sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O educador, o ser e o graal a conquistar: na senda dos sinais do tempo

Texto retirado do baú. Escrevi-o para a Revista Portuguesa A Página da Educação. 




Trinta raios rodeiam um eixo,
mas é onde os raios não raiam
que a roda roda.
Vaza-se a vaza e se faz o vaso,
mas é o vazio que perfaz a vasilha.
Casam-se as paredes e se encaixam portas,
mas é onde não há nada que se está em casa.
Falam-se palavras e se apalavram falas,
mas é no silêncio que mora a linguagem.
O ser faz a utilidade,
mas é o não-ser que perfaz o sentido.

Do Tao-te King, de Lao Tsé


                                                                                                                                Ivonaldo Leite  
“Senhoras e Senhores, vamos começar moderadamente. Mas também com vigor e ousadia. Vamos começar com os sonhos. Não sonhamos apenas durante a noite. Sonhamos também durante o dia, embora não se investigue com igual energia o sonho diurno. Chega-se mesmo a reduzi-lo a um simples prelúdio do sonho nocturno. Entre ambos há distinções consideráveis. No sonho diurno, o eu não desaparece. Mantém-se bem vivo e sem exercer nenhuma censura. A ponto de os desejos tanto mais funcionarem. Serem mais visíveis, do que no sonho nocturno. Apresentarem-se sem máscara nem vergonha. Livres de inibições. Corajosamente. As ruas vivem cheias de gente com sonhos diurnos”. 
Essas são as palavras iniciais de Ernst Bloch pronunciadas numa Conferência a respeito do ser humano como possibilidade. De Bloch, entre muitas coisas, pode dizer-se que foi um daqueles que, com palavras e com actos, pôs a descoberto o sentido quotidiano da utopia, da esperança, do sonho. Nasceu na Alemanha, em 1885, onde estudou filosofia, filologia, música e física. Em Berlim, conviveu com Simmel; em Heidelberg, tomou parte nos famosos círculos de conversas de Weber, dos quais também participava Lukács. Como pacifista que era, viu-se obrigado a passar o fim da Primeira Guerra Mundial na Suíça. Voltou à Alemanha em 1920, mas em 1933 os seus livros foram queimados em praça pública pelos nazistas. Exilou-se na Áustria, o que, claro, foi insuficiente. Seguiu-se a mudança para os Estados Unidos. Regressou à sua pátria em 1949.
O seu primeiro livro (Princípio da Utopia), publicado em 1923 na Suíça, já contém, em germe, toda uma concepção filosófica que será desenvolvida em sua obra principal, ou seja, o Princípio da Esperança. Na verdade, toda a reflexão filosófica de Bloch é uma busca de tematização ontológica do sujeito, dado que, para ele, é a subjectividade que atribui sentido ao mundo. E isto é deste modo porque, pela óptica blochiana, é ela, a subjectividade, que encarna as possibilidades de futuro que constituem a própria realidade. O futuro vem a ser a dimensão própria do sujeito, da consciência.
Bloch procura dissimular o poder criador da práxis do sujeito no pressuposto de uma materialidade avivada por um sentido que se desdobre através dos seres humanos e sua consciência. O que se tem, portanto, não pode ser outra coisa: Estamos perante uma ontologia que se constrói como justificativa de uma proposta ética da mudança, para que homens e mulheres venham a ser aquilo que ainda não o são. O seu conceito de utopia nasce dessa ontologia, e, desse modo, ele, o conceito, difere da conotação tradicional do termo. Nada mais, nada menos porque, na acepção blochiana, a primeira função da utopia é a de manifestar aos outros, ou a um outro, que o real não se esgota no imediato. Quer dizer, o real é mais do que o agora: ele aponta, pela via do possível, para o que ainda não existe. A utopia nega a realidade e mostra que o real está prenhe de possíveis. 
A démarche blochiana conduz-nos à busca de um ânimo subjectivo no interior da própria materialidade, como substrato ontológico da praxis e não como produto da praxis e da dialéctica ontológica que ela produz. A matéria é espiritualizada para ontologizar a dialéctica do sujeito. A qualificação da matéria apresenta-se como uma espécie de tradução da projecção da consciência.
Dessa maneira, o ser humano é entendido como devir, encarnado em possibilidades objectivas. A força do impulso que empurra o ser para o que ainda não é, torna-se a substância comum do mundo, dos homens e das mulheres. É assim. A esperança é uma forma de conhecimento da dimensão possível presente no próprio real. E se o possível é parte integrante da realidade, ele é objecto do conhecimento.  
O educador é alguém, portanto, a quem se demanda empenho na interpretação dos sinais dos tempos. Entre as suas incumbências, tem a tarefa de distinguir onde estão as possibilidades de realização dos seres humanos e para onde eles conduzem o nosso tempo, pois, mesmo perante conjunturas indecisas e adversas, os sonhos diurnos não desaparecem do quotidiano: o princípio da esperança. O não deste é um ainda-não, ao invés do não-nunca do niilista. Um graal a conquistar, poder-se-á dizer, à maneira da sabedoria dos surrealistas.


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