quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Escola em Perspectiva: Professores, Alunos, Desafios e Alternativas


Escrevi o texto abaixo, inicialmente, como base para uma conferência que proferi como aula inaugural no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPB.  A partir do frutífero debate com pesquisadores do Programa e pós-graduandos, produzi a versão atual. A senda é a mesma que venho seguindo há já algum tempo (assim como outros companheiros), mesmo quando me detenho apenas nos processos educativos não-formais: conceber a instituição escolar em perspectiva sócio-histórica, os seus delineamentos pedagógicas e, analiticamente, pugnar por uma outra escola... 



A ESCOLA EM PERSPECTIVA: NOVOS FENÔMENOS, RECONFIGURAÇÕES E DESAFIOS À PESQUISA[1]
 Ivonaldo Leite[2]

Introdução
Se é fato que, em educação, dado o caráter da área, delega-se à pesquisa um forte atributo no sentido de resolver “questões práticas”, por outro lado, deve-se assinalar que isto não pode significar uma instrumentalização normativa da investigação educacional, de modo que ela, abdicando da sua autonomia, se limite - de forma funcional – a tratar de agendas que, exogenamente, lhe são social e politicamente construídas. Importa, portanto, que a pesquisa educacional afirme-se com independência, assuma-se como autorreflexiva e comprometida com a problematização analítica dos fenômenos.
É evidente que esta é uma perspectiva que, no âmbito das ciências humanas, questiona a (improdutiva) oposição dicotômica entre ciência pura e ciência aplicada. Trata-se de uma dicotomia que, de resto, além de pagar demasiado tributo teórico a um decalque positivista das ciências exatas, ignora, por isto mesmo, o fato de, no campo das ciências humanas, o conhecimento, em sua relação com a instância prática, adquirir uma dimensão de recontextualização, reconfiguração e recriação.
Ou seja, a relação com a realidade não é unilateral, de via única, com ela inertemente recebendo a “aplicação” de um determinado saber. Pelo contrário, a sua replicação à esta “aplicação” pode levar o saber que está sendo “aplicado” a ser reconfigurado, e até mesmo completamente recriado. Daí que, por exemplo, no caso do pedagogo, ele não se limita a aplicar um conhecimento que lhe precede (histórico, sociológico, psicológico, etc.), pois os desafios da prática podem levá-lo refazer o conhecimento que lhe preexista (o dito “conhecimento puro”).    
Com estas palavras preliminares, pretendo realçar que, atualmente, diante das mutações no campo educativo, é imprescindível que a pesquisa educacional não se deixe pautar pela retórica de segmentos como os opinion makers, a mídia e agências com interesses poucos claros, cujos discursos, realizados do exterior da comunidade científica, ao centrarem-se unicamente na dita “aplicação prática”, ocultam que o processo educacional é condicionado pelo contexto onde ele é desenvolvido.
Impõe-se então que a pesquisa em educação exercite o que, epistemologicamente, é próprio da démarche investigativa: a abordagem sem nenhum tipo de renúncia à problematização analítica dos fenômenos que enfoca, tendo como pressuposto que é necessário ultrapassar o que se apresenta como aparente, pois, como há muito já foi dito, se aparência e essência fossem a mesma coisa, a ciência seria desnecessária. Daí há que reter que, no estudo de um determinado objeto, deve-se fazer uma distinção “entre representação e conceito da coisa, com isso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de conhecimento, mas especialmente, e sobretudo, duas qualidades da práxis humana”[3] (Kosik, 1976, p. 10), cabendo, portanto, à pesquisa científica, como esfera de mediação e tradução entre o teórico e o empírico, expressar os fatos que correspondem à realidade objetiva. 
É a partir desta perspectiva que interessa abordar a educação contemporânea, tratando dos novos fenômenos que perpassam a escola e dos desafios que se colocam à pesquisa. O presente ensaio pretende ser uma reflexão neste sentido.  
No primeiro momento, passarei em revista a construção sócio-histórica do moderno modelo escolar, pondo em realce a sua genealogia; no segundo, colocarei em evidência a erosão de alguns dos postulados que deram sustentação à estruturação da escola; e no terceiro, tendo em conta os problemas e a crise que a escola enfrenta, por conta da mencionada erosão, tratarei de alguns desafios que se põem à pesquisa educacional atualmente.

