domingo, 31 de março de 2013

O Dia que Durou 21 Anos


A propósito do conhecimento histórico, escreveram Marx e Engels que 'conheciam apenas uma ciência, a ciência da história'. Se for tomada de forma acrítica, esta afirmação pode levar ao equívoco de se abonar, por exemplo, o historicismo conservador (com Ranke, Droysen, Sybel, dentre outros, à frente). Mas há que se continuar a ressaltar que a 'luz do conhecimento histórico' é condição para outros conhecimentos. Neste sentido, o documentário o Dia que Durou 21 Anos, sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil, é um exemplo paradigmático. Abaixo, uma reportagem a respeito do mesmo, realizada pela Folha de São Paulo (edição do dia 29/03/2013) 


Documentário 'O Dia que Durou 21 Anos' busca papel dos EUA no golpe de 1964

PATRÍCIA BRITTO

Diálogos do presidente dos Estados Unidos revelados em gravações da Casa Branca, uma frota naval com um porta-aviões e navios torpedeiros parte da costa norte-americana em direção ao Brasil e um plano de contingência prevê detalhes de um golpe de Estado no maior país da América Latina.
Essas cenas não são de um filme de ficção. Elas estão no documentário brasileiro "O Dia que Durou 21 Anos", que estreia hoje nos cinemas -- às vésperas do aniversário de 49 anos do golpe militar de 1964.
Com direção de Camilo Tavares, o filme destaca o papel dos Estados Unidos para a criação de um ambiente que resultaria no golpe para derrubar o presidente João Goulart, dando início aos 21 anos da ditadura militar no Brasil.

O então presidente dos EUA, John F. Kennedy, e o então embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, na Casa Branca em abril de 1962
O então presidente dos EUA, John F. Kennedy, e o então embaixador
dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, na Casa Branca

A origem da pesquisa para o filme coincide com a busca pela origem de sua própria história, diz Camilo, que nasceu no México, onde seus pais viviam exilados, em 1971, no auge da ditadura militar.
Camilo é filho de Flávio Tavares, um dos 15 presos políticos libertados em troca do embaixador norte-americano sequestrado, Charles Elbrick.
"Queria entender por que sequestraram um americano. A gente tem pouca noção de quanto os Estados Unidos interferiram [no golpe]. Então o filme foi uma busca por essa resposta", disse à Folha.
Resultado de uma pesquisa que durou mais de três anos, o documentário usa como fonte gravações de diálogos da Casa Branca de 1962 a 1964, recentemente tornadas públicas.
Entre elas, uma de junho de 1962 em que "o embaixador dos EUA no Brasil Lincoln Gordon expõe ao então presidente John F. Kennedy a necessidade de uma infiltração nas Forças Armadas brasileiras", conta Flávio Tavares, pai de Camilo e que também participou da produção.
Telegramas do Departamento de Estado dos EUA e arquivos de ex-presidentes norte-americanos também são usados como fontes e revelam "ordens expressas para uma infiltração nas Forças Armadas brasileiras", diz Flávio.
Segundo relatos no filme, a interferência seria consolidada pelo embaixador Gordon e pelo general Vernon Walters, adido militar dos EUA no Brasil de 1962 a 1967.
Os documentos detalham a operação Brother Sam, deflagrada em 31 de março de 1964 e que consistia em uma frota naval vinda dos EUA em direção ao Brasil --que invadiria o país caso não fosse bem sucedida a derrubada do presidente João Goulart.

Comício na Central do Brasil, no Rio, em 1964, em que o presidente João Gourlart pede apoio para as reformas de base
Comício na Central do Brasil, no Rio, em 1964, em que o presidente João Gourlart pede apoio para as reformas de base

O apoio logístico da Marinha dos EUA contava com porta-aviões, navios petroleiros, torpedeiros, aviões-caça e munição. Com a confirmação do golpe, a operação foi desativada, quando se encontrava no mar do Caribe.
O filme traz ainda detalhes de um plano de contingência que previa as etapas do golpe. Entre elas, um Estado deveria se declarar contra o governo de Jango, como fez Minas Gerais, e os EUA deveriam reconhecer um presidente constitucional antes de um militar, como ocorreu com o então presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzilli.
"Foi chocante encontrar esse plano, porque ele previu exatamente o que aconteceu", disse o historiador Carlos Fico, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), um dos entrevistados no filme de Camilo Tavares.

O DIA QUE DUROU 21 ANOS
DIREÇÃO Camilo Tavares
PRODUÇÃO Brasil, 2012
ONDE Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca 4 e Reserva Cultural 1
CLASSIFICAÇÃO 14 anos

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1254117-documentario-o-dia-que-durou-21-anos-busca-papel-dos-eua-no-golpe-de-1964.shtml

sábado, 30 de março de 2013

Da existência em si: o caminhar e o passar dos dias

Abaixo, um texto schopenhaueriano em matéria que é própria do autor: a existência. Título em língua inglesa The Emptiness of Existence, literalmente o vazio da existência

