Aí abaixo, você tem um ensaio sobre a questão das identidades, de autoria de Claude Dubar, especialista francês na abordagem do assunto. Não é nem necessário dizer que a questão da identidade tem assumido um lugar central na sociedade contemporânea e no seio da análise social, seja pelas modalidades da sua construção e/ou desconstrução, seja pelos 'desvios de personalidade' que levam inclusive a delitos/crimes, seja ainda por outra razão qualquer. A conferir o trabalho de Dubar.
Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns
esclarecimentos conceituais e metodológicos*
Por Claude Dubar
Este
texto almeja distinguir e, a seguir, pôr em paralelo os dois modos de se
considerar qualquer trajetória individual: objetivamente, como uma
"seqüência de posições" num ou mais campos da prática social, e
subjetivamente, como uma "história pessoal" cujo relato atualiza
visões de si e do mundo. Não raro, ambos os pontos de vista interferem nos usos
múltiplos da noção de identidade. Esclarecer os diversos sentidos deste termo
será, aqui, diretamente relacionado à explicitação dos métodos de análise
subjacentes aos usos empíricosda
noção de identidade. Isso resulta em duas maneiras muito diferentes de se
analisar trajetórias individuais, em função do que se entende por este termo.
O ponto de vista aqui apresentado defende que
igual importância seja dada às categorias institucionais, determinando
"posições objetivas" (escolares, profissionais...), e às categorias
de linguagem utilizadas por indivíduos em situação de entrevista de pesquisa.
Para o sociólogo, tomar a sério falas sobre si mesmo vindo
de um sujeito incitado "a se narrar" e entrando num diálogo
particular, verdadeiro "exercício espiritual" (Bourdieu 1993), com um
pesquisador capacitado para escutar, talvez constitua uma condição sine
qua non para
um uso sociológico da noção de identidade.
Apresentação do problema: As duas faces dos
processos identitários
O artigo de Jean-Claude Kaufman (1994),
mencionando em várias oportunidades meu livro sobre La
Socialisation(1991), permite-me retomar uma questão central em qualquer análise
sociológica de trajetórias individuais. Quero falar da distinção entre dois
universos de sentido vinculados à palavra "identidade" nas ciências
sociais. O primeiro que Kaufman nos propõe chamar de processo
identitário individual é, geralmente, apreendido a partir de
produções de linguagem do tipo "biográfico" e diz respeito às
diversas maneiras pelas quais indivíduos tentam dar conta de suas trajetórias
(familiares, escolares, profissionais...) por meio de uma "história",
no intuito, por exemplo, de justificar sua "posição" em dado momento
e, às vezes, antecipar seus possíveis futuros. Na medida em que o que está
mesmo em jogo aqui é a (re)construção subjetiva de uma definição de si, eu
mesmo propusera chamar este processo, condensado em poucas fórmulas, de
"identidade biográfica" ou, ainda, de "identidade para si".
O segundo diz respeito ao que Kaufman chama de quadros
sociais da identificação, ou, ainda, quadros de socialização e
envolve as categorias utilizadas para identificar um indivíduo num dado espaço
social (o que eu mesmo chamei de "identidade estrutural" ou
"identidade para outrem"), as categorias do discurso do indivíduo
definindo-se do ponto de vista de outrem (quer este outrem seja
"significativo" e personalizado, quer seja "generalizado" e
institucional) inclusive. Na linha de G-H Mead (1993), Kaufman propõe que
voltemos ao termo de "papel" para designar este aspecto da
identidade.
O modo de pensar e tornar operacional esta
distinção entre "identidade pessoal" (o que sou/gostaria de ser) e
"identificação social" (como sou definido/o que dizem que sou) dá
margem a múltiplos desdobramentos e permite caracterizar, de modo bastante
grosseiro, não apenas as grandes teorias da socialização na literatura das
ciências sociais (Dubar 1991) como também as concepções correntes, subjacentes
aos discursos comuns, que, às vezes, constituem uma espécie de vulgarização das
primeiras. Duas orientações se opõem: uma, chamada por alguns de
"psicologizante", mas que prefiro chamar de essencialista,
fundada no postulado da realidade de um self(ou de um ego, ou de um
eu...) como realidade "substancialista", permanente e autônoma
construindo sua unidade (Abramowski 1987 etc.); e a outra, inversa, às vezes
chamada de "sociologista", embora eu prefira chamá-la de relativista,
que reduz o self e,
portanto, a identidade biográfica a uma "ilusão", ocultando a
pluralidade dos papéis sociais e sua dependência para com a posição ocupada em
cada campo social em particular, e no sistema das classes sociais em geral
(Bourdieu 1986).