A construção sócio-histórica do moderno modelo escolar
A escola, como hoje a conhecemos, emerge no continente europeu, associada ao surgimento dos modernos Estados-nação, num processo que significou o deslocamento da educação do âmbito da Igreja para a esfera estatal[4]. Isto é, procurou-se, assim, assegurar a unidade de cada país, sendo delegada à escola a função de formar os cidadãos nacionais. A educação escolar assume, nesta perspectiva, uma dimensão de educação moral, uma espécie de “religião da pátria”, conforme realçou Jules Ferry - primeiro ministro da educação francês -, ao assinalar que: “O Estado não é doutor em matemática, em filosofia ou em química, nem se ocupa da educação com a finalidade de criar verdades científicas, mas, sim para manter uma certa moral de Estado, certas doutrinas de Estado que importam à sua conservação”[5]. De outra parte, a construção sócio-histórica da escola é tributária da Revolução Industrial, num processo em que ela socializa antecipadamente às novas gerações, em sintonia com as regras e padrões da fábrica, incutindo-lhes hábitos e comportamentos funcionais ao mundo da produção. 
Deste modo, a escola erigiu-se assente num modelo que comporta três dimensões: uma forma, uma organização e uma instituição[6]. No que concerne à forma, o modelo escolar representa uma nova maneira de conceber a aprendizagem, rompendo com os processos de continuidade relativos à experiência e à imersão social, instituindo uma modalidade de aprendizagem baseada na revelação, na cumulatividade e na exterioridade. Como organização, a escola levou a cabo uma transição dos modos de ensino individualizados (um mestre, um aluno) para modos de ensino simultâneos (um mestre, uma classe), instaurando modos específicos de organizar os espaços, os tempos e os agrupamentos dos alunos. Já como instituição, no sentido histórico-sociológico, a escola é uma instância que, a partir de um conjunto de valores, funciona como um centro formador de cidadãos, desempenhando um papel central no processo de integração social, tendo sido, nesta perspectiva, historicamente, um veículo fundamental no processo de unificação cultural, lingüística e política dos Estados-nação.
Com tal horizonte, a escola é configurada a partir de alguns postulados que - respondendo às missões dos sistemas de ensino da modernidade - sedimentam as bases da sua existência.
O primeiro postulado diz respeito à assunção da escola como instância hegemônica de socialização secundária. Ou seja, assim como o grupo social familiar é o âmbito próprio da socialização primária, a escola se apresenta como o local que tem o apanágio da socialização secundária. Como decorrência disto, não só se verificou uma desvalorização das práticas educativas não-formais, mas mesmo uma espécie de colonização destas pela educação formal.
O segundo postulado concerne ao lema da moderna pedagogia: Ensinar a muitos como se fosse a um só. Quer dizer, trata-se de um axioma que justifica a constituição da classe escolar, num quadro em que, além de basear-se na revelação e na cumulatividade, norteia-se não por uma relação pessoa a pessoa, mas, sim, pela subordinação dos professores e dos alunos a regras impessoais:  “Num espaço fechado e inteiramente ordenado à realização por cada um dos seus deveres, num tempo tão cuidadosamente regulado que não pode dar lugar a nenhum movimento imprevisto, cada um submete a sua atividade aos princípios ou regras que a regem”[7].
O terceiro postulado refere-se a algo que é inerente ao modelo escolar: A fragmentação disciplinar. Levando a efeito, como bem diz Ardoino[8], uma espécie de taylorismo intelectual, a escola parte e reparte o conhecimento num currículo que separa em teoria o que se encontra unido em empiria, ou seja, fragmenta o saber em diferentes disciplinas que, assim sendo, negam o caráter uno da realidade e submetem a compreensão desta a abordagens parciais, conforme o objeto de cada ciência.
O quarto postulado relaciona-se ao poder dos diplomas e a capacidade da escola em promover mobilidade social.  No dizer de Rui Canário, durante um largo período, “a escola viveu o que, hoje, podemos retrospectivamente considerar uma ‘idade de ouro’, que coincide com o apogeu do capitalismo liberal e que permanece no imaginário coletivo como um referente a confrontar com os ‘males’ da escola atual”[9]. Foi um período em que, por razões específicas da época, os diplomas tinham uma forte distinção simbólica e, assim sendo, eram portadores de um significativo poder, tornando a escola uma agência determinante na promoção da mobilidade social, na medida em que havia uma estreita funcionalidade entre os mundos da formação e do trabalho. 
Por terem sido referenciais centrais na construção sócio-histórica da escola, os  quatro postulados aludidos, dentre outros, acompanharam a sua trajetória, e foram, ao longo dos tempos, sendo impactados por diferentes fenômenos sociais, culminando, nos dias atuais, com a sua extrema fragilização, pondo em causa, portanto, as bases constituintes do modelo escolar. A trajetória do modelo escolar, que culmina na sua crise atual, pode, para fins analíticos, ser categorizada em três fases: a da escola das certezas, que corresponde à sua “idade de ouro” e que pode ser situada entre a Revolução Francesa e o fim da Primeira Guerra Mundial; a da escola das promessas, datada do fim da Segunda Guerra Mundial ao colapso do Estado Providência nos anos 1970, e cuja marca é a ampliação da oferta educativa e a promessa de um crescimento econômico permanente; e a da escola das incertezas, surgida no último quartel do século passado e que se estende aos nossos dias, tendo como traços distintivos, por exemplo, a instabilidade interna e a insegurança na capacidade de os diplomas proporcionarem acesso aos postos do mercado de trabalho, relativamente aos quais eles certificam habilitações. O background do modelo escolar encontra-se, portanto, colocado em questão.

