Templo dedicado a Mitra |
Por Alexandre Versignassi
Roma,
século II, dia 25 de dezembro. A população está em festa, em homenagem ao
nascimento daquele que veio para trazer benevolência, sabedoria e solidariedade
aos homens. Cultos religiosos celebram o ícone, nessa que é a data mais sagrada
do ano. Enquanto isso, as famílias apreciam os presentes trocados dias antes e
se recuperam de uma longa comilança.
Mas, não. Essa comemoração
não é o Natal. Trata-se de uma homenagem à data de “nascimento” do deus persa
Mitra, que representa a luz, e, ao longo do século II, tornou-se uma das
divindades mais respeitadas entre os romanos. Qualquer semelhança com o feriado
cristão, no entanto, não é mera coincidência.
A história do Natal começa, na verdade, pelo menos 7 mil
anos antes do nascimento de Jesus. É tão antiga quanto a civilização e tem um
motivo bem prático: celebrar o solstício de inverno, a noite mais longa do ano
no hemisfério norte, que acontece no final de dezembro. Dessa madrugada em
diante, o sol fica cada vez mais tempo no céu, até o auge do verão. É o ponto
de virada das trevas para luz: o “renascimento” do Sol. Num tempo em que o
homem deixava de ser um caçador errante e começava a dominar a agricultura, a
volta dos dias mais longos significava a certeza de colheitas no ano seguinte.
E então era só festa. Na Mesopotâmia, a celebração durava 12 dias. Já os gregos
aproveitavam o solstício para cultuar Dionísio, o deus do vinho e da vida
mansa, enquanto os egípcios relembravam a passagem do deus Osíris para o mundo
dos mortos. Na China, as homenagens eram (e ainda são) para o símbolo do
yin-yang, que representa a harmonia da natureza. Até povos antigos da Grã-Bretanha,
mais primitivos que seus contemporâneos do Oriente, comemoravam: o “forrobodó”
era em volta de Stonehenge, monumento que começou a ser erguido em 3100 a.C.
para marcar a trajetória do Sol ao longo do ano.
A comemoração em Roma, então, era só mais um reflexo de
tudo isso. Cultuar Mitra, o deus da luz, no 25 de dezembro, era nada mais do
que festejar o velho solstício de inverno – pelo calendário atual, diferente
daquele dos romanos, o fenômeno, na verdade, acontece no dia 20 ou 21,
dependendo do ano. Seja como for, o culto a Mitra chegou à Europa lá pelo
século IV a.C., quando Alexandre, o Grande, conquistou o Oriente Médio.
Centenas de anos depois, soldados romanos viraram devotos da divindade. E ela
foi parar no centro do Império.
Mitra, então, ganhou uma celebração exclusiva: o Festival
do Sol Invicto. Esse evento passou a fechar outra farra dedicada ao solstício.
Era a Saturnália, que durava uma semana e servia para homenagear Saturno,
senhor da agricultura. “O ponto inicial dessa comemoração eram os sacrifícios
ao deus. Enquanto isso, dentro das casas, todos se felicitavam, comiam e
trocavam presentes”, dizem os historiadores Mary Beard e John North, no livro Religions of Rome (“Religiões de Roma”,
sem tradução para o português). Os mais animados se entregavam a orgias – mas
isso os romanos faziam o tempo todo. Bom, enquanto isso, uma religião nanica
que não dava bola para essas coisas crescia em Roma: o cristianismo.
Solstício cristão
As datas religiosas mais importantes para os primeiros
seguidores de Jesus só tinham a ver com o martírio dele: a Sexta-Feira Santa
(crucificação) e a Páscoa (ressurreição). O costume, afinal, era lembrar apenas
a morte de personagens importantes. Líderes da Igreja achavam que não fazia
sentido comemorar o nascimento de um santo ou de um mártir – já que ele só se
torna uma coisa ou outra depois de morrer. Sem falar que ninguém fazia ideia da
data em que Cristo veio ao mundo – o Novo Testamento não diz nada a respeito.
