias de rigidez social (n=3) de tipo SSS/MMM/PPP
- As trajetórias de ascensão social (n=7) de tipo MSS/MMS/PMS
- As trajetórias de descida social (n=7) de tipo SMM/SSM/MMP
- As trajetórias de contramobilidade social (n=10) que podemos distinguir em:
· contramobilidade em V (n=5) de tipo SMS/MPM/SPS/SPM
· contramobilidade em 2 (n=5) de tipo MSM/PMP/PSP/MSP
A confrontação deste "modelo", dedutivo e combinatório, com as classes obtidas indutivamente por agrupamento estatístico permite-nos chegar a "classes de trajetórias típicas" que possuem, ao mesmo tempo, um significado teórico e uma representatividade empírica. Não raro, de fato, essas "classes teóricas" não seriam representadas numa amostra de trajetórias empiricamente reconstruídas (por meio de um questionário biográfico ou de um calendário de atividade). Também é possível testar vários modelos para determinar o que melhor se adapta às classes obtidas indutivamente.
Trata-se de uma análise "objetivista" das trajetórias na medida em que não se leva em conta o sentido subjetivo que os indivíduos atribuem ao próprio percurso. Trata-se, também, de uma análise necessariamente redutora, uma vez que a posição, num dado momento, é medida numa escala apenas. É a relação entre as posições sucessivas que importa no modelo e não cada posição isolada.
Notemos ainda, para concluir essa primeira abordagem, que, em Bourdieu, cada grande tipo de trajetória é, às vezes, associado a um "habitus de classe" levando em conta ao mesmo tempo a inclinação e o "nível" (de chegada) da trajetória social. Obviamente, um operário filho e neto de operário não tem o mesmo habitus que um alto executivo, filho e neto de empresário. Podemos, contudo, avançar a hipótese de que a "ancoragem" de cada um em sua classe induz certas disposições homólogas. O modelo, em Bourdieu, é essencialmente hipotético-dedutivo, e os traços interpretados em termos de habitus são associados tanto a trajetórias quanto a posições. No entanto, os habitus de classe, expressos principalmente em termos de "qualidades", são empiricamente relacionados antes com posições do que com trajetórias estatisticamente medidas, o que torna seu modelo ambíguo (Dubar 1991, cap. 3).

Trajetórias "subjetivas", lógicas de mobilidade e "formas identitárias"
Em contraste com a primeira abordagem que privilegiava os quadros sociais da identificação, esta se apoia antes nos processos identitários individuais, no sentido em que seu ponto de partida está no relato do próprio "percurso" por um indivíduo, numa entrevista de pesquisa. A hipótese principal norteando a análise é a de que a colocação deste percurso em palavras, numa situação de entrevista considerada como um diálogo focando o sujeito, permite a construção linguística de uma ordem categorial (Sacks 1992) que organiza o discurso biográfico e lhe confere um significado social. Encontrar, por meio de uma análise semântica rigorosa, baseada, por exemplo, na análise estrutural das narrações (Barthes 1967), a estrutura das categorias às quais o relato recorre em seus diferentes níveis (função, ação, narração) e que permeiam o diálogo com o pesquisador (relances, retomada, jeito de falar), permite alcançar, de modo ideal-típico, a lógica (ao mesmo tempo cognitiva e afetiva, pessoal e social) reconstruída pelo sujeito para dar conta dos acontecimentos considerados significativos nesse percurso, assim transformado em enredo (Ricœur 1984) pela entrevista biográfica. É o que se tentou fazer a partir de um corpusde relatos de inserção (Demazière e Dubar 1996).
