domingo, 8 de janeiro de 2012

A Vida Simples e o Desencontro do Autor com a sua Obra

O artigo abaixo vem a lume para a Revista Portuguesa A Página da Educação.

A VIDA SIMPLES NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O QUOTIDIANO EM MEIO AO DESENCONTRO DO AUTOR COM A SUA OBRA


Por Ivonaldo Leite 

O enredo do quotidiano constitui-se numa das dimensões centrais da vida contemporânea. ‘És feliz porque és assim/todo o nada que és teu/eu vejo-me e estou sem mim /conheço-me e não sou eu’. Desta prosa do Pessoa, mutatis mutandis, por certo, pode-se estabelecer uma conexão com as teias que têm marcado a vida cotidiana atual.
Nos últimos tempos, muitos têm sido os trabalhos – históricos, sociológicos, antropológicos – com foco no quotidiano. Boa parte deles, contudo, são notadamente prisioneiros dos seus próprios limites, não poucas vezes restringindo-se a uma visão impressionista da acção dos sujeitos no dia a dia, caindo até mesmo numa visão celebratória do seu mise en scène. Isto é, são trabalhos sem propriedades analíticas suficientes para colocar em realce o que é aparência e essência no “jogo jogado” do existir pelas subjetividades em movimento. 
Possivelmente tenha sido Henri Lefebvre quem primeiramente, com o seu (dentre outros) Critique de la vie quotidienne, abriu caminhos interpretativos para uma apreensão que, ao mesmo tempo, procura captar o sentido das interacções que dão corpo à cotidianidade, as configurações e os condicionamentos da “vida comum”. E é por esta via que uma abordagem analiticamente referenciada, do ponto de vista da instância lógica e empírica, assinala algo paradigmático: um estiolamento da vida simples na sociedade contemporânea que é responsável pelo desencontro do ser humano com a sua obra.  Como bem assinalou José de Souza Martins, a duplicidade, a dissimulação, os ocultamentos, a difundida necessidade de teatralizar não só os grandes actos dos momentos solenes, mas também os comportamentos pequeninos do dia a dia levam o ser humano a um reiterado divórcio com a sua obra histórica. Mergulha-o na angústia de uma História que já não parece fluir senão como disfarce e como farsa. Repisando o Pessoa: ‘eu vejo-me e estou sem mim /conheço-me e não sou eu’.
Estamos em face de uma realidade em que se requer o deslocamento estatutário da vida simples, do genuíno, do que de facto se é, em nome da teatralização, de um padrão de sociabilidade artificialmente construído, de modo que o ser simples (como verbo e como ente) só encontra espaço em momentos periféricos. Ou seja, fora destes momentos, o ser humano torna-se autor de actos, de um fazer, quer dizer, de uma obra que é resultado de uma intenção-acção teatralizada, ficcional, que não diz dele, mas trata-se de um comportamento requerido pelo padrão de sociabilidade e em função do qual se representa. O autor e a obra então se desencontram. A propósito, pode-se pensar, por exemplo, na demanda por exposição da vida privada, sob pena de ser-se ‘considerado fora dos padrões’, de modo que, por vezes, até a  contraposto, se é levado a fazer concessões aos clichês da exposição pública de dimensões da vida particular e de apetências pessoais. Isto está para além do que, classicamente, se classifica sociologicamente como coercitividade dos factos sociais.
A pergunta que então se impõe é: Por que de tal forma se tem configurado o quotidiano?
Ora, recuperando Lefebvre, é necessário ter em perspectiva que o quotidiano não tem sentido divorciado do processo histórico que o reproduz. Não há reprodução sem uma determinada produção de relações sociais. O quotidiano é também produto do modo de produção e nele se entrecruzam o tempo cíclico e o tempo linear, modalidades diversas do repetitivo e também demarcadores do ritmo dos processos sociais, da sua historicidade. É também no plano da historicidade, na convicção de que a vida é movimento, que é possível vislumbrar o reencontro do autor com a sua obra, do ser humano como criador e criatura de si mesmo, na medida em que é no fragmento de tempo do processo repetitivo que as contradições emergem e fazem surgir o momento da criação e de anúncio da História. O tempo do possível.  

        

Nenhum comentário:

Postar um comentário