A crise da escola: erosão dos seus postulados
 Embora, como sublinha Nóvoa[10], o discurso sobre a crise da escola seja algo recorrente, a verdade é que, nos dias atuais, esta crise, entendida como mutação, apresenta um caráter estrutural, como bem assinalou Charlot[11]. Trata-se de um “problema” comum a todos os países industrializados, o qual surge estreitamente vinculado ao fato de, perante ao esboroar gradual das suas bases fundadoras, a instituição escolar aparecer impotente. Daí então poder-se afirmar que tal crise exprime também “uma crise do modo de pensar a escola”[12].  
De fato, recenseando-se os fenômenos que impactam as bases constituintes do modelo escolar, pode-se efetivamente realçar que não estamos em presença de “disfunções provisórias”, mas assistimos, sim, a erosão dos pilares que deram sustentação a esse modelo. Entendamo-nos.
No que toca à sua posição como instância de socialização secundária, a escola tem sido relegada, sobretudo com o advento das novas tecnologias, a uma posição de relativa subalternização. De uma parte, os conhecimentos escolares têm sido, cada vez mais, deslocados para o exterior das escolas, assumindo as mais diversas configurações através, por exemplo, da internet e de canais de televisão; de outra parte, tem ocorrido uma espécie de antecipação da socialização secundária, no âmbito mesmo de um grupo da socialização primária (a família), na medida em que, em casa - não raramente sem o acompanhamento dos pais -, adolescentes e jovens ocupam parcelas significativas do seu tempo em contactos com as chamadas “máquinas inteligentes”, a exemplo da navegação pela internet, com a participação em chats e comunidades virtuais, numa manifestação daquilo que Pierre Lévy chamou de interatividade, calcada em mensagens lineares e participativas[13].
A premissa do ensinar a muitos como se fosse a um só tem sido fortemente confrontada com uma série de “acontecimentos perturbadores” em sala de aula, como a indisciplina, a desatenção e até mesmo a violência. Verifica-se uma profunda sensação de mal-estar, onde, por vezes, discentes e docentes contam os minutos para que a aula termine e ambos deixem a sala. Da parte discente, a leitura da sua resistência e insubmissão não pode ser dissociada do fato de se acentuar uma cisão entre a sua vida cultural e a vida escolar, onde se deixa de ser estudante – alguém que está na escola – e passa-se a ser um trabalhador escolar, dando corpo ao que a Sociologia da Educação contemporânea tem chamado de ofício do aluno[14]. A antecipação cada vez mais freqüente dos modos de operacionalização do mundo do trabalho para o mundo escolar, habilitando o quanto antes a força de trabalho, tem feito com que ser aluno já não seja apenas estar envolvido num processo de socialização conforme a natureza, individual ou social, das coisas, mas se apresente como sendo assumir desde logo um estatuto social que se define per si, não podendo por isso ser exclusivamente apreciado pela forma como ele se articula com um antes (a socialização familiar) ou um depois (a maturidade de que ele seria o antecedente natural)[15].