Foto: Leszek Bujnowsk

Arthur Schopenhauer 


Esse vazio encontra sua expressão em toda forma de existência, na infinitude do Tempo e Espaço em oposição à finitude do indivíduo em ambos; no fugaz presente como a única forma de existência real; na dependência e relatividade de todas coisas; em constantemente se Tornar sem Ser; em continuamente desejar sem ser satisfeito; na longa batalha que constitui a história da vida, onde todo esforço é contrariado por dificuldades, até que a vitória seja conquistada. O Tempo e a transitoriedade de todas as coisas são apenas a forma sob a qual o desejo de viver — que, como coisa-em-si, é imperecível — revelou ao Tempo a futilidade de seus esforços; é o agente pelo qual, a todo o momento, todas as coisas em nossas mãos tornam-se nada e, portanto, perdem todo seu verdadeiro valor.
O que foi não mais existe; existe exatamente tão pouco quanto aquilo que nunca foi. Mas tudo que existe, no próximo momento, já foi. Consequentemente, algo pertencente ao presente, independentemente de quão fútil possa ser, é superior a algo importante pertencente ao passado; isso porque o primeiro é uma realidade, e está para o último como algo está para nada.
Um homem, para seu assombro, repentinamente torna-se consciente de sua existência após um estado de não-existência de muitos milhares de anos; vive por um breve período e então, novamente, retorna a um estado de não-existência por um tempo igualmente longo. Isso não pode ser verdade, diz ao seu coração; e mesmo as mentes rudes, após ponderarem sobre o assunto, devem sentir algum tipo de pressentimento de que o Tempo é algo ideal em sua natureza. Essa idealidade do tempo, juntamente com a do espaço, é a chave para qualquer sistema metafísico verdadeiro, pois proporciona uma ordem de coisas distinta da que pode ser encontrada no domínio da natureza. Por essa razão Kant é tão grandioso.
De cada evento em nossa vida, é apenas por um momento que podemos dizer que este é; após isso devemos dizer para sempre que este foi. Cada noite nos empobrece, dia a dia. Provavelmente nos deixaria irritados ver este curto espaço de tempo esvaecendo, se não fôssemos secretamente conscientes, nas maiores profundezas de nosso ser, de que compartilhamos do inexaurível manancial da eternidade, e de que nele podemos sempre ter a vida renovada.
Reflexões com a natureza das acima podem, de fato, nos levar a estabelecer a crença de que gozar o presente e fazer disso o propósito da vida é a maior sabedoria; visto que somente o presente é real, todo o mais é representação do pensamento. Mas tal propósito poderia também ser denominado a maior tolice, pois aquilo que, no próximo instante, não mais existe e desaparece completamente como um sonho, jamais poderá merecer um esforço sério.

Toda a nossa existência é fundamentada tão-somente no presente — no fugaz presente. Deste modo, tem de tomar a forma de um constante movimento, sem que jamais haja qualquer possibilidade de se encontrar o descanso pelo qual estamos sempre lutando. É o mesmo que um homem correndo ladeira abaixo: cairia se tentasse parar, e apenas continuando a correr consegue manter-se sobre suas pernas; como um pólo equilibrado na ponta do dedo, ou como um planeta, o qual cairia no sol se cessasse com seu percurso. Nossa existência é marcada pelo desassossego.
Num mundo como este, onde nada é estável e nada perdura, mas é arremessado em um incansável turbilhão de mudanças, onde tudo se apressa, voa, e mantém-se em equilíbrio avançando e movendo-se continuamente, como um acrobata em uma corda — em tal mundo, a felicidade é inconcebível. Como poderia haver onde, como Platão diz, tornar-se continuamente e nunca ser é a única forma de existência? Primeiramente, nenhum homem é feliz; luta sua vida toda em busca de uma felicidade imaginária, a qual raramente alcança, e, quando alcança, é apenas para sua desilusão; e, via de regra, no fim, é um náufrago, chegando ao porto com mastros e velas faltando. Então dá no mesmo se foi feliz ou infeliz, pois sua vida nunca foi mais que um presente sempre passageiro, que agora já acabou.
Ao mesmo tempo, é algo surpreendente que, tanto no mundo de seres humanos quanto no dos animais em geral, essa variada e incansável moção é produzida e mantida por meio de dois simples impulsos — fome e o instinto sexual, ajudados talvez por um pouco de tédio, mas nada mais —, e estes, no teatro da vida, têm o poder de constituir o primum mobile de uma maquinaria tão complexa, colocando em movimento cenas tão estranhas e variadas!
Analisando os pormenores, constatamos que a matéria inorgânica apresenta um constante conflito entre forças químicas, as quais por vezes promovem a dissolução; por outro lado, a existência orgânica somente é possível através de uma contínua substituição de matéria, e não pode subsistir se não dispuser de uma eterna ajuda exterior. Portanto a vida orgânica é como o balançar de um pólo na mão; deve ser mantida em constante movimento e ter constante suprimento de matéria — da qual necessita continuamente e eternamente. Apesar disso, é apenas através da vida orgânica que a consciência é possível.
Este é o reino da existência finita, e seu oposto seria uma existência infinita, a qual não está exposta a ataques externos nem precisa de ajuda exterior; [grego: aei hosautos on] o reino da paz eterna; [grego: oute gignomenon, oute apollymenon], sem mudanças, sem tempo, sem diversidade; o conhecimento negativo do que constitui a nota fundamental da filosofia platônica. A renúncia da vontade de viver revela o caminho a um tipo de estado como esse.

