Por Antonio Ozaí da Silva
(Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá - UEM)
“A existência de que
desfrutais é igualmente dividida entre a morte e a vida. O primeiro dia do
vosso nascimento vos encaminha para morrer como para viver”(MONTAIGNE,
2010, p. 77)
“Ao nascermos, morremos,
e o fim decorre da origem” (Manílio, IV, 16) [1]
Por
que escrever sobre a morte? Por que pensar sobre o inexorável? Por que consumir
o precioso tempo de viver, tempo que não retorna, para refletir a respeito da
verdade absoluta da finitude da existência? Não é melhor simplesmente viver a
vida sem pensar e submergir no cotidiano dos dias que passam? Morreremos! Que a
vida seja intensa em toda a sua plenitude e, de certa forma, esqueçamos de
morrer. É preciso viver como se não houvesse o amanhã. Carpe diem!
Não
obstante, a morte nos surpreende e caminha ao nosso lado, em nós, desde o
momento em que a vida é concebida. Para o feto, ainda em desenvolvimento no
ventre materno, a vida é apenas uma possibilidade. O nascimento não representa
a vitória sobre a morte, mas simplesmente a continuidade do ciclo da vida. Vida
e morte se unem no mesmo ser, e o corpo que se desenvolve, robusto e saudável,
já começou a morrer. Não há certeza de que chegará ao tempo da velhice. Seja
como for, não resistirá aos ditames da natureza.
Este não é
um processo meramente biológico. Se a vida e morte humana transcorressem
meramente como uma evolução biológica seríamos reduzidos à categoria de um
animal qualquer. Somos animais, mas diferentes. Não pautamos nossa vida apenas
pelos instintos, ainda que sejam importantes. O animal não-humano
institivamente sente que vai morrer; o ser humano tem a consciência da morte e,
culturalmente, desenvolve mecanismos protetores e compensadores diante da
certeza da finitude e do pós-morte. A espécie humana se imagina especial
destinado a uma vida post mortem e
elabora diversas teorias e crenças na esperança de que a vida seja eterna.[2] A morte humana transfigura-se num
ritual cultural, religioso e social, circunscrito no tempo e no espaço
histórico. Povos e grupos sociais, nas mais diversas sociedades e culturas, têm
o seu modo específico de conviver, ritualizar e conceber a morte.
A consciência
da morte é humana. Talvez por isto, assuma a face de um drama desesperador e,
muitas vezes, insuperável. Embora esteja presente no dia-a-dia, sempre nos
parece distante, pertencente a um futuro que nos recusamos a vislumbrar e se
refere aos outros. Por que transformamos a morte num tema tabu? Por que a
dificuldade em aceitá-la com naturalidade? Não é mais sensato aprender a
conviver com a certeza de que morreremos?
Montaigne
ensina que a sabedoria está em aprender a não ter medo de morrer. Meditar e
aprender sobre a morte é parte do aprendizado do viver bem. Para ele, recusar
esta verdade é estupidez:
A morte é o fim da nossa caminhada, é
o objeto necessário de nossa mira; se nos apavora, como é possível dar um passo
à frente sem ser tomado pela ansiedade? O remédio do vulgo é não pensar nela.
Mas de que estupidez brutal pode vir cegueira tão grosseira? É pôr a brida na
cauda do burro (MONTAIGNE, 2010, p.63).
Por outro
lado, também é risível vincular a morte à idade. É ridícula a arrogância dos
jovens diante da velhice, como se a partir de certa idade a morte se anunciasse
no rosto enrugado e no corpo decrépito. Quem sabe o horror ao longevo se
explique mais pelo espetáculo da morte anunciada do que por antecipar o futuro
indesejado ao jovem. Os critérios da morte não são definidos pela certidão de
nascimento. O aborto, o natimorto, a morte na infância e adolescência e em
qualquer tempo da vida, mostra a sandice de se imaginar imune ao destino finito
de todo ser vivente:
Jovens e velhos abandonam a vida da
mesma maneira. Dela ninguém sai de outro jeito senão como se tivesse entrado
naquele instante, acrescentando-se a isso que não há homem tão decrépito que
não pense ainda ter vinte anos no corpo enquanto enxergar Matusalém diante de
si. E ademais, pobre louco que és, quem te fixou os prazos de tua vida (Id.,
64).