Não é simplesmente, nem talvez primeiramente,
o estatuto da individualidade que está em jogo nesta polarização entre dois
modos de se abordar a questão da identidade. É também, e talvez acima de tudo,
a concepção do "social" e a relação estabelecida entre categorização
e identificação. Para os que consideram a identidade como vinculada a uma
"essência individual" - quer se trate de caráter, personalidade ou
qualquer outro traço permanente -, a identificação psíquica precede
e orienta a categorização
social: o self,
constituído de maneira precoce no jogo das identificações da primeira infância,
condiciona e norteia uma biografia vivenciada ou interpretada como destino
("torna-ti o que és"). O "social" emerge, então, como uma
espécie de superestrutura, um exterior ou um ambiente do sujeito, quer este
seja o do inconsciente ou o das condutas socializadas (o pólo
"passivo" do ego ou o pólo "ativo" do eu, na terminologia
meadiana). Para os que consideram a identidade biográfica como uma "ilusão",
as categorizações sociais determinam identificações coletivas que constituem
uma matriz de disposições (o habitus em
Bourdieu), condicionando o acesso a posições sociais e o cumprimento de papéis
sociais. As categorias sociais, interiorizadas no decorrer do ciclo de vida
(níveis escolares, categorias profissionais, posições culturais...), constituem
o material a partir do qual os indivíduos inventam para si identidades
singulares, para unificar suas existências e tentar fazer valer sua pretensão
em um ou outro campo da prática social. Mas então é a trajetória social
"objetiva", categorizada pelas instituições, que determina as
identificações subjetivas e, conseqüentemente, "a pessoa não existe de
fato fora de seus quadros sociais" (Elias 1991a).
Diante de ambas as posturas, inconciliáveis
quanto à questão da identidade, a história das ciências sociais oferece várias
tentativas conceituais, buscando ultrapassar a oposição entre o essencialismo
de uma identidade pessoal preestabelecida e o relativismo das categorizações
sociais diversas, estruturando identidades biográficas ilusórias. Só abordarei
aqui as que tentaram tal ultrapassagem a partir da vertente sociológica, isto
é, tomando a sério os processos de categorização social na construção das
identidades individuais. De fato, considerar a identidade de alguém como um
processo e não como uma espécie de estado inicial (e a
fortiori como
um destino) não implica ipso facto que a
subjetividade das elaborações biográficas (por exemplo, em entrevistas de
pesquisas) deva ser considerada como ilusória nem mesmo "secundária"
em face das determinações sociais objetivas. Inversamente, tomar muito a sério
os modos subjetivos pelo quais indivíduos se narram não significa,
necessariamente, menosprezar o lugar das categorizações "objetivas"
nas construções identitárias pessoais. Entre o ponto de vista
"essencialista" das entidades como "unidades psíquicas coerentes
e permanentes" (Mary Douglas 1990) e o ponto de vista
"relativista" das "fórmulas mutáveis destinadas a se engendrar
através dos acontecimentos" (Gofman 1968), um ponto de vista relacional a
respeito dos processos identitários pode ser encontrado em tradições de
pesquisas tão diferentes quanto a abordagem genética de Piaget, a fenomenologia
de Schütz, a escola de Chicago ou a etnometodologia. Este ponto de vista será,
também, encontrado em certas tentativas mais recentes de desenvolver abordagens
longitudinais de diversos tipos de populações, que procuram integrar as
relações entre a subjetividade dos "relatos de vida" e a imposição
das categorizações institucionais.
É uma posição constante dos sociólogos
de Chicago, esta
de considerar os documentos pessoais e, mais particularmente, os materiais
biográficos, como dados sociológicos importantes e suscetíveis de interferir
nos processos sociais mais estruturantes. A noção de identidade elaborada por
Everett Hughes, Howard Becker ou Anselm Strauss almeja, cada qual a seu modo,
articular quadros sociais de identificação (e, essencialmente, asfilières profissionais,
estruturando os espaços de trabalho ou as categorizações dos grupos desviantes)
com itinerários individuais, apreendidos de maneira compreensiva. Ela atribui
um lugar privilegiado às interações sempre suscetíveis de infletir, e até mesmo
de "converter" as identidades anteriores. Ela concede um valor
importante aos processos de negociação, de transação (Strauss 1992) e de
compromisso entre as "definições de situação" (Thomas e Znaniecki
1919) resultando das interações presentes e dos esquemas culturais (valores e
atitudes) oriundos da socialização passada. Mesmo se essa tradição não legou a
seus sucessores uma "teoria" unificada da identidade, ela produziu
pesquisas muito sugestivas e formalizou eixos de um procedimento indutivo
relativamente operatório (Glaser e Strauss 1967).
