sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Gosto

gostos de classe e estilos de vida na cultura

Por Vinicius Siqueira 

'Gostos de Classe e Estilos de Vida' é um texto marcante de Pierre Bourdieu. Esta resenha tem como objetivo comentar sobre alguns de seus conceitos e está totalmente aberta à modificações. Para o autor, a estrutura social internalizada e transformada em estrutura mental tem importância vital nos estilos de vida.

Habitus para definir os estilos de vida
“Às diferentes posições no espaço social correspondem estilos de vida, sistemas de desvios diferenciais que são a retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência.”
O que isso significa? As condições de existência, como a posição dentro da estrutura econômica (operário, funcionário de colarinho branco, capitalista) e os grupos os quais o sujeito se relaciona, são como modelos que, de certa forma, definem os estilos de vida (ou seja, as práticas e as propriedades) de uma dada posição social que é ocupada por um dado agente social. Pierre Bourdieu não trata de sujeitos, mas de agentes sociais, ou seja, de um agente que transforma o mundo cotidianamente pela prática.
Mas essa prática não é livre, autodeterminante. Ela é mediada pelo Habitus, que é um sistema de disposições inculcadas e incorporadas socialmente. É um sistema de disposições, portanto, que projeta práticas, mas, como dito, essas práticas são inculcadas e incorporadas, ou seja, elas não são criações individuais, mas construções sociais. O habitus é, então, a estrutura social que, ao ser interiorizada pelo indivíduo, se transforma em estrutura mental. O habitus é aquilo que foi estruturado pela realidade exterior e que estrutura as práticas “interiormente”.
Se é assim, então o habitus é aquilo que gera o gosto de classe. É um princípio unificador e gerador de todas as práticas. Isso significa, mais ou menos, que, apesar de a consciência (se é que se pode utilizar essa palavra) ser algo individual (por que precisa do cérebro), ela não é livre de qualquer estruturação. Não somos, neste ponto de vista, nem totalmente livres, mas não somos, também, marionetes do ambiente.

O luxo e a necessidade
Para o autor, as formas de apreensão do mundo estão diretamente relacionadas com o distanciamento que se pode ter da realidade. Com a urgência que a posição social leva o agente a perceber e se relacionar com o mundo, ela o leva a ter uma relação típica com os bens culturais disponíveis. Melhor: leva-o a perceber estes bens culturais, como obras de arte em pintura, música e escultura, de maneira diferente.
Isso significa que, aqueles que percebem os bens culturais de maneira “legítima”, os percebem enquanto forma, já aqueles que não dominam a apreciação dos bens culturais considerados legítimos, percebem-nos enquanto função. Existe, desta forma, uma maneira legítima de apreender cada obra de arte e ela está ligada com a formação do campo artístico e com a reivindicação da arte pela arte: a maneira legítima de apreender a obra de arte é entendê-la como um produto puramente artístico, como pura forma. Esta é a maneira que os intelectuais da arte, os “bons críticos”, os mecenas e os produtores de arte legitimam seu próprio trabalho no campo artístico: arte é aquilo que é feito para si, não para servir aos interesses econômicos ou políticos de ninguém.
Já as camadas menos intelectualizadas se relacionam com a arte mais enquanto função do que enquanto forma. Isso significa que, ao invés de apreciar uma certa “aura” da obra, o que se aprecia, o que se entende, o que se observa, é sua função. “Nossa, esse quadro combinou com sua parede”, “Que bonito essa pintura colorida”, “Que feio essa pessoa estranha que parece dar um grito de desespero”.

gostos de classe e estilos de vida no quadro o grito

De um lado a outro da estrutura social
Mas o interessante deste texto de Bourdieu é como esta oposição (forma X função) vai variando e tombando para um dos lados conforme se aproxima de um extremo da estrutura social. Ou seja, os intelectuais e os “filhos da aristocracia” herdaram um capital cultural, ou seja, uma maneira legitimada do saber artístico, aprendida cotidianamente, em cada partitura no piano, a cada treino de voz, a cada ópera, que os permitem agir “naturalmente” da forma legítima, ou seja, uma forma de apreender a arte (e o mundo) que aprece até mesmo ser natural, ser dom divino.
Ao contrário, burgueses, por saberem quais são os autores legítimos, costumam responder às pesquisas os citando (principalmente os mais famosos); entretanto, quando são perguntados do por quê de se gostar de tal autor, as respostas são vazias. De sua parte, setores populares não gostam da arte “complicada”. Vale dizer que essas constatações fazem parte do trabalho de Bourdieu.

Boa vontade cultural
Aqui entra um conceito que, pra mim, é muito interessante.
“A boa vontade cultural se exprime, entre outras coisas, por uma escolha particularmente frequente dos mais incondicionais testemunhos da docilidade cultural (escolha de amigos ‘que têm educação’, gosto pelos espetáculos ‘educativos’ ou ‘instrutivos’) frequentemente acompanhados de um sentimento de indignidade ou de demissão (‘a pintura é bonita, mas é difícil’ etc.).”
A boa vontade cultural tem a ver com não com ter incorporado as práticas culturais legítimas, mas saber que elas existem e, desta forma, tentar ficar, digamos, acima da carne seca. É saber que algo é bom, mesmo que não se saiba porque é bom.
Então é possível que alguém diga que jazz é uma maravilha, sertanejo é horrível, que Dante Alighieri é gênio puro, Bukowski é gênio incompreendido, já Paulo Coelho é terrível, ou que A Doce Vida é uma obra de arte, mas Velozes e Furiosos é só um produto comercial; no entanto, no fundo, não sabe o porquê dessa manifestação. Na verdade,  uma pessoa diria tais coisas, provavelmente, porque esta é a forma legítima de julgar a arte, mas não entenderia tão profundamente o porquê disso. Essa é a diferença que Bourdieu exemplifica com o Gourmet, o sujeito que sabe o sabor correto “por natureza”, e o gastrônomo, aquele que precisou aprender durante uma jornada truncada e acelerada os referenciais legítimos da gastronomia. 
O gourmet sabe porque sabe, o gastrônomo precisa pensar, racionalizar e utilizar suas técnicas conscientemente para definir se algum prato está bom ou não.

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Fonte: http://colunastortas.com.br. 

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