As cenas de nossa vida são como imagens em um mosaico tosco; vistas de perto, não produzem efeitos — devem ser vistas à distância para ser possível discernir sua beleza. Assim, conquistar algo que desejamos significa descobrir quão vazio e inútil este algo é; estamos sempre vivendo na expectativa de coisas melhores, enquanto, ao mesmo tempo, comumente nos arrependemos e desejamos aquilo que pertence ao passado. Aceitamos o presente como algo que é apenas temporário e o consideramos como um meio para atingir nosso objetivo. Deste modo, se olharem para trás no fim de suas vidas, a maior parte das pessoas perceberá que viveram-nas ad interim [provisoriamente]: ficarão surpresas ao descobrir que aquilo que deixaram passar despercebido e sem proveito era precisamente sua vida — isto é, a vida na expectativa da qual passaram todo o seu tempo. Então se pode dizer que o homem, via de regra, é enganado pela esperança até dançar nos braços da morte!
Novamente, há a insaciabilidade de cada vontade individual; toda vez que é satisfeita um novo desejo é engendrado, e não há fim para seus desejos eternamente insaciáveis.
Isso acontece porque a Vontade, tomada em si mesma, é a soberana de todos os mundos: como tudo lhe pertence, não se satisfaz com uma parcela de qualquer coisa, mas apenas como o todo, o qual, entretanto, é infinito. Devemos elevar nossa compaixão quando consideramos quão minúscula a Vontade — essa soberana do mundo — torna-se quando toma a forma de um indivíduo; normalmente apenas o que basta para manter o corpo. Por isso o homem é tão miserável.
Na presente época, que é intelectualmente impotente e notável por sua veneração daquilo que é ruim em todas formas — um estado de coisas que é bastante condizente com a palavra cunhada “Jetztzeit” (tempo presente), tão pretensiosa quanto é cacofônica — os panteístas atrevem-se a dizer que a vida é, como dizem, “um fim-em-si”. Se nossa existência neste mundo fosse um fim-em-si, seria a mais absurda finalidade jamais determinada; mesmo nós próprios ou qualquer outro poderia tê-la imaginado.
A vida apresenta-se principalmente como uma tarefa, isto é, de subsistir de gagner sa vie [para ganhar a vida]. Se for cumprida, a vida torna-se um fardo, e então vem a segunda tarefa de fazer algo com aquilo que foi conquistado — a fim de espantar o tédio, que, como uma ave de rapina, paira sobre nós, pronto para atacar sempre que vê a vida livre da necessidade.
A primeira tarefa é conquistar algo; a segunda é banir o sentimento de que algo foi conquistado, do contrário torna-se um fardo.
Está suficientemente claro que a vida humana deve ser algum tipo de erro, com base no fato de que o homem é uma combinação de necessidades difíceis de satisfazer; ademais, se for satisfeito, tudo que obtém um estado de ausência de dor, no qual nada resta senão seu abandono ao tédio. Essa é uma prova precisa de que a existência em si mesma não tem valor, visto que o tédio é meramente o sentimento do vazio da existência. Se, por exemplo, a vida — o desejo pelo qual se constitui nosso ser — possuísse qualquer valor real e positivo, o tédio não existiria: a própria existência em si nos satisfaria, e não desejaríamos nada. Mas nossa existência não é uma coisa agradável a não ser que estejamos em busca de algo; então a distância e os obstáculos a serem superados representam nossa meta como algo que nos satisfará — uma ilusão que desvanece assim que o objetivo é atingido; ou quando estamos engajados em algo que é de natureza puramente intelectual — quando nos distanciamos do mundo a fim de podermos observá-lo pelo lado de fora, como espectadores de um teatro. Mesmo o prazer sensual em si não significa nada além de um esforço contínuo, o qual cessa tão logo quanto seu objetivo é alcançado. Sempre que não estivermos ocupados em algum desses modos, mas jogados na existência em si, nos confrontamos com seu vazio e futilidade; e isso é o que denominamos tédio. O inato e inextirpável anseio pelo que é incomum demonstra quão gratos somos pela interrupção do tedioso curso natural das coisas. Mesmo a pompa e o esplendor dos ricos em seus castelos imponentes, no fundo, não passam de uma tentativa fútil de escapar da essência existencial, a miséria.
 O fato de que a mais perfeita manifestação da vontade de viver — o organismo humano, com a sua sutil e complexa maquinaria — deve decair e finalmente render todos os seus esforços à extinção — esse é o simples meio pelo qual a Natureza, invariavelmente verdadeira e sincera, declara todo o esforço da vontade, em sua própria essência, como estéril e inútil. Se tivesse algum valor em si, algo incondicionado e absoluto, seu fim não seria a inexistência. Esta é a nota dominante da bela música de Goethe:
No alto da velha torre
Fica o herói de mente nobre.
[Hoch auf dem alten Thurme steht
Des Helden edler Geist.]
O homem é apenas um fenômeno, não a coisa-em-si — digo: o homem não é [grego: ontos on]; isso se comprova pelo fato de que a morte é uma necessidade.
E quão diferente o começo de nossas vidas é do seu fim! O primeiro é feito de ilusões de esperança e divertimento sensual, enquanto o último é perseguido pela decadência corporal e odor de morte.
O caminho que divide ambas, no que concerne nosso bem-estar e deleite da vida, é a bancarrota; os sonhos da infância, os prazeres da juventude, os problemas da meia-idade, a enfermidade e miséria frequente da velhice, as agonias de nossa última enfermidade e, finalmente, a luta com a morte — tudo isso não faz parecer que a existência é um erro cujas consequências estão se tornando gradualmente mais e mais óbvias?
Seria sábio considerar a vida como um desengaño, uma ilusão; que tudo está organizado nesse sentido: isso está suficientemente claro.
É apenas no microscópio que nossa vida parece grandiosa. É um ponto indivisível, captado e ampliado pelas poderosas lentes do Tempo e do Espaço.
Tempo é um elemento em nosso cérebro que, por meio da duração, cria uma semelhança de realidade na existência absolutamente vazia das coisas e de nós mesmos.
Quanta tolice há no homem que se arrepende e lamenta por não ter aproveitado oportunidades passadas, as quais poderiam ter-lhe assegurado esta ou aquela felicidade ou prazer! O que resta desses agora? Apenas o fantasma de uma lembrança! E é o mesmo com tudo aquilo que faz parte de nossa sorte. De modo que a forma do tempo, em si, e tudo quanto é baseado nisso, é um modo claro de provar a nós a vacuidade de todos deleites terrenos.
Nossa existência, assim como a de todos animais, não é duradoura, mas apenas temporária, meramente uma existentia fluxa, que pode ser comparada a um moinho no qual há constante mudança.
É verdade que a forma do corpo dura por um tempo, mas apenas sob a condição de que a matéria esteja sempre mudando, de que a velha matéria seja descartada e uma nova seja incorporada. É o principal empenho de todas as formas viventes assegurar um constante suprimento de matéria aproveitável. Ao mesmo tempo, estão conscientes de que sua existência é modelada de modo a durar apenas um período de tempo, como foi dito. Por essa razão tentam, quando estão abandonando a vida, deixá-la para outrem que tomará seu lugar. Essa tentativa toma a forma do instinto sexual em autoconsciência, e na consciência de outras coisas apresenta-se objetivamente — isto é, na forma do instinto genital. Esse instinto pode ser comparado ao enfileiramento de uma corrente de pérolas; um indivíduo sucedendo o outro tão rapidamente como as pérolas na corrente. Se nós, em imaginação, acelerarmos essa sucessão, veremos que a matéria está mudando constantemente em toda a fileira assim como está mudando em cada pérola, enquanto retém a mesma forma: percebemos então que temos apenas uma quasi-existência. Que são somente as Ideias que existem e criaturas-sombra daquilo que lhes corresponde — isso é a base dos ensinamentos de Platão.
A ideia de que não somos nada senão um fenômeno, em oposição à coisa-em-si, é confirmada, exemplificada e clarificada pelo fato de que a conditio sine qua non de nossa existência é um contínuo fluxo de descarto e aquisição de matéria que, como nutrição, é uma constante necessidade. De modo que nos assemelhamos a fenômenos como fumaça, fogo ou um jato de água, todos os quais desvanecem ou cessam diretamente se não houver suprimento de matéria. Pode ser dito, então, que a vontade de viver apresenta-se na forma de um fenômeno puro que termina em nada. Esse nada, entretanto, juntamente com o fenômeno, permanece dentro do limite da vontade de viver e são baseados nesse. Admito que isso é um pouco obscuro.
Se tentarmos obter uma perspectiva geral da humanidade num relance, constataremos que em todo lugar há uma constante e grandiosa luta pela vida e existência; que as forças mentais e físicas são exploradas ao limite; que há ameaças, perigos e aflições de todo gênero.
Considerando o preço pago por isto tudo — existência e a própria vida —, veremos que houve um intervalo quando a existência era livre de sofrimento, um intervalo que, entretanto, foi imediatamente sucedido pelo tédio, o qual, por sua vez, foi rapidamente sucedido por novos anseios.
O tédio ser imediatamente sucedido por novos anseios é um fato também verdadeiro à mais sábia ordem de animais, pois a vidanão tem valor verdadeiro e genuíno em si mesma, mas é mantida em movimento por meio de meras necessidades e ilusões. Tão logo quanto não houver necessidades e ilusões tornamo-nos conscientes da absoluta futilidade e vacuidade da existência.
Se deixarmos de contemplar o curso mundo como um todo e, em particular, a efêmera e cômica existência de homens enquanto sucedem um ao outro rapidamente para observar a vida em seus pequenos detalhes: quão ridícula é a visão!
Impressiona-nos do mesmo modo como uma gota d’água, uma simples gota fervilhando de infusoria, é vista por um microscópio, ou um pedaço de queijo cheio de carunchos invisíveis a olho nu. Sua atividade e luta uns contra os outros em um espaço tão pequeno nos entretém grandemente. Acontece o mesmo no pequeno lapso da vida — uma grande e séria atividade produz um efeito irrisório.