Mais recentemente, o fato de levar em conta
trajetórias, itinerários e percursos individuais traduziu-se, na França, por
uma abundância de trabalhos empíricos promissores que, embora não unificados
teoricamente, privilegiam as abordagens longitudinais e se
recusam a favorecer uma das duas posições acima definidas (Coutrot e Dubar
1992). Esses trabalhos, na sua grande maioria, almejam reconstruir
indutivamente classes de percursos, principalmente no mercado de trabalho, para
aproximá-las das categorias consideradas como mais ou menos
"objetivas" (classes de idades, níveis escolares, categorias
profissionais, setores de atividade, tipo de empresas). Às vezes, eles tentam
também interpretar relatos biográficos de maneira mais compreensiva, recorrendo
a categorias mais "subjetivas". Não raro, eles buscam relacionar
políticas institucionais com práticas de emprego, de formação, de mobilidade.
Algumas destas pesquisas procuram contrapor "classes de trajetórias
biográficas", delimitadas por meio de calendários de atividade, com
"tipos de relatos biográficos", reconstruídos a partir de dados de
entrevistas (Demazière e Dubar 1996). Elas recorrem também à noção de
identidade, embora de forma específica, articulando a análise das categorizações
mais ou menos oficiais ou mais informais com a das trajetórias interpretadas
subjetivamente (Demazière 1992; Pottier 1992). Essas pesquisas procuram
relacionar "trajetórias subjetivas" com "mundos vividos",
organizados em torno de categorias específicas e oriundos da análise de relatos
biográficos, e propõem a noção de "formas identitárias" (Dubar 1991,
1992; Demazière 1992; Demazière e Dubar 1996). A seqüência deste texto será
dedicada a precisar o sentido desses conceitos e a traduzi-los em orientações
metodológicas.
Trajetórias "objetivas" e
"classes de trajetórias típicas"
A primeira grande dificuldade para as
abordagens longitudinais consiste em reagrupar a multiplicidade de itinerários,
demarcados a partir de posições sucessivas, numa variável sintética abrangendo
todos os estados possíveis, num pequeno número de "classes de
trajetórias" reunindo os itinerários considerados semelhantes. Isto se
consegue de maneira indutiva,
por meio de uma análise de variância minimizando a dispersão dentro de cada
classe e maximizando a variância interclasses, isto é, a distância vetorial
entre as classes. Com isso, procura-se obter o menor número possível de
classes, reunindo um número máximo de itinerários. A dificuldade principal
consiste em caracterizar as classes assim obtidas e em conferir-lhes um sentido
que não seja puramente nominalista. Desse modo, a
categoria de "estabilização" aplicada a todos os itinerários de
inserção de jovens que, durante os três (Pottier 1992) ou sete (Demazière e
Dubar 1996) primeiros anos após o fim de seus estudos, possuem um CDII constando
apenas um ou dois empregadores não implica que todos os jovens contemplados se
considerem "estabilizados" ou queiram permanecer
"estabilizados" no seu emprego (nem mesmo que recorram a este termo
para "se narrar"). O mesmo acontece com a categoria de exclusão,
freqüentemente utilizada para definir o percurso de jovens não inseridos que
nunca conseguiram um CDI (Demazière e Dubar 1994) ou de desempregados
"contumazes" "desmotivados" que acham não mais poder
encontrar um emprego (Demazière 1992, 1996): ela se baseia raramente numa
explicitação dos sentidos veiculados pelos usos sociais e políticos que, na maioria
das vezes, remetem mais a um estado do que a um processo (Dubar 1996; Paugham
1996). Diante da falta de análise qualitativa rigorosa, a adequação da
categorização do pesquisador com a da pessoa em questão resulta, muitas vezes,
problemática e o risco é grande, para o sociólogo, de considerar categorias
administrativas ou termos do debate social como conceitos descritivos, e de,
portanto, confundir "nominação" com "etiquetagem".