Só que tinha uma coisa: os fiéis de Roma queriam arranjar algo para fazer
frente às comemorações pelo solstício. E colocar uma celebração cristã bem
nessa época viria a calhar – principalmente para os chefes da Igreja, que
teriam mais facilidade em amealhar novos fiéis. Aí, em 221 d.C., o historiador
cristão Sextus Julius Africanus teve a sacada: cravou o aniversário de Jesus no
dia 25 de dezembro, nascimento de Mitra. A Igreja aceitou a proposta e, a
partir do século IV, quando o cristianismo virou a religião oficial do Império,
o Festival do Sol Invicto começou a mudar de homenageado. “Associado ao
deus-sol, Jesus assumiu a forma da luz que traria a salvação para a
humanidade”, diz o historiador Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Assim, a
invenção católica herdava tradições anteriores. “Ao contrário do que se pensa,
os cristãos nem sempre destruíam as outras percepções de mundo como rolos
compressores. Nesse caso, o que ocorreu foi uma troca cultural”, afirma outro
historiador especialista em Antiguidade, André Chevitarese, da UFRJ.
Não dá para dizer ao certo como eram os primeiros Natais
cristãos, mas é fato que hábitos como a troca de presentes e as refeições
suntuosas permaneceram. E a coisa não parou por aí. Ao longo da Idade Média,
enquanto missionários espalhavam o cristianismo pela Europa, costumes de outros
povos foram entrando para a tradição natalina. A que deixou um legado mais
forte foi o Yule, a festa que os nórdicos faziam em homenagem ao solstício. O
presunto da ceia, a decoração toda colorida das casas e a árvore de Natal vêm
de lá. Só isso.
Outra contribuição do norte foi a ideia de um ser
sobrenatural que dá presentes para as criancinhas durante o Yule. Em algumas
tradições escandinavas, era (e ainda é) um gnomo quem cumpre esse papel. Mas
essa figura logo ganharia traços mais humanos.
Nasce o Papai Noel
Ásia Menor, século IV. Três moças da cidade de Myra (onde
hoje fica a Turquia) estavam na pior. O pai delas não tinha um gato para puxar
pelo rabo, e as garotas só viam uma saída: entrar para o ramo da prostituição.
Foi então que, numa noite de inverno, um homem misterioso jogou um saquinho
cheio de ouro pela janela (alguns dizem que foi pela chaminé) e sumiu. Na noite
seguinte, atirou outro; depois, mais outro. Um para cada moça. Aí as meninas
usaram o ouro como dotes de casamento – não dava para arranjar um bom marido na
época sem pagar por isso. E “viveram felizes para sempre”, sem se tornarem
prostitutas. Tudo graças ao sujeito dos saquinhos. O nome dele? Papai Noel.
Bom, mais ou menos. O tal benfeitor era um homem de carne
e osso conhecido como Nicolau de Myra, o bispo da cidade. Não existem registros
históricos sobre a vida dele, mas lenda é o que não falta. Nicolau seria um
ricaço que passou a vida dando presentes para os pobres. Histórias sobre a generosidade
do bispo, como essa das moças que escaparam do bordel, ganharam status de mito.
Logo atribuíram toda sorte de milagres a ele. E um século após sua morte, o
bispo foi canonizado pela Igreja Católica. Virou são Nicolau.
Um santo multiuso: padroeiro das crianças, dos mercadores
e dos marinheiros, que levaram sua fama de bonzinho para todos os cantos do
Velho Continente. Na Rússia e na Grécia Nicolau virou o santo nº1, a Nossa
Senhora Aparecida deles. No resto da Europa, a imagem benevolente do bispo de
Myra se fundiu com as tradições do Natal. E ele virou o presenteador oficial da
data. Na Grã-Bretanha, passaram a chamá-lo de Father Christmas (Papai Natal).
Os franceses cunharam Pére Nöel, que quer dizer a mesma coisa e deu origem ao
nome que usamos aqui. Na Holanda, o santo Nicolau teve o nome encurtado para
Sinterklaas. E o povo dos Países Baixos levou essa versão para a colônia
holandesa de Nova Amsterdã (atual Nova York) no século XVII – daí o Santa Claus
que os ianques adotariam depois. Assim o Natal que a gente conhece ia ganhando
o mundo, mas nem todos gostaram da ideia.
Natal fora-da-lei
Inglaterra, década de 1640. Em meio a uma sangrenta
guerra civil, o rei Charles 1º digladiava com os cristãos puritanos – os
filhotes mais radicais da Reforma Protestante, que dividiu o cristianismo em
vários segmentos no século XVI.