Nenhum homem jamais se sentiu perfeitamente feliz no presente; se acontecesse, isso o entorpeceria.

quarta-feira, 20 de março de 2013

In Europe's dark days, what cause for hope?



Apesar de, digamos, alguns 'tropeços' com a sua formulação em torno da chamada Terceira Via, o britânico Anthony é, sem embargo, um cientista social contemporâneo de referência. Em certos corredores acadêmicos europeus, na época Blair, corria-se até mesmo a anedota segundo a qual 'Blair praticava, e em seguida Giddens teorizava a ação do primeiro-ministro'. Seja como for, é de se reconhecer a sua posição cimeira na paisagem da análise social dos nossos dias. De resto, todo acadêmico que se dispõe à prática, não se limitando à esfera da abstração e da teorização, se expõe a riscos. Mas é melhor que assim o seja, pois conhecimento isolado da práxis torna-se algo meramente escolástico.  Vale a pena então a leitura do seu texto abaixo, a propósito da situação europeia (fonte: http://www.guardian.co.uk/world/2012/jan/25/anthony-giddens-europe-dark-days-hope) 
Storm clouds over the Temple of Poseidon at Cape Sounion, south of Athens
by Anthony Giddens 
The crisis in Europe is existential. It is a question of whether the EU survives as a recognisable entity. The history of the union is a chequered one, but it has chalked up great successes in its history so far. It has brought together a divided continent following the second world war and the fall of the Soviet empire. The single market has generated high levels of internal and external trade. The EU has fostered humanitarian projects around the globe. Critics say its component nations have sacrificed large parts of their sovereignty. The counter-argument, however, is that in a globalising world, by pooling areas of their sovereignty each nation gains more control over its affairs than it would otherwise have.
What hope is there, in what look like very dark days, that the EU can survive and even prosper? One should recognise to begin with that the causes of the crisis are many. Some go well beyond Europe – most importantly the troubled nature of the world economy – while others touch on failings. The EU is slow-moving and not equipped to deal with situations demanding urgent and immediate action. Most discussion has concentrated on the fact that the euro was established without fiscal back-up or a lender of last resort. Just as important is that the economic convergence that was supposed to occur between more well-off and poorer countries did not happen. The Lisbon Agenda, designed to make the EU economy "the most competitive in the world", was ignored by the countries that needed it most – especially the southern countries. Instead, for example, of pushing through pension, healthcare or labour market reforms, governments simply borrowed to fulfill their commitments. A dislocation between north and south opened up, with Germany's economy becoming the most prosperous.
The list of problems the EU faces is truly formidable. It isn't surprising that confusion seems to reign and that many citizens are turning away from the union. Nationalism is on the rise again all over Europe. What cause is there for hope? Perversely, it lies in some large part in the shock experience of the crisis itself. Much more radical and immediate innovations open up in such a situation than in more placid times.
An effective short-term response to the travails of the euro is obligatory. Let's suppose – perhaps with a dose of external help – that the euro will survive, as still seems most likely. The best outcome at this point, contrary to what many others argue, would be for the eurozone to be preserved with its full membership of 17 nations including, if at all possible, Greece. It may in fact be the only way in which needed reforms within the struggling countries can be achieved.
A recent detailed study by Euro Plus Monitor indicates that the convergence that didn't happen when the euro was first introduced is now occurring very rapidly. The research ranks eurozone countries in terms of their overall economic health and the speed with which they are adjusting their economies. The nations that came rather nastily to be referred to as the Pigs – Portugal, Ireland, Greece and Spain – are all within the top six in respect of the sweeping nature of their reforms. They are opening up labour markets, elevating the age of retirement, streamlining ponderous government agencies and reducing tax evasion. As the earlier experience of the more successful countries has shown, such changes are the condition of preserving an effective welfare state – the "European social model".
Greece is bottom of the 17 nations in terms of its overall economic status, but ranks number two in terms of the degree of adjustment happening in its economy. The authors rightly argue that there is a pressing need to move the European debate away from concentrating only upon short-term austerity towards long-term reforms to promote wealth-creation. Taking Greece as an example, they argue that external help as well as internal restructuring should focus on creating investment opportunities and opening up new markets. They conclude by observing that, although there will undeniably be a period of suffering, the eurozone countries might just emerge stronger than the US and Japan, which are not making such reforms.
Several member states have stated their intention to join the euro if its current problems are overcome. The UK will be part of a tiny group that stands aside. Radek Sikorski, Poland's foreign minister, has observed that Britain's total sovereign, corporate and household debt is several hundred per cent of GDP. "Are you sure markets will always favour you?" he asks. If the euro does survive and expand, it will be a question the British leadership would do well to ponder.
What about the fate of democracy in all this? Those who have assumed the mantle of the saviours of the EU – Angela Merkel and Nicolas Sarkozy, together with the "technocrats" in Greece and Italy – are largely bypassing the decision-making agencies of the union. The celebrated philosopher Jürgen Habermas has bitterly complained that democratic processes have been subverted, as indeed they have.
Yet the greatest threat to democracy at this point would be the collapse of the euro and the chaos that would ensue. Stabilising the euro should be a bridge to longer-term change and a stimulus to the imagination. A new debate should be encouraged across Europe about how traditional limitations of the EU – its lack both of dynamic leadership and of democratic legitimacy – might be overcome. It has long been a contradiction that an organisation busy promoting democracy across the world should itself famously suffer from a democratic deficit.