A segunda dificuldade, mais temível, é a de
ordenar e interpretar as diversas classes de trajetórias em termos de
mobilidade social. Para que um itinerário de emprego ou um itinerário
matrimonial (ou residencial) possa ser sociologicamente interpretável, é
geralmente preciso que os estados usados para avaliá-lo sejam hierarquizados de
modo a podermos distinguir "trajetórias ascendentes",
"descendentes" e "estagnantes". Trata-se, dessa vez, de um
procedimento dedutivo consistindo
em confrontar as classes empíricas obtidas pela tipologia estatística com
trajetórias teóricas resultando de um modelo a priori.
Pode-se utilizar, por exemplo, um modelo
simplificado derivado da hipótese - formulada, entre outros, por Bourdieu (1974)
- segundo a qual é a inclinação da trajetória social que determina o sistema de
disposições (habitus) que estrutura as práticas sociais. Podemos
aplicá-lo à mobilidade tanto intergeracional (avós/pais/entrevistados) quanto
intrageracional: basta definir pontos de referências temporais precisos (por
exemplo: fim dos estudos/ingresso na vida ativa/posição quando da entrevista) e
medir a posição social do indivíduo numa mesma escala (exemplo: classes
superiores[S]/Médias[M]/Populares[ P])
nestes três momentos.
Chamaremos de trajetória
objetiva a
seqüência de posições sociais ocupadas por um indivíduo ou sua linhagem.
Selecionando três pontos no tempo, por exemplo, e medindo a posição por meio de
uma variante tricotômica, obtemos 27 trajetórias teóricas que podem ser
agrupadas da seguinte maneira:
- As trajetórias de rigidez
social (n=3)
de tipo SSS/MMM/PPP
- As trajetórias de ascensão
social (n=7)
de tipo MSS/MMS/PMS
- As trajetórias de descida
social (n=7)
de tipo SMM/SSM/MMP
- As trajetórias de contramobilidade
social (n=10)
que podemos distinguir em:
· contramobilidade em V (n=5) de tipo SMS/MPM/SPS/SPM
· contramobilidade em 2 (n=5) de tipo MSM/PMP/PSP/MSP
A confrontação deste "modelo",
dedutivo e combinatório, com as classes obtidas indutivamente por agrupamento
estatístico permite-nos chegar a "classes de trajetórias típicas" que
possuem, ao mesmo tempo, um significado teórico e uma representatividade
empírica. Não raro, de fato, essas "classes teóricas" não seriam
representadas numa amostra de trajetórias empiricamente reconstruídas (por meio
de um questionário biográfico ou de um calendário de atividade). Também é
possível testar vários modelos para determinar o que melhor se adapta às
classes obtidas indutivamente.
Trata-se de uma análise "objetivista"
das trajetórias na medida em que não se leva em conta o sentido subjetivo que
os indivíduos atribuem ao próprio percurso. Trata-se, também, de uma análise
necessariamente redutora, uma vez que a posição, num dado momento, é medida
numa escala apenas. É a relação entre as posições sucessivas que importa no
modelo e não cada posição isolada.
Notemos ainda, para concluir essa primeira
abordagem, que, em Bourdieu, cada grande tipo de trajetória é, às vezes,
associado a um "habitus de classe" levando em conta ao
mesmo tempo a inclinação e o "nível" (de chegada) da trajetória
social. Obviamente, um operário filho e neto de operário não tem o mesmo habitus que
um alto executivo, filho e neto de empresário. Podemos, contudo, avançar a
hipótese de que a "ancoragem" de cada um em sua classe induz certas
disposições homólogas. O modelo, em Bourdieu, é essencialmente
hipotético-dedutivo, e os traços interpretados em termos de habitus são
associados tanto a trajetórias quanto a posições. No entanto, os habitus de
classe, expressos principalmente em termos de "qualidades", são
empiricamente relacionados antes com posições do que com trajetórias
estatisticamente medidas, o que torna seu modelo ambíguo (Dubar 1991, cap. 3).
Trajetórias "subjetivas", lógicas
de mobilidade e "formas identitárias"
Em contraste com a primeira abordagem que
privilegiava os quadros sociais da identificação, esta se apoia antes nos
processos identitários individuais, no sentido em que seu ponto de partida está
no relato do próprio "percurso" por um indivíduo, numa entrevista de
pesquisa. A hipótese principal norteando a análise é a de que a colocação deste
percurso em palavras, numa situação de entrevista considerada como um diálogo
focando o sujeito, permite a construção linguística de uma ordem
categorial (Sacks
1992) que organiza o discurso biográfico e lhe confere um significado social.