Chamaremos de trajetória subjetiva esse enredo posto em palavras pela entrevista biográfica e formalizado peloesquema lógico, reconstruído pelo pesquisador por meio da análise semântica. Trata-se da disposição particular, num discurso, das categorias estruturantes do relato, segundo as regras de disjunção e conjunção que suprem a produção de sentido. Trata-se, também, de uma forma de resumo da argumentação, extraído da análise do relato e da descoberta de um ou mais enredos, e dos motivos pelos quais o sujeito está numa situação em que ele mesmo está se definindo, a partir de acontecimentos passados, aberto para um determinado campo de possíveis, mais ou menos desejáveis e mais ou menos acessíveis. Lembraremos que um dos princípios de base da análise estrutural dos relatos é o de que se pode encontrar a conseqüência por trás do encadeamento e a argumentação narrativa por trás da série de seqüências e da intervenção dos agentes. Trata-se, por fim, da organização pessoal de categorias e procedimentos interpretativos (Cicourel 1992), que manifestam a interiorização de um ou mais "universos de crença" dizendo respeito à estrutura social em geral e aos mais diversos campos da prática social (familiar, escolar, profissional, relacional) em particular. Lembraremos que, para os sociólogos cognitivistas, a fala envolve dispositivos de categorização e procedimentos interpretativos que remetem a universos lógicos que estruturam as identidades narrativas.
Na medida em que a expressão dessa trajetória subjetiva é duplamente limitada, pelas categorias lexicais disponíveis e pelas regras sintáticas às quais se recorre por um lado e, por outro lado, pelo contexto da entrevista e pelas perguntas do pesquisador, pode-se avançar a hipótese de que o corpus das entrevistas reunidas e dos esquemas (schème) construídos a partir delas nos permite delimitar, de maneira indutiva, tipos de argumentação, disposições típicas, configurações significativas de categorias que chamaremos de formas identitárias. O termo "identidade" é aqui empregado no sentido particular de articulação de um tipo de espaço significativo de investimento de si com uma forma de temporalidade considerada como estruturante em seu ciclo de vida (Dubar 1991). Este sentido é muito próximo do de "espaço-tempo geracional", associado à idéia de busca (Erickson 1972) e pode ser considerado como a síntese do ponto de vista "estratégico/cultural" desenvolvido, por exemplo, em L'identité au travail de Sainsaulieu (1985) com o ponto de vista "genético/estrutural" teorizado, por exemplo, em Le sens pratique de Bourdieu (1980). As formas identitárias são tipos-ideais construídos pelo pesquisador para dar conta da configuração e da distribuição dos esquemas de discurso delimitados pela análise precedente. Elas constituem recategorizações a partir das ordens categoriais circunscritas pela análise indutiva dos relatos, comparados uns com os outros antes de serem reagrupados por "agregação em torno de unidades-núcleos" (Grémy e Le Noan 1977).
Nas pesquisas centradas sobre os assalariados de grandes empresas privadas em fase de modernização intensa e os jovens sem diploma em fase de inserção (Dubar 1992), assim como nas pesquisas acerca das relações dos desempregados "contumazes" com os funcionários da AnpeII (Demazière 1992), quatro formas identitárias foram indutivamente delimitadas a partir de um corpus de esquemas de entrevistas de pesquisa:
- as identidades de empresa, que dizem respeito aos relatos combinando mobilização e trabalho, desejos de promoção interna ("subir") e fé na cooperação (prioridade dada aos saberes de organização);
- as identidades de rede caracterizam relatos mistos de individualismo, antecipações de mobilidade externa ("social"), e fé nas virtudes da autonomia e do diploma (prioridade dada aos saberes teóricos, gerais);
- as identidades de categorias, subjacentes aos relatos valorizando a especialização, projetando-se nas filièresde "profissões" julgadas desvalorizadas ("bloqueadas"), e marcadas por conflitos (prioridade dada aos saberes técnicos);
- as identidades fora do trabalho emergem de relatos e do trabalho instrumental, da valorização da estabilidade questionada ("ameaça de exclusão") e de afirmações de dependências dolorosas (prioridades dadas aos saberes práticos).
