Muitas cobranças para que este espaço publique algo sobre as manifestações que se verificam Brasil afora. Há muito a dizer. Há muito também, ainda, a analisar. E de cá, da capital paraibana, estou propenso a realçar que falta sobriedade em determinadas abordagens. Por agora, reproduzo um texto de Hélio Schwartsam, publicado na Folha Online de hoje (19/06/2013).
As massas, a rua e a sociedade: o que esperar?
Por Hélio Schwartsam*
Que
diabos está acontecendo, é o que todos se perguntam. É verdade que ninguém
entendeu direito o que levou multidões de jovens (e alguns não tão jovens) a,
de uma hora para outra, protestar nas ruas de todo o Brasil, mas também não
estamos diante de um monstro alienígena.
Manifestações e confrontos existem desde que
surgiram as primeiras cidades, alguns milhares de anos atrás, e, mesmo na
versão moderna, em que são convocados pelas mídias sociais, ocorrem de forma
relativamente corriqueira. No presente momento, além do Brasil, há protestos em
massa ocorrendo na Turquia e na Bulgária. Poucas semanas atrás, era a
civilizada polícia sueca que enfrentava a ira de manifestantes em Estocolmo e
outras cidades.
Se estendermos o horizonte de tempo para
incluir os últimos quatro anos, a lista de países afetados pula para quase uma
centena, abarcando desde a Primavera Árabe até o "Occupy" e os
indignados. Foram atingidas desde nações miseráveis como Malaui e Bolívia até
as maiores economias do planeta. Embora cada um desses movimentos tenha uma
gênese e uma pauta diferentes e únicos, há algumas lições que podemos tirar do
agregado de experiências.
É claro que, em princípio, tudo pode ocorrer.
Mas, se os seres humanos que protestam têm algo em comum uns com os outros,
como se imagina que tenham, a tendência é que o movimento comece em breve a
arrefecer. Manter a mobilização é energeticamente dispendioso. Manifestações
dão trabalho, impõem um ônus às cidades que as hospedam e acabam enjoando. A
primeira passeata é divertida e a gente nunca esquece, mas a quinta já é
aborrecida.
É certamente possível estender uma série de
protestos quando eles têm um objetivo claro e mais ou menos unânime, como
derrubar um ditador, mas, se o que os motiva é uma insatisfação difusa, como
parece ser o caso aqui, isso fica mais difícil. Se as autoridades não voltarem
a cometer erros como reprimir manifestantes pacíficos, que são a esmagadora
maioria, catalisam esse processo.
Massas são uma coisa meio esquisita. Os
especialistas que estudam a psicologia das multidões ainda não chegaram a um
consenso sobre como elas se comportam, mas levantaram alguns problemas e
"insights" interessantes.
A primeira e mais óbvia questão é: no que o
grupo difere do indivíduo? Várias respostas foram ensaiadas. Para uma corrente,
as diferenças são mais de grau do que de natureza. Se as três emoções humanas
fundamentais são medo, alegria e raiva, quando aplicadas a multidões elas se
tornam, respectivamente, pânico, júbilo e hostilidade. Há, entretanto, escolas
que pensam que o comportamento de massa leva as pessoas a fazer o que jamais
fariam se estivessem sozinhas. Fico com o segundo grupo. Numa espécie
hipersocial como a nossa, são formidáveis os efeitos que indivíduos produzem
uns sobre os outros, levando a formas insuspeitas de emergência.
Como tentei mostrar na coluna publicada na edição impressa da Folha de
ontem, juntar um bocado de gente para fazer uma coisa pode trazer grandes
vantagens, mas também envolve riscos. Os limites entre a sabedoria e a loucura
das multidões são tênues.
Há ganhos óbvios como a multiplicação de
forças e a possibilidade de divisão do trabalho (com aumento da produtividade)
que nem vale a pena explorar. Mas existe também um efeito mais sutil que
gostaria de desenvolver. Trata-se do bônus da agregação. Em 1906, sir Francis
Galton, o polêmico e genial primo de Darwin, conduziu um experimento dos mais
interessantes. Ele visitara uma feira agrícola e viu que haviam organizado um
concurso no qual as pessoas deveriam adivinhar o peso de um bezerro. Exatas 787
pessoas responderam e nenhuma acertou. Mas, como constatou Galton, a média dos palpites,
1.197 libras, ficou a apenas 0,08% do peso aferido, que era de 1.198 libras.