Encontrar, por meio de uma análise semântica rigorosa,
baseada, por exemplo, na análise estrutural das narrações (Barthes 1967), a
estrutura das categorias às quais o relato recorre em seus diferentes níveis
(função, ação, narração) e que permeiam o diálogo com o pesquisador (relances,
retomada, jeito de falar), permite alcançar, de modo ideal-típico, a lógica (ao mesmo
tempo cognitiva e afetiva, pessoal e social) reconstruída pelo sujeito para dar
conta dos acontecimentos considerados significativos nesse percurso, assim
transformado em enredo (Ricœur 1984) pela entrevista biográfica. É o que se
tentou fazer a partir de um corpusde relatos de inserção
(Demazière e Dubar 1996).
Chamaremos de trajetória
subjetiva esse
enredo posto em palavras pela entrevista biográfica e formalizado peloesquema
lógico, reconstruído pelo pesquisador por meio da análise semântica. Trata-se
da disposição particular, num discurso, das categorias estruturantes do relato,
segundo as regras de disjunção e conjunção que suprem a produção de sentido.
Trata-se, também, de uma forma de resumo da argumentação, extraído da análise
do relato e da descoberta de um ou mais enredos, e dos motivos pelos quais o
sujeito está numa situação em que ele mesmo está se definindo, a partir de
acontecimentos passados, aberto para um determinado campo de possíveis, mais ou
menos desejáveis e mais ou menos acessíveis. Lembraremos que um dos princípios
de base da análise estrutural dos relatos é o de que se pode encontrar a
conseqüência por trás do encadeamento e a argumentação narrativa por trás da
série de seqüências e da intervenção dos agentes. Trata-se, por fim, da
organização pessoal de categorias e procedimentos interpretativos (Cicourel
1992), que manifestam a interiorização de um ou mais "universos de
crença" dizendo respeito à estrutura social em geral e aos mais diversos
campos da prática social (familiar, escolar, profissional, relacional) em
particular. Lembraremos que, para os sociólogos cognitivistas, a fala envolve
dispositivos de categorização e procedimentos interpretativos que remetem a
universos lógicos que estruturam as identidades narrativas.
Na medida em que a expressão dessa trajetória
subjetiva é duplamente limitada, pelas categorias lexicais disponíveis e pelas
regras sintáticas às quais se recorre por um lado e, por outro lado, pelo
contexto da entrevista e pelas perguntas do pesquisador, pode-se avançar a
hipótese de que o corpus das
entrevistas reunidas e dos esquemas (schème) construídos a partir delas
nos permite delimitar, de maneira indutiva, tipos de argumentação, disposições
típicas, configurações significativas de categorias que chamaremos de formas
identitárias. O termo "identidade" é aqui empregado no sentido
particular de articulação de um tipo de espaço significativo de investimento de
si com uma forma de temporalidade considerada como estruturante em seu ciclo de
vida (Dubar 1991). Este sentido é muito próximo do de "espaço-tempo
geracional", associado à idéia de busca (Erickson 1972) e pode ser
considerado como a síntese do ponto de vista "estratégico/cultural"
desenvolvido, por exemplo, em L'identité au travail de
Sainsaulieu (1985) com o ponto de vista "genético/estrutural"
teorizado, por exemplo, em Le sens pratique de
Bourdieu (1980). As formas identitárias são tipos-ideais construídos pelo
pesquisador para dar conta da configuração e da distribuição dos esquemas de
discurso delimitados pela análise precedente. Elas constituem recategorizações
a partir das ordens categoriais circunscritas pela análise indutiva dos
relatos, comparados uns com os outros antes de serem reagrupados por
"agregação em torno de unidades-núcleos" (Grémy e Le Noan 1977).
Nas pesquisas
centradas sobre os assalariados de grandes empresas privadas em fase de
modernização intensa e os jovens sem diploma em fase de inserção (Dubar 1992),
assim como nas pesquisas acerca das relações dos desempregados
"contumazes" com os funcionários da AnpeII (Demazière
1992), quatro formas identitárias foram indutivamente delimitadas a partir de
um corpus de
esquemas de entrevistas de pesquisa:
- as identidades de empresa, que
dizem respeito aos relatos combinando mobilização e trabalho, desejos de
promoção interna ("subir") e fé na cooperação (prioridade dada aos
saberes de organização);
- as identidades de rede caracterizam
relatos mistos de individualismo, antecipações de mobilidade externa
("social"), e fé nas virtudes da autonomia e do diploma (prioridade
dada aos saberes teóricos, gerais);
- as identidades de categorias,
subjacentes aos relatos valorizando a especialização, projetando-se nas filièresde
"profissões" julgadas desvalorizadas ("bloqueadas"), e
marcadas por conflitos (prioridade dada aos saberes técnicos);
- as identidades fora do trabalho emergem
de relatos e do trabalho instrumental, da valorização da estabilidade
questionada ("ameaça de exclusão") e de afirmações de dependências
dolorosas (prioridades dadas aos saberes práticos).