quinta-feira, 14 de março de 2013

O advento do homem-massa - um ser humano vazio

A seguir, reproduzo um texto sintético, mas significativo, incursionando num fenômeno de extrema atualidade: a massificação, a cultua do oba-oba, a permanente carnavalização/espetacularização da vida, o 'efeito rebanho', a desvalorização do 'distanciamento sozinho' e introspectivo - em nome da homogeneização unidimensionalizante, no sentido realçado por Marcuse.  Trata-se do advento do homem-massa - um ser humano vazio. 

Foto



O advento do homem-massa




Renato Nunes Bittencourt (Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e professor do curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA)
As inúmeras transformações sociais e valorativas ocorridas na modernidade oitocentista a partir da queda do ideário aristocrático e sua substituição pela visão de mundo burguesa trouxeram consigo um projeto cultural de instauração da noção de "igualdade" na esfera política, econômica ou social. Todavia, o projeto moderno de estabelecimento da "igualdade" humana se revelou uma farsa, pois nenhum ser humano manifesta qualquer tipo de característica semelhante a outrem, e se falamos de "igualdade", estamos certamente estabelecendo uma redução simbólica da condição individual.
Ortega y Gasset foi um dos principais filósofos a problematizar a questão da massificação da cultura na modernidade ocidental, e suas diversas implicações na esfera simbólica e social da vida humana.
Ao criar o conceito de "homem-massa", o filósofo forneceu um importante aparato intelectual para compreendermos de que maneira vivemos sob a égide moralista do nivelamento humano, e de que forma nossa criação cultural se submeteu a tais parâmetros normativos motivando, assim, nada mais do que o empobrecimento existencial e a legitimação do grotesco. Para Ortega y Gasset, "de repente a multidão tornou-se visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava despercebida. Ocupava o fundo do cenário social; agora, antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há protagonistas, só coro" (A Rebelião das Massas, p. 43).
É importante destacar que a configuração valorativa do "homem-massa" não segue parâmetros sociais ou econômicos específicos, mas a análise da existência ou não de uma nobreza de espírito interior. Assim, uma pessoa detentora de posses materiais, caso avalie sua existência pelos parâmetros quantitativos da ganância, da falta de finesse e da degradação do gosto cultural, associa-se ao grupo dos "homens-massa"; por sua vez, uma pessoa desprovida de instrução formal e de bens materiais, mas que é dotada de espírito avaliativo e sensibilidade cultural para apreciar aquilo que é belo ou sublime, se encontra longe da esfera vulgar da tipologia da massa, caracterizada justamente pela ausência de critérios seletivos em suas avaliações. Para Ortega y Gasset, "massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor – bom ou mau – por razões especiais, mas que se sente como todo "mundo" e, certamente, não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais" (A Rebelião das Massas, p. 45)
Filisteu da cultura
Encontramos no "filisteu da cultura" um dos principais avatares do "homem-massa" tal como delineado por Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas. O "filisteu da cultura", conceito criado pela intelligentsia alemã do período oitocentista e analisado filosoficamente por Nietzsche na sua Primeira Consideração Intempestiva, se satisfaz plenamente com o cotidiano da vida privada pacata e confortável, não sendo capaz de estabelecer para si próprio a realização de quaisquer tipos de projetos superiores, mas apenas propostas práticas passíveis de ser contabilizadas em melhorias para a sua vida privada imediata. Ao "filisteu da cultura" nada mais interessa do que cumprir as determinações burocráticas que lhe são impostas pelo meio social e, realizando tal intento, poder dormir placidamente sobre os louros da vitória.
imagem: shutterstock
A confonfonfiguração valorativa do "homem-massa" 
não segue parâmetros sociais ou econ ômicos específicos

