A propósito da última postagem (acerca do trabalho intelectual), um amigo do Rio Grande do Sul me encaminha um texto sobre a consciência intelectual, com o adorno da 'solidão do alvorecer'. É resultado das atividades do Grupo de Estudos Nietzsche, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e trata de um dos aforismos desse pensador (A Gaia Ciência §2), comentado por José Luiz Votto. Publicado a seguir.
'Solidão no alvorecer', Johann Heinrich Füssli |
Por José Luiz Votto
Neste
aforismo, Nietzsche questiona as formas com que as pessoas se relacionam com as
suas crenças. Enquanto por uma via há aqueles que possuem crenças mesmo sem
fornecer as razões para elas; por outro lado há a via da suspeita. Sendo assim,
Nietzsche inicia o aforismo argumentando que embora não queira acreditar
naquilo que sua experiência lhe mostra como evidente, a saber, que “a grande
maioria das pessoas não tem consciência intelectual”, tal observação é palpável
demais para que consiga se rebelar contra ela. O filósofo alemão diagnostica
que aqueles que consideram necessária tal consciência, e a exigem dos outros,
encontram-se solitários, ainda que rodeados de pessoas, como nas cidades
populosas, já que não há pares nessa sua exigência no trato com as crenças.
Nietzsche
também aponta que não só as pessoas são desprovidas da referida consciência
intelectual, como também são indiferentes àqueles que as alertam a respeito
disso. Portanto, a indiferença das pessoas frente a este questionador funciona
como um agravante ao deserto da sua solidão. Isto porque a indiferença se
apresenta como a ausência de oposição, ou seja, sequer existe uma tensão, uma
forma de interação com o questionador, ainda que de conflito. Logo, aquele que
aponta que a forma de valorar das pessoas possa estar sendo injusta não recebe
como retorno sequer indignação, e quando muito a reação será a de uma risada
sobre a sua dúvida.
Assim, a consciência intelectual está diretamente ligada à suspeita, à dúvida.
Para Nietzsche, a grande maioria (o que incluiria “os mais talentosos homens e
as mais nobres mulheres”) sequer duvida de suas crenças, não vê o problema que
é estabelecer seus valores sem uma ponderação racional: “a grande maioria não
acha desprezível acreditar isso ou aquilo e viver conforme tal crença, sem
antes haver se tornado consciente das últimas e mais seguras razões a favor ou
contra ela, e sem mesmo se preocupar depois com tais razões”. Assim, por melhor
que seja alguém, por mais que seja dotado de “bondade, finura e gênio”, ainda
seria um ser inferior, posto que de nada adianta tais virtudes se tal pessoa
tolera em si mesma “sentimentos frouxos ao crer e julgar”, ou seja, se esta
pessoa é leviana quanto ao que acredita e não tem a necessidade de buscar a
certeza, o que caracteriza os homens superiores e os diferencia dos
inferiores.
Até no piedoso, personagem que Nietzsche não admira, o filósofo identifica um
ponto que nos melhores homens e mulheres não encontrou: este tem ódio à razão,
o que seria uma tomada de posição frente à consciência intelectual,
rejeitando-a, o que difere daqueles que são simplesmente indiferentes à ela. O
que é desprezível para Nietzsche é estar diante de “toda a maravilhosa
incerteza e ambigüidade da existência” e não se posicionar, nem interrogar e
nem ter ódio por quem interroga, como o piedoso. Nietzsche aponta, então, que o
que procura primeiramente nas pessoas é a percepção do quanto isto é
desprezível, e argumenta que “algum desatino está sempre a me convencer de que
todo ser humano tem esta percepção, como ser humano. É minha espécie de
injustiça”. Ou seja, está sendo injusto na medida em que pensa que todos tem
tal percepção, o que está relacionado com o aforismo seguinte, §3: Nobre e
Vulgar, em que escreve sobre a “eterna injustiça dos nobres”. Tal injustiça
significa que os nobres consideram sua idiossincrasia do gosto necessária a
todos, afirmam posições novas partindo desta sua idiossincrasia, o que só é
possível na medida em que estes não sentem a si mesmos como naturezas excepcionais.
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Fonte: http://grupodeestudosnietzsche-ufpel.blogspot.com.br/2013/07/a-gaia-ciencia-2-consciencia-intelectual.html