Trata-se, portanto, de pesquisas e de
entrevistas que, por razões de princípios (Dubar 1991) mas igualmente por
oportunidades ligadas aos mandos institucionais de pesquisa, privilegiam os
campos do trabalho, do emprego e da formação. Essas formas identitárias são,
portanto, rigorosamente, formas de identidades profissionais (no
sentido francês do termo), centradas nas relações entre o mundo da formação e o
mundo do trabalho ou do emprego. Trata-se, também, de identidades
sociais, exatamente na medida em que, num dado sistema social, a posição
social, a riqueza, o status e/ou
prestígio dependem do nível de formação, da situação de emprego e das posições
no mundo do trabalho. Em outras sociedades, essas dimensões são secundárias
diante, por exemplo, dos traços "culturais" definindo identidades
étnicas utilizadas
"para categorizar a si mesmo e aos outros" (Barth 1989) e permitindo
abordagens similares. Nas sociedades contemporâneas, a trilogia
formação/emprego/trabalho parece ser a mais estruturante dos
"espaços-tempos" individuais e, portanto, da maneira segundo a qual
as pessoas - especialmente os homens - "narram sua vida" e
categorizam suas situações sucessivas quando assim solicitadas para fins de
pesquisa. Pesquisas recentes mostram que as mulheres misturam com muito mais
freqüência o universo doméstico a este universo profissional (Battagliola et
alii, 1992; Nicole-Drancourt 1990). As identidades típicas precedentes,
amplamente contextualizadas (os anos 80, na França, nas grandes empresas
privadas), organizam-se sempre em torno de categorias lexicais que constituem
uma espécie de denominações inerentes ("ameaçados",
"bloqueados", "competentes") muito afastadas das antigas
categorias oficiais ("operários", "executivos", "maîtrise").
Mesmo se os indivíduos a elas recorrem em situação de entrevista de pesquisa
sociológica, isso não quer dizer que também as usem durante suas sessões de
psicanálise: o processo biográfico individual envolve também (e essencialmente,
dirão alguns) ligações afetivas e sexuais, identificações familiares,
mobilizações psíquicas e libidinais múltiplas. O uso
sociológico do termo "identidade" pressupõe que a identidade
"social" remete a categorias que atualizam um "estatuto
principal" (Hughes 1958) e, portanto, a categorizações que o exprimam: na
França, as CSPIII/PCSIV constituem, a
priori, um quadro estruturante da categorização social, embora não sejam as
únicas.
Trajetórias objetivas e trajetórias
subjetivas: O quantitativo e o qualitativo em face das identidades
Esta última parte será essencialmente
programática, uma vez que poucas pesquisas conseguiram relacionar, de modo
convincente, os dois procedimentos acima sem instrumentalizar um à lógica do
outro. Existem tentativas de se relacionar análises de "percursos
típicos" (Dubar et
alii, 1987; Nicole-Drancourt 1990; Demazière 1992), mas a articulação das
duas análises continua problemática: quer a análise estatística prévia sirva
somente para selecionar uma pequena amostra de casos, cuja análise constitui a
seguir o essencial dos resultados (lógica da restituição), quer as entrevistas
sirvam apenas para exemplificar tipos obtidos pela análise estatística
puramente nominalista (lógica da ilustração). Estabelecer relações entre
esquemas discursivos de relatos biográficos e processos estruturais de
determinação social continua sendo um exercício essencialmente virtual.