Montaigne
escreveu estas palavras aos 39 anos de idade – viveu mais 20 anos. O romano
Marco Túlio Cícero provavelmente concordaria com ele. “Aliás, quem pode estar
seguro, mesmo jovem de estar ainda vivo até o anoitecer?”, escreveu Cícero
(2007, p. 53). Embora apologista da velhice, o sábio romano chamou a atenção
para a insensatez de imaginar que a flor da idade torna o jovem imune à morte:
Alimentaria o jovem, apesar de tudo, a
esperança de viver ainda muito tempo, enquanto isso é interdito ao velho? Mas
vejam, é uma esperança insensata: que pode haver de mais insano que ter por
certo o que não o é e por verdadeiro o que é falso? (Id.)
No
entanto, a morte considerada prematura é mais impactante. Assim, é mais
naturalmente aceita a morte na velhice do que a dos jovens e crianças. Cícero
expõe em bela metáfora este paradoxo da vida humana:
Que há de mais natural para um velho
do que a perspectiva de morrer? Quando a morte golpeia a juventude, a natureza
resiste e se rebela. Assim como a morte de um adolescente me faz pensar numa
chama viva apagada sob um jato d’água, a de um velho se assemelha a um fogo que
suavemente se extingue. Os frutos verdes devem ser arrancados à força da árvore
que os carrega; quando estão maduros, ao contrário, eles caem naturalmente
(Id., p. 55)
Não há,
porém, como escapar aos desígnios da morte. Com efeito, o contar do tempo é
apenas a medida da vida vivida, nada diz sobre a intensidade do viver. O meu
avô faleceu com 107 anos de idade, mas será que sua experiência de vida fez
valer a pena tamanha longevidade? Na verdade, é preferível a morte ao
prolongamento do viver sob a dor e sofrimento constantes e da perda do
autocontrole sobre o próprio corpo.
Os avanços
científicos tornaram possível o prolongamento da vida biológica, mas não
garantem, necessariamente, qualidade de vida. Sob determinadas condições, chega
a ser cruel a manutenção da vida – ainda mais quando prolongada
artificialmente. O indivíduo que se encontra em tal situação perdeu a
capacidade de decidir sobre si mesmo. Ainda que abandonasse os valores
religiosos e morais que o formaram, não teria como solicitar que dessem cabo à
vida. Se conseguisse, muito provavelmente não seria atendido, pois, em geral, a
lei pune a eutanásia. Muito dificilmente algum familiar teria tal iniciativa.
Só lhe resta viver – se se pode chamar assim a vida sob tais circunstâncias.
Isto me
faz lembrar os struldbrugss, personagens da
obra de Jonathan Swift, As viagens de Gulliver.
Os struldbrugss, raros entre os luggnaggianos, eram
imortais. Porém, quando alcançam os oitenta anos, o que é considerado o limite
extremo da vida neste país, eles sofrem de todas as excentricidades e doenças
dos demais velhos e, além delas, de muitas outras que surgiam com a
atemorizante perspectiva de nunca morrer. Não apenas são teimosos, rabugentos,
avarentos, taciturnos, presunçosos, tagarelas, como também são incapazes de
sentir amizade e encontram-se mortos para todas as afeições naturais, que
jamais se prolongam além dos seus netos. Inveja e desejos impotentes são as
afeições que prevalecem neles. (…) Aos noventa leses perdem dentes e cabelos;
com esta idade já não fazem nenhuma distinção de gosto, então comem e bebem o
que puderem conseguir, sem ter apetite e nem satisfação com isso. As doenças
que os atacam permanecem, sem evolução ou diminuição. Quando conversam,
esquecem os nomes das coisas e os nomes das pessoas, até mesmo dos que são seus
amigos e parentes mais próximos (SWIFT, 2003, p.253-255).
E daí para
pior… Swift imaginou esta cena dantesca no século XVIII (a primeira edição do
livro é de 1726). A ciência atual gera os struldbrugss modernos,
embora não possa garantir a imortalidade. Talvez seja tempo das sociedades
questionarem os valores que fundamentam tais práticas.
A
intensidade de uma vida não se mede pela quantidade de tempo vivido. Os animais
não-humanos não contam o passar do tempo, apenas vivem. Viver a ver o passar
das nuvens, imerso na mediocridade e restrito às funções vitais é diferente do
viver intenso e qualitativo. Na vida, alguns meses podem ser mais
significativos do que a longevidade:
A utilidade do viver não está na
duração: está no uso que dele fizemos. Uma pessoa viveu muito tempo e pouco
viveu. Atentai para isso enquanto estás aqui. Ter vivido bastante está em vossa
vontade, não no número dos anos (MONTAIGNE, 2010, p. 81).
