"Se as tardes dominicais fossem prolongadas durante meses, o
que seria da humanidade, emancipada do suor, livre do peso da primeira
maldição? A experiência valeria a pena. É mais do que provável que o crime se
tornasse a única diversão, que a devassidão parecesse candura, o uivo melodia e
o escárnio ternura. A sensação da imensidade do tempo faria de cada segundo um
intolerável suplício, um pelotão de execução capital. Nos corações mais
imbuídos de poesia se instalariam um canibalismo estragado e uma tristeza de
hiena; os patíbulos e os carrascos extinguiriam-se de langor; as igrejas e os
bordéis explodiriam de suspiros. O universo transformado em tarde de
domingo… é a definição do tédio – e o fim do universo… (…) Como matar
de outra maneira este tempo que já não flui? Nestes domingos intermináveis, ador de ser manifesta-se
plenamente" [Cioran, E. M. Breviário
de decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. – Rio de Janeiro:
Rocco, 1989, p. 30/31].
Aí está Emil Cioran, já comentando neste espaço noutra altura. É em decorrência desta e de outras trilhas do seu pensamento que muitos, como eu próprio, chegam ao seu "castelo metafísico".
Por Vasco Moura
Bastou-me uma frase, e a paixão estava consumada. Nunca
mais deixei de ler Cioran. Retorno sempre às páginas de seus livros com
redobrado prazer. E tudo por causa daquela frase. Às vezes basta uma frase para
que sejamos fisgados por um autor e nunca mais deixemos de nos encantar com
seus escritos. Na minha descoberta do filósofo romeno Emil M. Cioran (Rasinari,
Romênia, 8/4/1911-Paris, 20/6/1995) foi assim. Bastou uma frase, aquela frase
perfeitíssima, completa, inigualável, que vale por todo um tratado de
filosofia, a frase que um dia eu gostaria de ter escrito (desculpem-me os
leitores se abuso aqui dos superlativos e dos adjetivos, mas é que quando me
apaixono não consigo disfarçar): “Nestes domingos intermináveis a dor
de ser manifesta-se
plenamente”. Depois vieram outras, que também me provocaram não menos prazer,
como aquela em que Cioran indaga: “Que pecado cometeste para nascer, que crime
para existir? Tua dor, como teu destino, não tem motivo”.
Primeiro foi a
leitura do seu Breviário de decomposição.
Li-o com o prazer de quem se encontra diante do prato da mais fina e rara
iguaria. Li-o com volúpia, da primeira à última palavra. Depois fiquei
aguardando ansiosamente a próxima tradução de um livro seu, torcendo para que
José Thomaz Brum se decidisse a fazê-lo. Mas foi necessário esperar, ainda,
dois anos. Então chegou às livrarias Silogismos da amargura.
Lá
estavam novamente as frases curtas e certeiras, desta feita mais curtas ainda,
uma vez que se trata de silogismos. Como essa: “A vida, esse mau gosto da
matéria” (Cioran, E. M. Silogismos da amargura.Tradução de José Thomaz Brum.
Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 56). Ou, ainda, o resumo curtíssimo e,
talvez por isso mesmo, completo, do autor de Hamlet, sobre o qual Cioran
afirmou apenas: “Shakespeare: encontro de uma rosa e de um machado…” (p. 13). E
sobre Deus: “Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo” (p. 49).
Depois
continuei lendo – e o faço ainda, sempre – Cioran, torcendo para que sejam
publicadas mais traduções de seus livros (algumas outras já foram
editadas). Os dois aqui citados contam-se entre os livros mais lidos, mais
cotejados da minha pequena biblioteca. Tenho retornado a eles reiteradas vezes,
e o prazer experimentado é sempre o mesmo. Cioran é como um vinho antigo, que
deve ser sorvido em doses comedidas, para que possamos bem apreciar-lhe o sabor
sem que nenhuma gota seja desperdiçada.
Em
1995, quando a revista Veja noticiou a morte de Cioran, destaquei a página,
mandei emoldurá-la e dei-lhe um lugar de destaque na parede da minha
biblioteca, onde permanece até hoje. Quero concluir com uma citação que tenho
como uma das afirmações mais verdadeiras sobre a realidade do ser:
“O ser
entregue a si mesmo, sem nenhum preconceito de elegância, é um monstro; só
encontra em si zonas obscuras, onde rondam, iminentes, o terror e a negação.
Saber, com toda sua vitalidade, que se morre e não poder ocultá-lo, é um ato de
barbárie. Toda filosofiasincera renega os títulos da civilização, cuja
função consiste em velar nossos segredos e disfarçá-los com efeitos rebuscados.
Assim, a frivolidade é o antídoto mais eficaz contra o mal de ser o que se é:
graças a ela iludimos o mundo e dissimulamos a inconveniência de nossas
profundidades. Sem seus artifícios, como não envergonhar-se por ter uma alma?
Nossas solidões à flor da pele, que inferno para os outros! Mas é sempre para
eles, e às vezes para nós mesmos, que inventamos nossas aparências…” (Breviário
de decomposição, p. 17).
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Fonte: http://blog.opovo.com.br/sincronicidade/cioran-ou-os-domingos-da-vida/#.T3s2TkFCerk.wordpress
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