Esta insuficiência empírica não impede que
certos escritos teóricos postulem uma correspondência íntima, e até uma estrita
dependência causal, entre as "formas de discurso" vinculadas a
sistemas de opiniões, de atitudes ou de disposições e as "trajetórias
objetivas" mais típicas. Ora, trata-se de hipóteses simplificadoras que
devem ser submetidas a observações empíricas suscetíveis, quando não para
"validá-las", pelo menos para torná-las críveis. Para que tal
credibilidade tenha fundamentos, é preciso que os dados quantitativos,
permitindo a determinação das "trajetórias objetivas", e os dados
qualitativos, gerindo a produção de relatos típicos de percursos biográficos,
isso é, de "trajetórias subjetivas", sejam ao mesmo tempo comparáveis
e produzidos de modo autônomo. Para serem comparáveis, é preciso que as
"classes de trajetórias objetivas" sejam interpretáveis de modo
compreensível e que os "discursos típicos" incidam mesmo sobre a
compreensão do sentido da biografia social dos
sujeitos (esta noção remete ao ponto de vista sociológico sobre uma biografia
singular, mas também à interpretação biográfica de uma "trajetória social
objetiva"). Para que a confrontação surta efeitos, é preciso também que os
agrupamentos de "relatos" ou de seus esquemas não recorram às
categorias oriundas da análise estatística: caso contrário, só encontraremos na
análise do "qualitativo" o que nela colocamos a partir do
"quantitativo" (é a postura "ilustrativa" tão comum na
utilização das entrevistas em sociologia). É preciso também que os dados de entrevistas
sejam analisados e condensados em, salientando "ordens
categoriais" que possam ser confrontadas com as classes de nomenclaturas
estatísticas e não simplesmente retranscritas e entregues, tal qual, à
perspicácia do leitor (esta é a postura "restitutiva" quase tão
freqüente quanto a precedente).
Podemos agora perceber melhor as dificuldades
envolvidas nessa operação. De fato, a tentação de se associar os quatro grandes
tipos de "trajetórias objetivas" (cf. § 2) às quatro "formas
identitárias" (cf. § 3) esbarra em inúmeras objeções metodológicas dizendo
respeito aos modos de produção desses conceitos tipológicos e sua dependência
para com contextos de pesquisa. Parece mesmo que as poucas tentativas
organizadas para relacionar a distribuição estatística de amostras de
indivíduos, segundo sua "forma identitária dominante" (isso é, na
realidade, a forma à qual se pode vincular este discurso proferido em
circunstâncias determinadas e, portanto, contingentes) e sua "classe de
trajetória" estatisticamente demarcada com a ajuda de indicadores
considerados "objetivos", não deixa transparecer fortes correlações
(Dubar 1992; Demazière 1992). Mesmo se as "identidades fora do
trabalho", associadas às "ameaças de exclusão", parecem mais
freqüentemente o destino de indivíduos tendo trajetórias sociais descendentes
ou de rigidez socioprofissional (mas, também, de operários idosos sem
diplomas), e as "identidades de rede", o fado de pessoas tendo
trajetórias de "contramobilidade" (mas igualmente dos jovens
diplomados que se consideram profissionalmente desclassificados), não se pode
concluir haver uma determinação forte das trajetórias "objetivas"
sobre as "formas identitárias" associadas a formas de discurso
biográfico expressando as "trajetórias subjetivas". Contudo, temos de
ser muito cautelosos nesse ponto: as pesquisas não nos permitem afirmar nada de
modo convincente.
Um dos problemas mais árduos é o da dupla
passagem da trajetória "objetiva", num campo determinado
(profissional, educativo, familiar), para a "trajetória social
global" por um lado, e da forma identitária à qual se pode vincular um
relato especializado (profissional, educativo, familiar) para uma "forma
identitária geral", que diria respeito a todos os campos. Será possível,
nas sociedades contemporâneas, reduzir o fato de um indivíduo pertencer a um
dado momento a uma posição única numa "escala social"? Será possível
categorizar um discurso por uma configuração única de apreciações sobre sua
"biografia social"? A "sociologia da configuração",
defendida por Norbert Elias como definição específica da disciplina (1991b),
implicando que se leve em conta tanto as estruturas institucionais quanto a
experiência vivida que os indivíduos têm dessas estruturas" (trad. 1991a)
não seria essencialmente um projeto teórico? Será que isso não supõe um
distanciamento histórico, que implica a reconstituição ex
post da
experiência subjetiva a partir de traços heterogêneos, escolhendo-se uma
"biografia exemplar" (1991c) à luz do que os trabalhos históricos têm
reconstituído da época? Percebemos bem a dificuldade existente quando tentamos
conciliar a distância necessária para a construção de "trajetórias
objetivas" com a proximidade inerente da reconstituição de
"trajetórias subjetivas". Não é de espantar que raramente se recorra,
de maneira rigorosa, a ambos os pontos de vistas numa mesma pesquisa.