O desenvolvimento da indústria promoveu a inserção cada vez mais vertiginosa dos bens culturais no sistema de mercado, promovendo assim a vulgarização da arte e das realizações culturais. Podemos afirmar que o maior malefício cultural promovido pela obtusidade intelectual e existencial do tipo "filisteu" ocorre quando ele detém o poder sobre as instituições artísticas e educacionais, pois essas organizações passam a ser gerenciadas pela óptica do lucro imediato e da comercialização das realizações culturais, que se tornam assim meros objetos consumíveis e, por conseguinte, descartáveis. Esse dispositivo comerciário, incompatível com o florescimento autêntico da vida cultural, se manifesta até mesmo na mercantilização do ensino pela especulação empresarial.
A burocracia nos diversos setores sociais também é fruto da ação deletéria do "homem-massa", pois impede que as ações humanas se desenvolvam com a agilidade necessária para que elas motivem a transformação para melhor da sociedade. A burocracia institucionalizada faz que as forças criativas dos indivíduos se cristalizem e, por conseguinte, fiquem estagnadas. Quando o espírito burocrático atua no âmbito do sistema educacional, por exemplo (veja box abaixo), os malefícios intelectuais são evidentes: ausência de estímulo para a constante superação das competências profissionais, submissão aos valores normativos estabelecidos, supressão dos ideais progressistas e desmotivação intelectual. Um dos maiores responsáveis para essa degradação da experiência de ensino ocorre pela interferência de questões alheias ao desenvolvimento do saber e da troca de conhecimentos na realidade pedagógica, ao se criar parâmetros avaliativos para a classe de estudantes, homogeneizada em sua raiz, e para o próprio professor, obrigado a se submeter a um sistema castrador de seu próprio potencial didático.
Favorecer o comum
Na contramão, Ortega y Gasset ressaltou a multidão ao discutir o advento do homem-massa
Ora, uma vez que a estrutura escolar não pretende favorecer o desenvolvimento da exceção, mas o comum, não é estranho vermos a instituição de ensino como um instrumento promotor da estagnação das forças criativas dos indivíduos. Projetos educacionais e planejamentos econômicos são instâncias diametralmente opostas, mas na realidade da sociedade de massas tal intercessão é a regra. Quando uma instituição de ensino promove a facilitação dos conteúdos didáticos como forma de promover a progressão dos estudantes, ela gera a supressão da disciplina intelectual necessária para que o aluno possa continuamente se esforçar em prol da aquisição de novos patamares cognitivos. Tal como afirma Ortega y Gasset, "o ‘homem–massa’ jamais teria apelado para qualquer coisa fora dele se a circunstância não o tivesse forçado violentamente a isso. Como as circunstâncias atuais não o obrigam, o eterno ‘homem-massa’, de acordo com sua índole, deixa de apelar e se sente senhor de sua vida" (A Rebelião das Massas, p. 95).
A sociedade tecnicista faz triunfar os valores da massificação da cultura e o nivelamento por baixo entre os indivíduos, pois o ato de despertar da singularidade é considerado prejudicial para a manutenção da ordem pública, que se sustenta pela homogeneização dos comportamentos e qualidades humanas. Por conseguinte, vive-se sob o império moralista da "igualdade absoluta", pois nesse sistema de padronização extrínseco da vida humana é considerado como algo moralmente indecente a singularização individual. Conforme destaca Ortega y Gasset: "a massa faz sucumbir tudo o que é diferente, egrégio, individual, qualificado e especial. Quem não for como todo mundo, quem não pensar como todo mundo, correrá o risco de ser eliminado" (A Rebelião das Massas, p. 48).
Filisteu da Cultura é o tipo humano que avalia as criações superiores do espírito humano a partir de critérios puramente materiais, mensurando sob o mesmo padrão avaliativo a Arte, a Cultura e as necessidades corriqueiras da existência

