segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Corações e Mentes: Sobre as "utopias de médio alcance"


O presente artigo é mais um texto publicado anteriormente em A Página da Educação. 



Por Ivonaldo Leite 

Desde o momento em que a civilização industrial soçobrou numa série de impasses, a enormidade do desafio ecológico passou a ser reconhecido de “forma consensual”. Tanto o Norte como o Sul, não obstante as suas diferenças, foram postos diante de problemas comuns. Significa isto que existe um risco de barbárie cuja dimensão é global.
Trata-se de um risco que, sempre que se afirme as ilimitadas propriedades do desenvolvimento, se tornará cada vez mais acentuado. Por outro lado, a mera apologia ao colapso da ideia de progresso com raízes assentes no pensamento ilustrado, não nos levará muito longe. O simples protesto (ecológico, antirazão), mesmo sendo um movimento e compreenda outros movimentos, ainda assim falhará na percepção do caminho para uma mudança que não se limite a mentalidades e ideologias, mas que represente um instrumento político para dias melhores.  
Se nos é permitido atribuir uma nova matriz à noção de teorias de médio alcance, de Robert Merton, podemos dizer que se trata de definir um agir em função de utopias de médio alcance. Para almejar a continuidade do género humano, é necessário, antes de tudo, se fazer opção por uma democracia progressiva que, sem abdicar da razão, combine justiça social e liberdade. Em face de questões bem presentes, o olhar utópico em médio alcance. Ou bem são construídos mecanismos instituições com os quais o/a cidadão/dã possa se relacionar, nos vários níveis da sociedade, com a res publica, ou não serão superados, por exemplo, os impasses que coagulam a democracia representativa. Não podemos fugir da redefinição do escopo da política e de estendê-lo para muito além do Estado e dos partidos. 
A não ser assim, estaremos sempre a vaguear em abstracções perante o cenário descortinado pelo mundo pós-industrial - abstracções que, se por uma parte, são importantes como momentos de dúvida ontológica, por outra parte, são insuficientes para dar conta do contexto em que o ser se encontra situado. O pessimismo angustiado, a ansiedade existencial, as metamorfoses identitárias, etc., não são fenómenos que emergem do vazio.  Não é pouco revelador que, já há algum tempo,  estejamos a assistir, de forma acentuada, a manifestações dessa natureza. O estiolamento da civilização industrial não significa apenas o colapso de algo material, mas representa também o eclipse de um referencial indutor de subjectividades, onde o neoplatonismo galileano, ao produzir uma linguagem comum à visão da natureza e da prática social, apresenta-se como autêntica mutação no plano cognitivo, vector do programa pelo qual se pautará a criatividade. Foi assim que os impulsos mais fundamentais do ser humano, gerados pela necessidade de autoidentificar-se e situar-se no universo, e que são a matriz da actividade criadora, a reflexão filosófica, a meditação mística, a invenção artística e a investigação científica -directa ou indirectamente - foram subordinados à especialização do cálculo quantitativo. 
Utopias de médio alcance. Aqui o que importa é, frente aos desafios contemporâneos, definir um agir que se consubstancia como um movimento, criando novos espaços públicos, de modo que as pessoas e as entidades civis possam tomar parte nas decisões institucionais, o que significa negar tais decisões como colecção de meras políticas sociais, apoiadas por burocracias estatais animadas pela doutrina do partido detentor do poder. Contudo, ao contrário do que alguns pensam, o cenário onde este agir se move não se coadune com a ideia de morte da razão, donde seguir-se-ia uma fragmentação que, por não ter nenhum postulado de referência, nutre-se do relativismo céptico e, por vezes, estimula o cinismo político. 
Se é verdade que a sensação de risco, de perplexidade e de incerteza são dimensões bem presentes no mundo actual, abalando crenças da racionalidade ilustrada, também não é menos verdadeiro que temos assistido a um ascendente entrelaçamento entre ciência, tecnologia e liberdade, forjando uma nova racionalidade.  Esta nova racionalidade, decerto, constitui-se num terreno fértil para as utopias de médio alcance.

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