Trata-se, portanto, de pesquisas e de entrevistas que, por razões de princípios (Dubar 1991) mas igualmente por oportunidades ligadas aos mandos institucionais de pesquisa, privilegiam os campos do trabalho, do emprego e da formação. Essas formas identitárias são, portanto, rigorosamente, formas de identidades profissionais (no sentido francês do termo), centradas nas relações entre o mundo da formação e o mundo do trabalho ou do emprego. Trata-se, também, de identidades sociais, exatamente na medida em que, num dado sistema social, a posição social, a riqueza, o status e/ou prestígio dependem do nível de formação, da situação de emprego e das posições no mundo do trabalho. Em outras sociedades, essas dimensões são secundárias diante, por exemplo, dos traços "culturais" definindo identidades étnicas utilizadas "para categorizar a si mesmo e aos outros" (Barth 1989) e permitindo abordagens similares. Nas sociedades contemporâneas, a trilogia formação/emprego/trabalho parece ser a mais estruturante dos "espaços-tempos" individuais e, portanto, da maneira segundo a qual as pessoas - especialmente os homens - "narram sua vida" e categorizam suas situações sucessivas quando assim solicitadas para fins de pesquisa. Pesquisas recentes mostram que as mulheres misturam com muito mais freqüência o universo doméstico a este universo profissional (Battagliola et alii, 1992; Nicole-Drancourt 1990). As identidades típicas precedentes, amplamente contextualizadas (os anos 80, na França, nas grandes empresas privadas), organizam-se sempre em torno de categorias lexicais que constituem uma espécie de denominações inerentes ("ameaçados", "bloqueados", "competentes") muito afastadas das antigas categorias oficiais ("operários", "executivos", "maîtrise"). Mesmo se os indivíduos a elas recorrem em situação de entrevista de pesquisa sociológica, isso não quer dizer que também as usem durante suas sessões de psicanálise: o processo biográfico individual envolve também (e essencialmente, dirão alguns) ligações afetivas e sexuais, identificações familiares, mobilizações psíquicas e libidinais múltiplas. O uso sociológico do termo "identidade" pressupõe que a identidade "social" remete a categorias que atualizam um "estatuto principal" (Hughes 1958) e, portanto, a categorizações que o exprimam: na França, as CSPIII/PCSIV constituem, a priori, um quadro estruturante da categorização social, embora não sejam as únicas.

Trajetórias objetivas e trajetórias subjetivas: O quantitativo e o qualitativo em face das identidades
Esta última parte será essencialmente programática, uma vez que poucas pesquisas conseguiram relacionar, de modo convincente, os dois procedimentos acima sem instrumentalizar um à lógica do outro. Existem tentativas de se relacionar análises de "percursos típicos" (Dubar et alii, 1987; Nicole-Drancourt 1990; Demazière 1992), mas a articulação das duas análises continua problemática: quer a análise estatística prévia sirva somente para selecionar uma pequena amostra de casos, cuja análise constitui a seguir o essencial dos resultados (lógica da restituição), quer as entrevistas sirvam apenas para exemplificar tipos obtidos pela análise estatística puramente nominalista (lógica da ilustração). Estabelecer relações entre esquemas discursivos de relatos biográficos e processos estruturais de determinação social continua sendo um exercício essencialmente virtual.
Esta insuficiência empírica não impede que certos escritos teóricos postulem uma correspondência íntima, e até uma estrita dependência causal, entre as "formas de discurso" vinculadas a sistemas de opiniões, de atitudes ou de disposições e as "trajetórias objetivas" mais típicas. Ora, trata-se de hipóteses simplificadoras que devem ser submetidas a observações empíricas suscetíveis, quando não para "validá-las", pelo menos para torná-las críveis. Para que tal credibilidade tenha fundamentos, é preciso que os dados quantitativos, permitindo a determinação das "trajetórias objetivas", e os dados qualitativos, gerindo a produção de relatos típicos de percursos biográficos, isso é, de "trajetórias subjetivas", sejam ao mesmo tempo comparáveis e produzidos de modo autônomo. Para serem comparáveis, é preciso que as "classes de trajetórias objetivas" sejam interpretáveis de modo compreensível e que os "discursos típicos" incidam mesmo sobre a compreensão do sentido da biografia social dos sujeitos (esta noção remete ao ponto de vista sociológico sobre uma biografia singular, mas também à interpretação biográfica de uma "trajetória social objetiva"). Para que a confrontação surta efeitos, é preciso também que os agrupamentos de "relatos" ou de seus esquemas não recorram às categorias oriundas da análise estatística: caso contrário, só encontraremos na análise do "qualitativo" o que nela colocamos a partir do "quantitativo" (é a postura "ilustrativa" tão comum na utilização das entrevistas em sociologia). É preciso também que os dados de entrevistas sejam analisados e condensados em, salientando "ordens categoriais" que possam ser confrontadas com as classes de nomenclaturas estatísticas e não simplesmente retranscritas e entregues, tal qual, à perspicácia do leitor (esta é a postura "restitutiva" quase tão freqüente quanto a precedente).