Ensino de massa
Não é de se estranhar quando um "filisteu da cultura" que, porventura, venha a conquistar o cargo de diretor de uma escola diz que o "estudante é um cliente", discurso muito próximo ao da ideologia comerciária que dá ao freguês a razão incondicional sobre todas as coisas, impedindo que o indivíduo saia do estado de menoridade intelectual e vivencie com responsabilidade as suas escolhas e decisões existenciais. Tanto pior, o "filisteu da cultura" infiltrado no sistema educacional interferirá continuamente no planejamento pedagógico da instituição ao vislumbrar obter o lucro incondicional, pois a sua relação com a cultura superior é absolutamente artificial, movida apenas pelo aproveitamento usurário dos bens educacionais. Explorando as capacidades profissionais dos professores, o diretor-burocrata, alheio ao autêntico espírito educacional, exigirá de cada docente a máxima dedicação aos seus afazeres, sem que, todavia, lhes forneça condições adequadas para o exercício das suas funções pedagógicas.
A s escolas, em geral, promovem a legitimação da massificação da cultura, pois os estudantes se encontram na obrigação imediata de se adequarem intelectualmente aos parâmetros pedagógicos estabelecidos pelo sistema de ensino, regido por uma lógica burocrática estranha ao plano imanente da sala de aula; mais ainda, torna-se praticamente impossível que um estudante seja avaliado singularmente em suas competências específicas, circunstância que o torna mero número diante da lógica fria dos fluxogramas acadêmicos.
No sistema de ensino massificado, o estudante é despojado de tudo aquilo que lhe é singular para que possa se tornar "igual" aos demais, e tal objetivo se realiza não apenas pelo uso do uniforme escolar, mas acima de tudo pela uniformização do pensamento. Por conseguinte, a escola regida pelo sistema burocrático e massificador de valores, em vez de promover a afirmação da criatividade humana e da cultura, motiva em verdade a barbárie. Por tal motivo a escola pode ser considerada como uma esfera normativa da sociedade de massa, pois ela sutilmente "educa" o indivíduo a ser, desde a sua infância, uma pessoa desprovida de senso crítico para que assim viva sempre ao serviço da realização plena da ordem estabelecida. Para isso, tal pessoa deve se adequar à autoridade pedagógica, mantenedora do projeto burocrático da "sociedade de iguais". A moral de rebanho não se manifesta, portanto, apenas na esfera religiosa de caráter repressor da ousadia da singularidade, mas também no âmbito educacional, catequizando os indivíduos na cartilha da "igualdade".
A globalização também traz tendências "culturais" da massificação do gosto e a degradação da experiência estética das cidades e de toda a sociedade
A moda tenta pregar nos consumidores uma ideia de destaque, mas insere o indivíduo na massificação orgânica ao fazer seguir os preceitos de uma tendência ditada e homogênea
Estamos sob a constante ameaça de, na decadente conjuntura da degradação cultural promovida pelo nivelamento vulgar das qualidades humanas, vivermos sob o jugo da "ditadura da massificação", na qual é diluído todo destaque pessoal, todo brilho singular. Esse sistema normativo impede o florescimento de disposições agonísticas entre os indivíduos, processos rigorosamente interativos que, mediante o embate de qualidades, faz vencer aquele que no momento da oposição é o mais apto. Entretanto, o espírito massificado não quer "viver perigosamente" e, desprovido de sentimentos que instigam ações transformadoras, vive confortavelmente na sua medíocre banalidade existencial. Dessa maneira, ocorre a vitória social do "homem-massa" que, incapaz de se realizar como ser humano no decorrer da sua existência e se destacar por seus méritos intelectuais, culturais e valorativos, não mede esforços para impedir que outros o façam. O "homem-massa", nessas condições, atua sob a influência do espírito de ressentimento, caracterizado pelo ódio figadal contra o indivíduo que consegue dar vazão aos seus impulsos criativos e, assim, realizar ações extraordinárias para maior benefício da cultura social. Afinal, nada mais desagrada ao homem sem qualidades superiores do que ver o triunfo dos indivíduos ousados, capazes de se destacarem socialmente por seus méritos pessoais. O talento é o maior fantasma para a mediocridade. Tal como enunciado por Ortega y Gasset, "a característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte" (A Rebelião das Massas, p. 48).
A indústria da propaganda e do slogan cria na população a vinculação entre a mercadoria e a felicidade
Slogans e publicidade
A massificação do gosto vem atender também ao estado de degradação da experiência estética da sociedade moderna, na qual se elaboram tendências "culturais" padronizadas para determinados grupos sociais, exigindo simultaneamente pouca reflexão e grande capacidade de assimilação das tendências projetadas a cada estação. Como o "homem-massa" segue afoitamente as palavras de ordem de slogans e os mandamentos seculares dos ícones sociais explorados pela publicidade (instrumento por excelência do processo massificador da sociedade), sua mente se torna um grotesco depositário de ideias heteróclitas, perdendo assim qualquer autonomia nas suas escolhas. Vive-se, por conseguinte, conforme a "moralidade do impessoal", pois agir de forma destacada da coletividade anônima é algo ofensivo para o falso pudor da moderna civilização das massas; esta, em vez de promover o refinamento intelectual e cultural do indivíduo, se esforça acima de tudo por anular as próprias noções de singularidade e originalidade, criando blocos humanos desprovidos de personalidade, para que se possa assim melhor controlá-los.
Segundo Ortega y Gasset, "viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão. Inclusive, quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir" (A Rebelião das Massas, p. 73). Podemos dizer que nobreza é sinônimo de vida dedicada, sempre disposta a superar a si mesma, a transcender do que já é para o que se propõe como dever e exigência. A vida nobre se contrapõe à vida vulgar e inerte que, estaticamente, se restringe a si mesma, condenada à imanência perpétua, a não ser que algum fator externo a obrigue a reagir. Por isso, chamamos massa a esse modo de ser homem – não tanto por ser multitudinário, mas por ser inerte.
O ato de despertar da singularidade é considerado prejudicial para a manutenção da ordem pública

A Educação também tem a sua forma de massificação ao tirar do aluno a possibilidade de expor o que lhe é singular e promover a uniformização do pensamento
A moda é uma grande promotora da massificação orgânica da sociedade regida pelo sistema de burocratização da existência, pois ao prometer de forma falaciosa ao consumidor a oportunidade deste se destacar gloriosamente dos demais ao adquirir determinado gênero, faz na verdade que tal sujeito siga o sistema aglutinador de massificação. Se, na Antiguidade grega, um indivíduo obtinha o reconhecimento social pela realização de feitos extraordinários que superavam o padrão ordinário, em nossa moderna ordem burocrática da existência conquistamos o reconhecimento público consumindo os produtos previamente estabelecidos pelos "sacerdotes" da massificação cultural.
Como ninguém quer ficar fora de moda e assim ser estigmatizado como "extravagante", todo um grupo social segue passivamente as palavras encantadas dos publicitários, que promovem uma relação fetichista entre a mercadoria e a felicidade que supostamente pode vir a ser alcançada mediante o consumo do produto alardeado. Acreditando se destacar do seio da massa ao usar determinada coisa, o indivíduo, ludibriado pela propaganda, chafurda ainda mais na essência da própria massa da qual pretensamente queria se emancipar.
A obra de Ortega y Gasset se revela, conforme vimos no decorrer deste texto, como um libelo contra a ameaça da supressão da singularidade do homem ocidental, oprimido continuamente por um ideário valorativo sectário da redenção da mediocridade diante da demonização da singularidade.
Povo marcado, povo feliz
O advento do homem massa cresce a cada vitória do capitalismo, que se mostra vertiginosamente eficiente, uma poderosa máquina de esvaziar reflexões e ideias próprias ao estimular o "ter" em detrimento do "ser", e fazendo com que pessoas busquem satisfação apenas no material. Esse processo favorece o mercado da propaganda, já que irreflexivos são mais maleáveis aos estímulos dos slogans. A necessidade do ter, entretanto, afunda ainda mais na massa os que seguem uma tendência específica ditada, caso que acontece na moda ou na necessidade de aquisição de bens do efeito da modernização e que movimentam o capitalismo. Exposições dessa nova realidade trazida com a globalização pelo mundo moderno é frequentemente encontrada nas expressões da Arte. Na Literatura, o escritor inglês Aldous Huxley, em Admirável mundo novo, descreve uma sociedade em que pessoas vivem uma harmonia seguindo uma série de regras para qual foram condicionadas biológica e psicologicamente. Drogas e sexo são estimulados e o amor reprimido para extirpar qualquer forma de revolução e estabelecem uma ordem por meio do conformismo. O cantor Zé Ramalho, numa clara referência ao romance de Huxley, compôs, no final dos anos 70, em um período de ditadura no Brasil, a música de denúncia social chamada Admirável Gado Novo, exaltando os mecanismos de alienação tão presentes na época e que vemos crescer nos dias de hoje.
Referências
NIETZSCHE, Friedrich. Consideraciones Intempestivas, 1 – David Strauss, el confesor y el escritor. Trad. Esp. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2000. ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Trad. de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Analfabeto de pensamento

De José Francisco de Melo Neto, Prof. da UFPB e Presidente do Conselho Estadual de  Educação da Paraíba, o texto abaixo, que calha bem para a reflexão nos cursos de pós-graduação.



