sábado, 12 de outubro de 2013

Carta a um (imaginário) iniciante em pesquisa

Sempre que ministro uma disciplina ou seminário sobre pesquisa na pós-graduação, procuro começar com uma reflexão breve, mas que pretende ser instigante, a respeito da investigação científica. Reflexão sobre a incursão pelos surpreendentes e venturosos caminhos do conhecimento. A sabedoria oriental, estou convencido, tem muito a nos dizer a esse respeito. Certa feita, ao responder a um interlocutor admirado com o seu grau de conhecimento, Confúcio afirmou: 'é que eu consegui achar o fio da meada'. 'Questão de método', eis o ponto. 'Questão de método', o que não por acaso pode ser tomado como analogia em relação a uma obra de Sartre de igual denominação. O que abaixo segue, foi a breve nota de abertura de uma disciplina recente sobre Pesquisa em Educação. 

O enigma da esfinge e o conhecimento: necessidade de aprender a decifrar 


Por Ivonaldo Leite

Podemos começar por falar sobre pesquisa e conhecimento científico fazendo alusão a uma expressão utilizada na literatura alemã pelo escritor Johann Wolfang von Goethe: “Tudo que é próximo se afasta”. Ao dizer assim, Goethe referia-se ao crepúsculo do cair da tarde, mas, como bem notou o argentino Jorge Luís Borges, o axioma goetheano pode ter como endereço a própria vida, as perdas que ela impõe a todos ao longo dos tempos. Privado da visão, Borges foi emblemático: ao entardecer, as coisas mais próximas já se afastam de nossos olhos. Todas as coisas vão-nos deixando. A velhice deve ser a suprema solidão, salvo que a suprema solidão é a morte.
Por certo, é melancólico que o mundo visível se tenha afastado dos olhos de Borges quando da manifestação crepuscular de uma existência que, pela sua produção espiritual, negava o perecer e o sagrava pela consagração da sua obra. Ser e tempo. Neste particular, ponto para outro alemão, o filósofo Heidegger. Todos nós estamos, de fato, na possibilidade de recorrer à vontade e à inteligência para conduzir as emoções; isso prova uma certa primazia do querer e do saber sobre o sentir. Contudo, esse recurso à inteligência e à vontade não nos deve levar ao erro de negar que estamos primeiro no sentimento. A existência-no-mundo é uma grande emoção: é o sentimento de estar atirado numa situação que nos parece desviada de nossa verdade e tremendamente perigosa. Ao que se nos apresenta a trilha a seguir.
O permanente do pensamento é o rumo. Nos rumos do pensamento, escondem-se as possibilidades misteriosas de nele podermos avançar retrocedendo, de a  própria via de retorno nos conduzir para adiante. Na penumbra da sua luz, o pensamento vê a realidade iluminada. E nós, habitantes de sua iluminação. Mas a sua pouca luz, em vez de sossegar, inquieta a nossa ignorância, afinal é próprio do pensamento estar em dúvidas e cheio de enigmas. O presente do que estava próximo, do que foi, passou, e agora, distantes, olhamos o ser no tempo pretérito indagando-nos a respeito do que ocorreu, sob o impulso dos raios de luz emanados do ato de pensar.  
 A sobrevivência de uma realidade finita, que para trás ficou, atormenta o pensamento por ainda revelar o sentido do ocorrido. Nostálgica angústia. Mas este é um estado que, antes de qualquer coisa, abre-nos o mundo enquanto mundo, a experiência da existência. Assim, o termo existir torna-se sinônimo de ser-no-mundo, não constituindo, no fundo, senão outro nome para exprimir o que Husserl entende pela intencionalidade da consciência, ao defini-la como vida que experimenta o mundo.
 A existência não se esgota na compreensão do viver necessariamente na circunstância-mundo, nem na compreensão do risco do ganhar ou perder. Ela ainda se compreende como ser-para-o-fim, que se abre para outro porvir, transcendendo o seu em si. Busca de conhecimento.
Mas, como chegar a esse conhecimento, designadamente ao conhecimento sistematizado, científico? Pela pesquisa, pelo emprego de métodos.
Note-se: métodos, no plural. E se método é caminho, há de se buscar mais de um caminho para chegar ao conhecimento sistemático. No mais das vezes, trata-se de um processo com percalços, onde é preciso saber desbravar as trilhas. Contrapor-se a opiniões dominantes. Dizer verdades que podem não agradar a maiorias eventuais. Mas, como ensinou Galileu Galilei, personalidade fundamental da Revolução Científica no século XVII, a verdade não resulta do quantitativo que nela acredita, assim como também não decorre da autoridade que a pronuncia, mas emana, sim, do seu percurso no tempo, na história. Ele próprio, Galileu, é um exemplo a ser referido como alguém determinado a buscar o conhecimento, tendo de enfrentar os percalços decorrentes do contexto de incompreensão da época em que viveu (só tardiamente, muito tempo depois, reconheceu-se o acerto do seu pensamento). 
Por estas e outras razões, na busca do conhecimento, falamos de métodos no plural, de caminhos. E, sobretudo nas ciências humanas, as formas de buscar o conhecimento, de estudar determinado tema, podem assumir um caráter de bastante singularidade. As configurações da pesquisa/observação participante exemplificam isso. Mas não só. A técnica da pseudografia, embora possa ser considerada um ‘recurso marginal’ (das margens), também é de ser referida. No mundo da poesia (onde é frequente a sua utilização), sabe-se bem como Fernando Pessoa dela fez uso. Mas, também assim ter-se-á passado, em alguns momentos, com a topografia filosófica de Walter Benjamin, o pensador judeu-alemão de ‘uma verve marcante’.  
Ficamos com a impressão que Benjamin, quase nunca jogando com ‘cartas descobertas’, utilizou a técnica da pseudografia, tão cara aos místicos e poetas, para surpreender a verdade, suspeitando ser esta inacessível à mediação autônoma direta. E é assim que nele encontramos o impulso para romper com a lógica que aborda limitativamente o universal e o individual. O inquieto desejo de compreender a essência sem a destilar em operações automáticas e sem a contemplar em duvidoso êxtase imediato. Estiola então a máscara da ‘ideologia dos dados’, encontrando por trás dela a face do conceito extraviado. Dissipa uma ‘pretensa chave metafísica’ de interpretação de imagens enigmáticas. Mesmo estas, como se diz no barroco poema sobre a melancolia, têm que colocar-se a falar. E por estas e outras alamedas, somos informados que o preço da esperança é a vida. 
É esse o mundo que se coloca ao iniciante na pesquisa, na busca do conhecimento sistematizado. Dele, exige-se esforço, dedicação e disciplina nos estudos (se as coisas são tratadas com a seriedade devida e o compromisso necessário). No desenvolvimento do seu trabalho, terá de manter-se aberto às mudanças, abdicando de posições comuns relativas à temática da pesquisa, de opiniões construídas por pré-noções, de ideias não problematizadas analiticamente. Por mais que posições, opiniões e ideias estejam arraigadas no seu cerne e sejam do seu cotidiano. Mas, relacionando ciência e arte, vale (re)lembrar o que afirmou Goethe: o afastamento do que é próximo. O sujeito do conhecimento do início de uma pesquisa não há de ser o mesmo do seu fim. Se o seu percurso for exitoso, ao longo da trajetória do estudo, haverá de ter aprendido a exercitar a arte de pensar/refletir, e então terá superado, como disse Bourdieu, as categorias de pensamento impensadas, que delimitam o pensável e predeterminam o pensado.







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