Os puritanos queriam quebrar todos os laços que outras
igrejas protestantes, como a anglicana (dos nobres ingleses), ainda mantinham com o catolicismo. A ideia de
comemorar o Natal, veja só, era um desses laços. Então precisava ser extirpada.
Primeiro, eles tentaram mudar o nome da data de
“Christmas” (Christ’s mass, ou Missa de Cristo) para Christide (Tempo de
Cristo) – já que “missa” é um termo católico. Não satisfeitos, decidiram
extinguir o Natal numa canetada: em 1645, o Parlamento, de maioria puritana,
proibiu as comemorações pelo nascimento de Cristo. As justificativas eram que,
além de não estar mencionada na Bíblia, a festa ainda dava início a 12 dias de
gula, preguiça e mais um punhado de outros pecados.
A população não quis nem saber e “continuou a cair na
gandaia” às escondidas. Em 1649, Charles I foi executado e o líder do exército puritano
Oliver Cromwell assumiu o poder. As intrigas sobre a comemoração se acirraram,
e chegaram a pancadaria e repressões violentas. A situação, no entanto, durou
pouco. Em 1658 Cromwell morreu e a restauração da monarquia trouxe a festa de
volta. Mas o Natal não estava completamente a salvo. Alguns puritanos, do outro
lado do oceano, logo proibiriam a comemoração em “suas bandas”. Foi na então
colônia inglesa de Boston, onde festejar o 25 de dezembro virou uma prática
ilegal entre 1659 e 1681. O lugar que se tornaria os EUA, afinal, tinha sido
colonizado por puritanos ainda mais linha-dura que os seguidores de Cromwell.
Tanto que o Natal só virou feriado nacional por lá em 1870, quando uma nova
realidade já falava mais alto que cismas religiosas.
Tio Patinhas
Londres, 1846, auge da Revolução Industrial. O rico
Ebenezer Scrooge passa seus Natais sozinho e quer que os pobres se explodam
“para acabar com o crescimento da população”, dizia. Mas aí ele “recebe a
visita de 3 espíritos” que representam o Natal. Eles lhe ensinam que essa é a
data para esquecer diferenças sociais, abrir o coração, compartilhar riquezas.
E o pão-duro se transforma num homem generoso.
Eis o enredo de Um Conto de Natal, do britânico Charles
Dickens. O escritor vivia em uma Londres caótica, suja e superpopulosa – o
número de habitantes tinha saltado de 1 milhão para 2,3 milhões na 1ª metade do
século XIX. Dickens, então, carregou nas tintas para evocar o Natal como um
momento de redenção contra esse estresse todo, um intervalo de fraternidade em
meio à competição do capitalismo industrial. Depois, inúmeros escritores
seguiram a mesma linha – o nome original do Tio Patinhas, por exemplo, é Uncle
Scrooge, e a primeira história do pato avarento, feita em 1947, faz paródia a Um Conto de Natal. Tudo isso, no fim das
contas, consolidou a imagem do “espírito natalino” que hoje retumba na mídia.
Outra contribuição da
Revolução Industrial, bem mais óbvia, foi a produção em massa. Ela turbinou a
indústria dos presentes, fez nascer a publicidade natalina e acabou
transformando o bispo Nicolau no garoto-propaganda mais requisitado do planeta.
Até meados do século XIX, a imagem mais comum dele era a de um bispo mesmo, com
manto vermelho e mitra – aquele chapéu comprido que as autoridades católicas
usam. Para se enquadrar nos novos tempos, então, o homem passou por uma
plástica. O cirurgião foi o desenhista americano Thomas Nast, que em 1862,
tirou as referências religiosas, adicionou uns quilinhos a mais, remodelou o
figurino vermelho e estabeleceu a residência dele no Polo Norte – para que o
velhinho não pertencesse a país nenhum. Nascia o Papai Noel de hoje. Mas a
figura do bom velhinho só “bombaria” mesmo no mundo todo depois de 1931, quando
ele virou estrela de uma série de anúncios da Coca-Cola. A campanha foi sucesso
imediato. Tão grande que, nas décadas seguintes, ele se tornou a coisa mais
associada ao Natal. Mais até que o verdadeiro homenageado da comemoração. Ele
mesmo: o Sol.
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Fonte: https://super.abril.com.br/. Título original: 'A verdadeira história do Natal'.
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