ANALFABETO DE PENSAMENTO

Por José Francisco de Melo Neto 
Há um tipo de analfabeto, pouco divulgado, que é aquele promovido pela própria escola institucionalizada, presente na escola fundamental e no ensino médio, na escola universitária, inclusive, no seu mais elevado nível acadêmico, os cursos de doutoramento. Ele sabe ler, escrever, usa a informática, trabalha, ensina e pesquisa, mas não aprendeu a pensar e buscar o novo. É o analfabeto de pensamento, de ideias.
A escola, desde a alfabetização, procura inserir a criança nas linguagens e códigos da língua materna. Nesse momento, exercita-se o aprendizado das letras, escrita e falada, considerado correto, tanto em forma como em conteúdo. Essa caminhada continua em nível das séries seguintes, até o nono ano. No ensino médio, continua o seu estudo na matemática e suas tecnologias, nas ciências naturais e suas tecnologias, nas linguagens e códigos e suas tecnologias, além das ciências humanas e suas tecnologias. Aceitável se faz entender que esse nível escolar seja mesmo aquele que assegure a aprendizagem dos conhecimentos existentes, desejando que eles se tornem senso comum para toda a população. A pedagogia da repetição é a técnica por excelência de todo esse processo. Tal recurso invade ainda os cursos técnicos com o enfático discurso de que importante é o saber fazer, priorizando unicamente uma competência técnica, mesmo que o mundo esteja a cobrar uma competência ampla para a vida. Na universidade, permanece a não preocupação para com a produção do conhecimento novo, mesmo em cursos como o doutoramento, cuja função principal é a busca desse algo. O percurso escolar, dessa maneira, torna-se um permanente exercício de mera reprodução do conhecimento dominante, em todos os níveis da educação no país e em todos os campos do conhecimento, com poucas contradições.
Tal pedagogia tem levado à falta da inovação em todos os setores das ciências e tecnologias, no empreendedorismo, no campo econômico, e, no campo político, à falta de políticos e de projetos políticos que possam alavancar estados com menor força econômica ao cenário nacional. Sem terem aprendido a pensar algo diferente, sem procurar alternativas, convertem-se em meros mendigos da política nacional. E, no campo da qualidade da educação, pode-se assistir a queda da média nas ciências e suas tecnologias, em provas do ENEM, como neste último ano. Acarreta um desleixo para com a redação nesta mesma prova, deixando-a de lado nas contagens técnicas das médias das escolas e dos alunos. 
Nos programas de pós-graduação, particularmente mestrado e doutorado, os docentes engalfinham-se no malabarismo geral de uma burocracia crescente, em busca de melhores conceitos avaliativos, esquecendo-se da sua meta principal - a produção do conhecimento novo. Claro é que não se trata de se descobrir permanentemente a roda. Vive-se a mais renhida competitividade, conduzindo-os a uma dedicação muito maior à ocupação de responderem relatórios e questionários solicitados por órgãos públicos (Capes, CNPq e outros) do que mesmo ao seu trabalho específico de pesquisa e ensino. Estabelece-se uma produção acadêmica a qualquer custo, a pedagogia da repetição, para atender aos ditames desses órgãos, pois isto lhes assegurará mais bolsas ou menos bolsas e o conceito do programa. É a produção desenfreada de mais livros, artigos para revistas internacionais, relatórios de pesquisas, nenhuma produção local, pois o local não pontua, busca de revistas indexadas, curtos prazos de conclusão de pesquisa tanto no mestrado como no doutorado, significando tudo isto a qualidade do trabalho acadêmico.
O País também precisa aparecer bonito no ranqueamento mundial da corrida acadêmica, mesmo que tudo isto não passe de mera reprodução de conhecimento. As construções das monografias, sejam dissertações ou teses, do ponto de vista de incentivo ao pensamento novo, estão formando muito mais uns “baitas” técnicos em citações de pensamentos alheios, sumindo da construção do seu próprio pensamento – o exercício da crítica.
Como se vê, bacana é o professor ser um doutor no pensamento de fulano ou de sicrano, mesmo que seja isto importante. Ficando apenas nisto, contudo, perde-se definitivamente a capacidade de também se tornar um pensador. Deste, há no país uma grande necessidade: é urgente o repensar a atividade docente em todos os níveis da escola, procurando superar esse ensino e essa pesquisa sem novidade para o conhecimento que a transformou em mera fazedora de analfabetos sem ideias novas, sem pensamento novo.


sábado, 9 de março de 2013

O ano em que sonhamos perigosamente

O eslovenos Slavoj Zizek, um dos principais pensadores contemporâneos, e que na próxima semana estará proferindo conferência em Recife, é de fato um teórico inquieto, com uma argúcia analítica rara. E isto ter-se-á que se admitir mesmo quando se discorda dele. A escrita direta, a provação ensaísta e a polêmica analítica o acompanham. Bom para um mundo que quer fazer a razão ter preguiça de pensar.  Em O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo Editorial), um conjunto de ensaios a respeito dos acontecimentos de 2011, ele mantém-se fiel ao seu estilo. Logo de saída realça que somente uma abordagem que unifique a universalidade do uso público  da razão à intervenção social, pode fornecer o mapeamento cognitivo da situação em que vivemos. Isto é uma tarefa de bastante fôlego, que vai além, muito além, do engajamento panfletário e do corporativismo das áreas acadêmicas, que limitam o conhecimento/o mundo às suas disciplinas/cursos específicos.  Resta os panfletários e os corporativistas acadêmicos se darem conta disso. Como outros livros de Zizek, O ano em que sonhamos perigosamente vale pelo que diz e por o que deixa nas entrelinhas.