Podemos agora perceber melhor as dificuldades envolvidas nessa operação. De fato, a tentação de se associar os quatro grandes tipos de "trajetórias objetivas" (cf. § 2) às quatro "formas identitárias" (cf. § 3) esbarra em inúmeras objeções metodológicas dizendo respeito aos modos de produção desses conceitos tipológicos e sua dependência para com contextos de pesquisa. Parece mesmo que as poucas tentativas organizadas para relacionar a distribuição estatística de amostras de indivíduos, segundo sua "forma identitária dominante" (isso é, na realidade, a forma à qual se pode vincular este discurso proferido em circunstâncias determinadas e, portanto, contingentes) e sua "classe de trajetória" estatisticamente demarcada com a ajuda de indicadores considerados "objetivos", não deixa transparecer fortes correlações (Dubar 1992; Demazière 1992). Mesmo se as "identidades fora do trabalho", associadas às "ameaças de exclusão", parecem mais freqüentemente o destino de indivíduos tendo trajetórias sociais descendentes ou de rigidez socioprofissional (mas, também, de operários idosos sem diplomas), e as "identidades de rede", o fado de pessoas tendo trajetórias de "contramobilidade" (mas igualmente dos jovens diplomados que se consideram profissionalmente desclassificados), não se pode concluir haver uma determinação forte das trajetórias "objetivas" sobre as "formas identitárias" associadas a formas de discurso biográfico expressando as "trajetórias subjetivas". Contudo, temos de ser muito cautelosos nesse ponto: as pesquisas não nos permitem afirmar nada de modo convincente.
Um dos problemas mais árduos é o da dupla passagem da trajetória "objetiva", num campo determinado (profissional, educativo, familiar), para a "trajetória social global" por um lado, e da forma identitária à qual se pode vincular um relato especializado (profissional, educativo, familiar) para uma "forma identitária geral", que diria respeito a todos os campos. Será possível, nas sociedades contemporâneas, reduzir o fato de um indivíduo pertencer a um dado momento a uma posição única numa "escala social"? Será possível categorizar um discurso por uma configuração única de apreciações sobre sua "biografia social"? A "sociologia da configuração", defendida por Norbert Elias como definição específica da disciplina (1991b), implicando que se leve em conta tanto as estruturas institucionais quanto a experiência vivida que os indivíduos têm dessas estruturas" (trad. 1991a) não seria essencialmente um projeto teórico? Será que isso não supõe um distanciamento histórico, que implica a reconstituição ex post da experiência subjetiva a partir de traços heterogêneos, escolhendo-se uma "biografia exemplar" (1991c) à luz do que os trabalhos históricos têm reconstituído da época? Percebemos bem a dificuldade existente quando tentamos conciliar a distância necessária para a construção de "trajetórias objetivas" com a proximidade inerente da reconstituição de "trajetórias subjetivas". Não é de espantar que raramente se recorra, de maneira rigorosa, a ambos os pontos de vistas numa mesma pesquisa.
Um último problema, particularmente delicado, é o de apreender a dinâmica das "formas identitárias" que abrange ao mesmo tempo os processos de conversão de uma forma em outra e as transformações internas, no tempo, de cada uma das formas, confrontando-as às mudanças institucionais. Só existe um caminho, ao meu ver, capaz de nos levar lá: o "verdadeiro" longitudinal (distinto do retrospectivo), consistindo em "acompanhar" populações, regularmente instigadas a "se narrarem", em instituições que possam ser monitoradas no decorrer do tempo. Assim apresentada, a análise das trajetórias parece aproximar-se do trabalho dos historiadores e sua confrontação necessária com várias temporalidades, com a ajuda de conceitos tipológicos (Passeron 1991) que dizem respeito tanto a "figuras individuais" (o empresário protestante ou o perito de Weber, o burguês de Sombart, o Affluent Worker de Goldthorpe et alii) quanto a tipos de funcionamentos e de categorias institucionais (a burocracia weberiana, a grande empresa competitiva de Goldthorpe). A arte de tornar compreensíveis as relações entre essas temporalidades é um recurso raro que os sociólogos não podem ignorar.
