Sempre que ministro uma disciplina ou seminário sobre pesquisa na pós-graduação, procuro começar com uma reflexão breve, mas que pretende ser instigante, a respeito da investigação científica. Reflexão sobre a incursão pelos surpreendentes e venturosos caminhos do conhecimento. A sabedoria oriental, estou convencido, tem muito a nos dizer a esse respeito. Certa feita, ao responder a um interlocutor admirado com o seu grau de conhecimento, Confúcio afirmou: 'é que eu consegui achar o fio da meada'. 'Questão de método', eis o ponto. 'Questão de método', o que não por acaso pode ser tomado como analogia em relação a uma obra de Sartre de igual denominação. O que abaixo segue, foi a breve nota de abertura de uma disciplina recente sobre Pesquisa em Educação.
O enigma da esfinge e o conhecimento: necessidade de aprender a decifrar
Por Ivonaldo Leite
Podemos começar por falar sobre pesquisa e conhecimento científico
fazendo alusão a uma expressão utilizada na literatura alemã pelo escritor
Johann Wolfang von Goethe: “Tudo que é próximo se afasta”. Ao dizer assim,
Goethe referia-se ao crepúsculo do cair da tarde, mas, como bem notou o
argentino Jorge Luís Borges, o axioma goetheano pode ter como
endereço a própria vida, as perdas que ela
impõe a todos ao longo dos tempos. Privado da visão, Borges foi
emblemático: ao entardecer, as coisas
mais próximas já se afastam de nossos olhos. Todas as coisas vão-nos
deixando. A velhice deve ser a suprema solidão, salvo que a suprema solidão é a
morte.
Por certo, é melancólico que o mundo visível
se tenha afastado dos olhos de Borges quando da manifestação crepuscular
de uma existência que, pela sua produção espiritual, negava o
perecer e o sagrava pela consagração da sua obra. Ser e tempo.
Neste particular, ponto para outro alemão, o filósofo Heidegger. Todos nós
estamos, de fato, na possibilidade de recorrer à vontade e à
inteligência para conduzir as emoções; isso prova uma certa primazia do
querer e do saber sobre o sentir. Contudo, esse recurso à
inteligência e à vontade não nos deve levar ao erro de negar que
estamos primeiro no sentimento. A existência-no-mundo é uma
grande emoção: é o sentimento de estar atirado numa
situação que nos parece desviada de nossa
verdade e tremendamente perigosa. Ao que se nos
apresenta a trilha a seguir.
O permanente do pensamento é o rumo. Nos rumos do pensamento,
escondem-se as possibilidades misteriosas de nele podermos avançar
retrocedendo, de a própria via de
retorno nos conduzir para adiante. Na penumbra da sua luz, o pensamento vê a realidade
iluminada. E nós, habitantes de sua iluminação. Mas a sua
pouca luz, em vez de sossegar, inquieta a nossa ignorância,
afinal é próprio do pensamento estar em dúvidas e cheio de
enigmas. O presente do que estava próximo, do que foi,
passou, e agora, distantes, olhamos o ser no tempo pretérito
indagando-nos a respeito do que ocorreu, sob o impulso dos raios
de luz emanados do ato de pensar.
A sobrevivência de uma realidade finita, que para trás ficou,
atormenta o pensamento por ainda revelar o sentido do ocorrido. Nostálgica angústia.
Mas este é um estado que, antes de qualquer coisa, abre-nos o
mundo enquanto mundo, a experiência da existência. Assim, o
termo existir torna-se sinônimo de ser-no-mundo,
não constituindo, no fundo, senão outro nome para exprimir
o que Husserl entende pela intencionalidade da consciência, ao defini-la
como vida que experimenta o mundo.
A existência não se esgota na compreensão do viver
necessariamente na circunstância-mundo, nem na compreensão do risco
do ganhar ou perder. Ela ainda se compreende como ser-para-o-fim, que se abre
para outro porvir, transcendendo o seu em si. Busca
de conhecimento.
Mas, como chegar a esse conhecimento, designadamente ao conhecimento
sistematizado, científico? Pela pesquisa, pelo emprego de métodos.
Note-se: métodos, no plural. E se método é caminho, há de se buscar mais
de um caminho para chegar ao conhecimento sistemático. No mais das vezes,
trata-se de um processo com percalços, onde é preciso saber desbravar as
trilhas. Contrapor-se a opiniões dominantes. Dizer verdades que podem não
agradar a maiorias eventuais. Mas, como ensinou Galileu Galilei, personalidade
fundamental da Revolução Científica no século XVII, a verdade não resulta do quantitativo que nela acredita, assim como
também não decorre da autoridade que a pronuncia, mas emana, sim, do seu
percurso no tempo, na história. Ele próprio, Galileu, é um exemplo a ser
referido como alguém determinado a buscar o conhecimento, tendo de enfrentar os
percalços decorrentes do contexto de incompreensão da época em que viveu (só
tardiamente, muito tempo depois, reconheceu-se o acerto do seu pensamento).
Por estas e outras razões, na busca do conhecimento, falamos de métodos
no plural, de caminhos. E, sobretudo nas ciências humanas, as formas de buscar
o conhecimento, de estudar determinado tema, podem assumir um caráter de
bastante singularidade. As configurações da pesquisa/observação participante
exemplificam isso. Mas não só. A técnica
da pseudografia, embora possa ser considerada um ‘recurso marginal’ (das
margens), também é de ser referida. No mundo da poesia (onde é frequente a sua
utilização), sabe-se bem como Fernando Pessoa dela fez uso. Mas, também assim
ter-se-á passado, em alguns momentos, com a topografia filosófica de Walter
Benjamin, o pensador judeu-alemão de ‘uma verve marcante’.
Ficamos
com a impressão que Benjamin, quase nunca
jogando com ‘cartas descobertas’, utilizou a técnica da pseudografia, tão cara aos místicos e poetas, para
surpreender a verdade, suspeitando ser esta inacessível à mediação autônoma
direta. E é assim que nele encontramos o impulso para romper com a lógica que
aborda limitativamente o universal
e o individual. O inquieto desejo de compreender a essência sem a destilar em operações
automáticas e sem a contemplar em duvidoso êxtase imediato. Estiola então a máscara
da ‘ideologia dos dados’, encontrando por trás dela a face do conceito
extraviado. Dissipa uma ‘pretensa chave metafísica’ de interpretação de imagens
enigmáticas. Mesmo estas, como se diz no barroco poema
sobre a melancolia, têm que colocar-se a falar. E por estas e outras
alamedas, somos informados que o preço da esperança é a vida.
É esse o mundo que se coloca ao iniciante na pesquisa, na busca do
conhecimento sistematizado. Dele, exige-se esforço, dedicação e disciplina nos
estudos (se as coisas são tratadas com a seriedade devida e o compromisso
necessário). No desenvolvimento do seu trabalho, terá de manter-se aberto às
mudanças, abdicando de posições comuns
relativas à temática da pesquisa, de opiniões
construídas por pré-noções, de ideias
não problematizadas analiticamente. Por mais que posições, opiniões e ideias estejam arraigadas no seu cerne e
sejam do seu cotidiano. Mas, relacionando ciência e arte, vale (re)lembrar o
que afirmou Goethe: o afastamento do que é próximo. O sujeito do conhecimento
do início de uma pesquisa não há de ser o mesmo do seu fim. Se o seu percurso
for exitoso, ao longo da trajetória do estudo, haverá de ter aprendido a exercitar
a arte de pensar/refletir, e então terá superado, como disse Bourdieu, as categorias de pensamento impensadas, que
delimitam o pensável e predeterminam o pensado.
Adorei o título!
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