Em relação à fragmentação disciplinar, a complexa sociedade contemporânea a coloca em causa, visto que a percepção e o entendimento dos seus fenômenos demandam um conhecimento pluri/transdisciplinar que transgride as fronteiras de domínios científicos específicos, até porque seria, no mínimo, impróprio, num mundo global – onde as diversas esferas se encontram cada vez mais interconectadas -, pretender que enfoques disciplinares particulares sejam dotados de inteligibilidade para assumir “juízos universsalizantes”. Além do mais, o caráter múltiplo do humano (dimensão histórica, social, psicológica, biológica, etc.) não é fragmentado, mas sim encontra-se condensado num uno, que é o próprio ser humano. Há de considerar também que o conceito de currículo oculto veio demonstrar quão ilusória é a tentativa de - a partir de fronteiras empíricas delimitadas rigidamente - codificar de forma normativa os saberes a serem ensinados. De resto, o mundo do trabalho, hoje, sob o impulso da nova base científico-técnica, requer habilitações profissionais transversais, isto é, habilitações configuradas por uma variedade de distintos saberes que se interconectam. A fragmentação do conhecimento escolar encontra-se, portanto, desafiada.
Por último, o destaque no poder dos diplomas e na capacidade da escola em promover mobilidade social.  Em seus tempos áureos, a escola, sendo voltada a um conjunto restrito da população, destacou-se como uma instância de relativo prestígio no acesso a empregos e na promoção da mobilidade social, com os diplomas tendo, assim, uma forte distinção simbólica. No fundo, tratava-se de uma escola elitista, pois poucos a ela tinham acesso.
Ora, como as desigualdades sociais se situavam a montante e não a justante da escola, esta podia ser ilibada de responsabilidades diretas na produção de injustiças sociais. De outra parte, “o próprio malthusianismo inerente a um sistema elitista favorece a rentabilidade de percursos escolares longos”[16]. Desta forma, a valorização dos diplomas permita que a sua troca por empregos ocorresse sem maiores percalços.
Totalmente diferente é a situação nos dias atuais, num tempo de incertezas. A ampliação do acesso à escola e as transformações que têm afetado os setores econômicos e políticos alteraram as relações entre escolaridade, mercado de trabalho e mobilidade social, de par com a perda de distinção simbólica dos diplomas, tendo em conta o declínio do poder destes como meio de proporcionar estabilidade sócio-profissional. A estruturação de um novo padrão de acumulação capitalista, assente na chamada acumulação flexível[17], em substituição aos parâmetros do Estado de Bem-Estar Social, não só rejeita a idéia de empregos estáveis, para toda a vida, como também, indo mais longe, inscreve o desemprego estrutural com um dos seus aspectos constituintes.
Neste quadro, são paradigmáticos determinados discursos sobre o fim do trabalho. Com as devidas exceções, cumprem uma função ideológica, sobretudo quando colocam ênfase em expressões como empregabilidade, querendo indicar que, por não haver trabalho para todos, as pessoas devem manter-se em condições de ser empregadas (empregáveis), ocultando-se, então, que o desemprego é orgânico à necessidade de o capital conservar e ampliar as suas taxas de lucros, e não uma “decorrência natural”, por exemplo, da falta de qualificação, das novas tecnologias ou da globalização.
Verifica-se, portanto, um intenso processo de erosão dos postulados que estruturaram a origem e a trajetória dos modernos sistemas educativos, levando-os a uma situação de crise. Perante este cenário, colocam-se alguns reptos à investigação em educação.