Curiosamente, Galton, que era um aristocrata com tendências fortemente
elitistas, teve de dar o braço a torcer. "O resultado parece dar mais
crédito à confiabilidade do juízo democrático do que se poderia esperar",
escreveu.
O mecanismo em ação é o da eliminação. As
estimativas mais extremas tendem a anular umas às outras e o que sobra é um
palpite que faz sentido. A pergunta, então, é: por que não escolhemos o melhor
governante com uma precisão de 0,08% em eleições de verdade? O economista Brian
Caplan tem uma resposta convincente. Para ele, o milagre da agregação funciona
apenas para eliminar erros aleatórios, cuja distribuição é gaussiana, mas se
torna inútil para evitar os erros sistemáticos, que são aqueles em que a
maioria das pessoas, provavelmente devido a vieses cognitivos, vai para o mesmo
lado. A democracia não nos salva de nossas obsessões nem dos demagogos, ainda
que tenha o dom de extirpar as posições mais radicais --o que não é pouca
coisa.
Do lado negativo, a conta também pode ficar
bastante salgada. Não são poucas nem inócuas as chamadas patologias do
pensamento de grupo. Uma delas é a polarização. Se você juntar um punhado de
pessoas com opiniões semelhantes e deixá-las conversando por um tempo numa
sala, o grupo sairá com ideias mais parecidas e mais radicais. É assim que
surgem as organizações terroristas e, nas manifestações, a disposição de
enfrentamento que por vezes descamba no vandalismo. Minha hipótese é que a
internet, ao permitir a criação de comunidades virtuais de pessoas com
convicções bem exóticas e raras, contribui para uma certa radicalização da
paisagem ideológica, mas nada que a democracia não possa curar.
Outra moléstia de grupo importante é a
conformidade. Multidões têm o hábito de suprimir o dissenso. Isso explica
várias coisas, desde as caças às bruxas e a perseguição de minorias até o
sucesso das religiões. Num comício, frases como "sem violência" até
funcionam, desde que os que advogam pelo quebra-quebra não formem uma massa
concentrada o bastante para considerar-se um grupo à parte.
Vale mencionar ainda a animosidade. Ponha um
corintiano e um palmeirense numa sala e mande-os discutir futebol. Eles
discordarão, mas provavelmente se tratarão com certa civilidade. Entretanto, se
você colocar cem torcedores rivais de cada lado, quase certamente produzirá uma
batalha campal. Vimos isso acontecendo na quinta-feira passada em São Paulo,
quando policiais do batalhão de choque avançaram sobre manifestantes tranquilos
menos por cumprimento do dever do que por vê-los como um grupo antagônico que
era preciso derrotar.
Aonde isso nos leva? Qual o sentido desses
protestos e o que eles podem fazer por nós? Sou simpático à causa, mas me
reservo o direito de guardar uma saudável dose de ceticismo. Não penso que virá
daqui a revolução redentora. Como já disse, a mobilização não vai durar para
sempre. Pleitos específicos como a redução de tarifas poderão ser atendidos em
determinadas praças. Não sei se sou muito a favor disso. As manifestações, como
é óbvio, não criam dinheiro, que terá de sair de outras rubricas se não
quisermos pagar mais impostos. Quanto de subsídio o setor público deve conceder
ao transporte público é uma questão aberta a debate. De minha parte, penso que
transporte e saúde funcionam como despesas de custeio. Não há como evitá-las,
mas, se for para escolher uma prioridade, minha preferência é a educação, que é
a única das grandes áreas que pode ser encarada como investimento no futuro.
O que vejo de bom nos protestos é que eles
sugerem que se está constituindo no Brasil uma sociedade civil um pouco mais
articulada, que cobra seus governantes e os mantém sob pressão. Cada vez mais
acredito na teoria de que o que distingue os países que dão certo das nações
fracassadas é a existência de instituições que promovem o poder político dos
cidadãos e lhes permitem tirar proveito das oportunidades econômicas. Uma
classe média exigente que se faça ouvir pelos dirigentes é um elemento
importante dessa institucionalidade positiva. Mas não nos enganemos. Já vimos a
tal da sociedade civil surgir antes nas diretas já e no impeachment de Collor,
apenas para submergir por vários anos antes de reaparecer. O descompasso aqui é
entre o horizonte de nossas expectativas, que operam na escala dos meses e
anos, e o da constituição de estruturas sociais democráticas, que obedece ao
ciclo das décadas e gerações.
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*Hélio Schwartsam é bacharel em filosofia e autor de Aquilae Titicans: O Segredo de Avicena, uma Aventura no Afeganistão.
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