Um último problema, particularmente delicado,
é o de apreender a dinâmica das "formas identitárias" que abrange ao
mesmo tempo os processos de conversão de uma forma em outra e as transformações
internas, no tempo, de cada uma das formas, confrontando-as às mudanças
institucionais. Só existe um caminho, ao meu ver, capaz de nos levar lá: o
"verdadeiro" longitudinal (distinto do retrospectivo), consistindo em
"acompanhar" populações, regularmente instigadas a "se
narrarem", em instituições que possam ser monitoradas no decorrer do
tempo. Assim apresentada, a análise das trajetórias parece aproximar-se do
trabalho dos historiadores e sua confrontação necessária com várias temporalidades,
com a ajuda de conceitos tipológicos (Passeron 1991) que dizem respeito tanto a
"figuras individuais" (o empresário protestante ou o perito de Weber,
o burguês de Sombart, o Affluent Worker de
Goldthorpe et
alii) quanto a tipos de funcionamentos e de categorias institucionais (a
burocracia weberiana, a grande empresa competitiva de Goldthorpe). A arte de
tornar compreensíveis as relações entre essas temporalidades é um recurso raro
que os sociólogos não podem ignorar.
Se tomarmos a sério as exigências empíricas
da sociologia e se nos recusarmos a dar preferência às categorias
"oficiais" e "instituídas" sobre as categorias
"linguísticas" e "instituidoras", não há outro caminho para
avançar na elucidação da dinâmica social, a não ser correlacionando análises
objetivantes dos "movimentos de mobilidade", apreendidos em nível
"macro", das estatísticas que permitem reconstruir "trajetórias
objetivas" com análises compreensivas das "formas de discursos
biográficos", apreendidas em nível "micro", que são, ao mesmo
tempo, expressões pessoais de "mundos vividos", "espaços de
referência" e "temporalidades subjetivas" que temos chamado, por
falta de termo melhor, de "formas identitárias" e que lembram a noção
de "configuração" elaborada por Norbert Elias. A ingênua crença
sociológica na determinação mecânica das subjetividades pelas "condições
objetivas" será necessariamente substituída por laudos problemáticos de
dependências parciais e de autonomias irredutíveis, de mediações complexas e de
coerências frágeis, de defasagens múltiplas e de indeterminações tenazes. A
pesquisa ganhará muito com isso.
À guisa de conclusão
A distinção inicial das duas faces dos
processos identitários, para as quais Kaufman propunha um aprofundamento
conceitual, revelou-se fecunda para manter uma autonomia, mas também
reivindicar uma articulação entre dois procedimentos tão importantes quanto
diferentes. Um permite esclarecer de que maneira os "quadros sociais de
identificação" - traduzidos em categorias estatísticas e em conceitos
operatórios permitindo analisar as "trajetórias objetivas" -
condicionam os percursos individuais. O outro almeja compreender os discursos
biográficos como "processos identitários individuais", por meio dos
quais as crenças e as práticas dos membros de uma sociedade contribuem para
inventar novas categorias, modificar as antigas e reconfigurar permanentemente
os próprios "quadros de socialização". Isto quer dizer que as
"formas identitárias" não podem ser consideradas como formas
estáveis, que seriam preexistentes às dinâmicas sociais que as constróem. Elas
não passam de ferramentas de análise, de formas provisórias de inteligibilidade
que o sociólogo constrói para "dar conta da maneira segundo a qual os
membros dão conta de suas práticas" (Garfinkel 1967).
Será o termo "identidade" realmente
necessário para tanto? Não acarretaria ele o risco permanente de uma deriva
essencialista, associando-o a "tipos de personalidade", a
"formas estáveis de percurso" atualizando uma determinação inicial
(seja ela de origem biológica, cultural ou mística)? Pode ser. De fato, seu
interesse é de ordem problemática e programática: era preciso salientar a
questão das relações entre esses dois processos, dizendo respeito a
procedimentos de pesquisa diferentes como os processos biográficos individuais
e as dinâmicas institucionais coletivas ("históricas") que mantêm e
fazem evoluir as categorias sociais ao delimitar as formas de mobilidade. Essas
relações parecem-me incontornáveis uma vez que os discursos biográficos
recorrem, necessariamente, a categorias lingüísticas vinculadas a
categorizações sociais e que as dinâmicas institucionais passam por indivíduos
com biografias determinantes. Isso sem falar dos inúmeros obstáculos de método
e de terminologia que dificilmente serão superados. Seria isso suficiente para nos fazer desistir?
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* Artigo Traduzido por Alain P. François
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I. CDI: Contrato com duração indeterminada
II. Agence Nationale pour l'Emploi: órgão
público que, sob a tutela do Ministère du Travail, é
responsável pelo controle do mercado de empregos.
III. CPS: Categoria Socio-profissional/antiga
codificação do INEE: Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos
IV. PCS: Profissão e Categoria Social/ Nova
classificação desde 1982
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000100002