Se tomarmos a sério as exigências empíricas da sociologia e se nos recusarmos a dar preferência às categorias "oficiais" e "instituídas" sobre as categorias "linguísticas" e "instituidoras", não há outro caminho para avançar na elucidação da dinâmica social, a não ser correlacionando análises objetivantes dos "movimentos de mobilidade", apreendidos em nível "macro", das estatísticas que permitem reconstruir "trajetórias objetivas" com análises compreensivas das "formas de discursos biográficos", apreendidas em nível "micro", que são, ao mesmo tempo, expressões pessoais de "mundos vividos", "espaços de referência" e "temporalidades subjetivas" que temos chamado, por falta de termo melhor, de "formas identitárias" e que lembram a noção de "configuração" elaborada por Norbert Elias. A ingênua crença sociológica na determinação mecânica das subjetividades pelas "condições objetivas" será necessariamente substituída por laudos problemáticos de dependências parciais e de autonomias irredutíveis, de mediações complexas e de coerências frágeis, de defasagens múltiplas e de indeterminações tenazes. A pesquisa ganhará muito com isso.

À guisa de conclusão
A distinção inicial das duas faces dos processos identitários, para as quais Kaufman propunha um aprofundamento conceitual, revelou-se fecunda para manter uma autonomia, mas também reivindicar uma articulação entre dois procedimentos tão importantes quanto diferentes. Um permite esclarecer de que maneira os "quadros sociais de identificação" - traduzidos em categorias estatísticas e em conceitos operatórios permitindo analisar as "trajetórias objetivas" - condicionam os percursos individuais. O outro almeja compreender os discursos biográficos como "processos identitários individuais", por meio dos quais as crenças e as práticas dos membros de uma sociedade contribuem para inventar novas categorias, modificar as antigas e reconfigurar permanentemente os próprios "quadros de socialização". Isto quer dizer que as "formas identitárias" não podem ser consideradas como formas estáveis, que seriam preexistentes às dinâmicas sociais que as constróem. Elas não passam de ferramentas de análise, de formas provisórias de inteligibilidade que o sociólogo constrói para "dar conta da maneira segundo a qual os membros dão conta de suas práticas" (Garfinkel 1967).
Será o termo "identidade" realmente necessário para tanto? Não acarretaria ele o risco permanente de uma deriva essencialista, associando-o a "tipos de personalidade", a "formas estáveis de percurso" atualizando uma determinação inicial (seja ela de origem biológica, cultural ou mística)? Pode ser. De fato, seu interesse é de ordem problemática e programática: era preciso salientar a questão das relações entre esses dois processos, dizendo respeito a procedimentos de pesquisa diferentes como os processos biográficos individuais e as dinâmicas institucionais coletivas ("históricas") que mantêm e fazem evoluir as categorias sociais ao delimitar as formas de mobilidade. Essas relações parecem-me incontornáveis uma vez que os discursos biográficos recorrem, necessariamente, a categorias lingüísticas vinculadas a categorizações sociais e que as dinâmicas institucionais passam por indivíduos com biografias determinantes. Isso sem falar dos inúmeros obstáculos de método e de terminologia que dificilmente serão superados. Seria isso suficiente para nos fazer desistir?

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* Artigo Traduzido por Alain P. François 

** Laboratoire Printemps (Professions/Institutions/Temporalités) Revues Sociétés Contemporaines, 1997. Université de Versailes.
I. CDI: Contrato com duração indeterminada

II. Agence Nationale pour l'Emploi: órgão público que, sob a tutela do Ministère du Travail, é responsável pelo controle do mercado de empregos.

III. CPS: Categoria Socio-profissional/antiga codificação do INEE: Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos 

IV. PCS: Profissão e Categoria Social/ Nova classificação desde 1982
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000100002