É possível
acomodar-se, amoldar-se e simplesmente viver. Como notou Dostoiévski (1992, p.
68), para uso do cotidiano, é “mais do que suficiente a consciência humana comum.”
A consciência perspicaz traz à tona o sofrimento. O ser humano é o único capaz
de sofrer por antecipação. Então, diriam o vulgo e o douto, por que refletir
sobre a morte se esta indubitavelmente induz à angústia?
O comum e
o douto que se recusa a pensar sobre a morte se iludem. Pois, ela pode ser
sutil e fugaz; mas é impossível relegar sua presença. “Como é possível
conseguirmos nos desfazer do pensamento da morte, e que a cada instante não nos
pareça que ela nos agarra pela gola?”, pergunta Montaigne (2010, p. 66).
Por mais
que façamos de conta que a nossa vez está inscrita em algum lugar do futuro
indeterminado, não escapamos ao pensamento sobre a morte. Ainda que nos
recusemos firmemente, ela nos espreita e pode nos surpreender. É preciso,
portanto, que nos preparemos:
aprendamos a arrostá-la de pé firme e
a combatê-la. E para começar a tirar-lhe sua grande vantagem sobre nós, tomemos
um caminho totalmente oposto ao comum. Tiremos-lhe a estranheza,
frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na
cabeça como a morte: a todo instante a representemos em nossa imaginação em
todos os aspectos (Id., p. 68).
Onde ela
nos encontrará? Impossível saber:
Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas… Um acidente de carro.
O coração que se recusa abater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Há
muitas formas de morrer. “É incerto onde a morte nos espera, aguardemo-la por
toda parte” (MONTAIGNE, 2007, p. 69). O poder econômico, por exemplo, é incapaz
de evitar a morte provocada por uma picada de mosquito. Sejamos mais sensatos e
humildes, reconheçamos a fragilidade da existência.
Para
Montaigne, a morte está relacionada com a liberdade. Somos mais livres na
medida em que nos preparamos para morrer:
Meditar
previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade. Quem
aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. Não há nenhum mal na vida para
aquele que bem compreendeu que a privação da vida não é um mal. Saber morrer
liberta-nos de toda sujeição e imposição” (Id., p. 69).
Retiremos
as máscaras que nos iludem e nos aprisionam em nossos medos. Não é fácil, mas
nos ajudará a conceber a vida e a morte em sua simplicidade:
É
preciso tirar a máscara tanto das coisas como das pessoas. Quando for retirada,
só encontraremos embaixo essa mesma morte pela qual um criado ou uma camareira
passaram ultimamente sem medo. Feliz a morte que não deixa tempo para os
aprestos de tal viagem (Id., p.83).
Os
fantasmas que criamos são mais assustadores que a morte em si. No final, tudo
terminará bem; ou seja, de qualquer forma será o final. Não adianta tentar
escapar ao destino comum à condição biológica humana.
Referências
CÍCERO,
Marco Túlio. Saber envelhecer e A amizade. Porto
Alegre: L&PM, 2007.
DOSTOIEVSKI,
Fiodor. Memórias do subsolo e outros escritos. São Paulo, Editora Paulicéia
1992.
MONTAIGNE. Que
filosofar é aprender a morrer. In idem, Os Ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p.59-83.
SWIFT,
Jonathan. As viagens de Gulliver. São Paulo: Editora Nova Cultural:
2003.
* Publicado na REA, nº 131, abril de 2012,
disponível em http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/16685/9012
[1] Citado em Montaigne, 2010, p. 77.
[2] Sugiro a leitura de Reflexão
sobre a morte, publicado em https://antoniozai.wordpress.com/2012/03/17/reflexao-sobre-a-morte/,
17.03.2012.
[3] Raul Seixas. Canto para a minha morte.
Letra e vídeo disponível em http://letras.terra.com.br/raul-seixas/48303/
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Fonte: Publicado originalmente em: REA, nº 131, abril de 2012, disponível em http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/16685/9012. Disponibilizado pelo autor em seu blog pessoal: https://antoniozai.wordpress.com/2012/05/05/sobre-a-morte-e-a-vida/.