A pesquisa educacional e a crise da escola: desafios
Um primeiro desafio que a crise da escola remete à pesquisa em educação tem a ver, digamos, com uma questão de método. Ele apela para que as discussões dos estudos sejam feitas de uma maneira que transcenda os estreitos limites de disciplinas científicas particulares[18].
É tempo, parece, de, no seio da análise social, recuperar pioneiras formulações a respeito de tal problemática. Colocar sobre a mesa, por exemplo, o conceito de fenômeno social total, como realçado por Marcel Mauss, a partir do qual se pode evidenciar o caráter uno da realidade, por contraposição às compartimentações instituídas pelas diferentes disciplinas. Os fenômenos sociais totais de Mauss, também por ele chamados de totalidades em marcha, constituem uma indicação fundamental para que o trabalho de análise da realidade seja credível, como bem assinalou Gurvitch[19].   Em boa verdade, o conceito de fenômeno social total - assim como a formulação sartreana em torno da totalização[20], de par com a relação o todo e as partes - antecipa, e muito, elaborações a propósito da complexidade, como a expressa na fórmula de Morin segundo a qual a realidade é um sistema de sistemas de sistema[21].
Coloca-se então como imprescindível, nos estudos sobre a escola, transcender as abordagens parciais, procurando captá-la como totalidade complexa. Trata-se, portanto, de um desafio, pois, por vezes, mesmo perspectivas que se definem como interdisciplinares, o que fazem é reproduzir o conhecimento fragmentado em outros patamares.
Um segundo desafio à pesquisa educacional pode ser realçado a partir daquela indicação de Bourdieu segundo a qual se impõe superar “as categorias de pensamento impensadas que delimitam o pensável e predeterminam o pensado”[22]. Isto é, importa que, nos estudos sobre a escola, ela seja concebida como uma criação histórica, pondo-se de parte a sua suposta atemporalidade, que faz com que, em determinados enfoques, ela seja entendida de modo similar a um fenômeno da natureza, dado o grau de naturalização que a tem revestido ao longo dos tempos.  
Tendo isto em conta, cabe a investigação em educação focar a escola considerando que ela é uma forma, uma organização e uma instituição. Como tem sido assinalado, “a ausência de distinção analítica entre estas três dimensões tende a confundir o debate, pela contraposição de críticas ou argumentos que não situam a discussão ao mesmo nível para todos os interlocutores, nem permitem uma abordagem compreensiva da globalidade”[23].
Um terceiro desafio posto à pesquisa educacional consiste em analisar a escola tendo em conta as modalidades educativas não-formais. Ora, se é fato que a escola tem sido deslocada como agência de socialização secundária, se cada vez mais os jovens têm acesso a saberes, que antes eram monopolizados pela escola, em espaços não-formais, então coloca-se como condição sine qua non que se preste uma atenção acrescida às práticas educativas não-formais como requisito para que seja entendido o que se passa na escola. De resto, “nas últimas décadas, a prática e a investigação educativas vieram a proceder à reabilitação de modalidades educativas não-escolares (no campo da animação e da formação de adultos), tornando possível um olhar crítico mais fundamentado e mais relativizado sobre a forma escolar”[24].
Tratar devidamente da relação entre educação e contextos locais constitui um quarto desafio, dos mais instigantes, à investigação educacional. Se é verdade que a constituição do Estado-nação, da unidade nacional, nos mais diversos países, se fez à custa de uma homogeneização que pressupôs o enquadramento das comunidades locais e suas culturas, por outro lado, é fato que, a partir das últimas décadas do século passado, emerge um movimento de valorização do local como esfera pertinente, por exemplo, para realizar a gestão da questão social. Para além de se constatar que as macro-ações estandardizadas do Estado-nação negligenciam especificidades das comunidades - pelo que a sua intervenção revela-se ineficiente -, com o fenômeno da globalização, no dizer de Daniel Bell[25], verifica-se que o Estado se torna demasiado pequeno para resolver os grandes problemas da vida e, ao mesmo tempo, imensamente extensivo para lidar com as particularidades cotidianas. Neste contexto, o local passa a ser uma escala recorrente para a gestão sistêmica. Daí, dentre outros desdobramentos, tem-se: 1) a tendência de agencialização da ação comunitária; 2)  a tentativa de conjugar a questão da cidadania com a desresponsabilização do Estado e a hiper-responsabilização dos indivíduos; 3) a inclinação para conceber a contribuição da educação para o desenvolvimento pensando-a de maneira unicamente instrumental e definindo o desenvolvimento referenciado apenas na perspectiva da qualificação de recursos humanos, pondo de parte as questões da relação social e da sociabilidade.
De resto, está em causa a própria concepção de contextos locais. Não me é o lugar, aqui, para tratar desta questão com a abordagem acurada que ela requer, mas cabe deixar apontada a impropriedade que é entender os contextos locais como atomização geográfica, encadeando o enclausuramento regionalista. Ora, localidades tendem a se converter em holografias do planeta, ao passo que emergem comunidades no mundo globalizado. Como bem assinala Augusto de Franco, à medida que florescem comunidades globalizadas, globalização do local tende a ser igual à localização do global. E um mundo totalmente globalizado passa a ser um mundo totalmente localizado[26].    
Last but not least, o quinto desafio: a crise da escola lança um repto em relação aos estudos concernentes à formação de professores, no sentido de eles captarem os efeitos ocasionados sobre a identidade docente. Isto assim se coloca porque, convém repetir, a identidade profissional não é outorgada, de forma absoluta, pela formação acadêmica. As identidades (inclusive as pessoais) são construídas em processo e resultam de diversas socializações. No caso da identidade docente, a formação acadêmica é apenas parte do processo, visto que será nos contextos de trabalho (nas escolas) que se vão definir modos de relacionamentos, manuseamento do conhecimento oriundo da formação, surgimento da necessidade de adequação/recomposição de saberes, enfim, práticas que dizem quem são o professor, o seu perfil. Em suma, na escola, constrói-se a identidade docente.
Assim sendo, afigura-se como pertinente que a pesquisa educacional procure compreender como os fenômenos decorrentes da crise da escola se têm relacionado à ação do professor e como, desta forma, eles repercutem no processo de construção da sua identidade nos contextos de trabalho. Trata-se de uma perspectiva que, no limite, poderá dizer se a profissão docente está sendo construída sob o registro do professor-ator, que procura exercer um poder que lhe é delegado, ou se ela afilia-se a um agir onde o professor é um autor, que se credencia de per si, isto é, por sua obra.   






[1] -  Uma primeira versão deste ensaio serviu de texto-base para uma conferência que pronunciei como Aula Inaugural no Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)/João Pessoa. Do frutífero debate decorrente com pesquisadores do Programa e pós-graduandos, surgiram muitas contribuições, as quais, mediadas analiticamente por mim, foram incorporadas à versão atual do texto.   

[2] -  Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus do Litoral Norte/Departamento de Educação; Professor do Programa de Pós-graduação em Educação (POSEDUC) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); Pesquisador-Bolsista EXP C do CNPq.


[3] KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 10.

[4] -  A esse respeito, no caso português, é paradigmática a reforma do Marquês de Pombal, que, ao contestar o poder da Igreja sobre as práticas educativas, expulsou os jesuítas do então Brasil colonial (1759).

[5] - In LELIÉVRE, C. (1999). Jules Ferry: La République éducatrice. Paris: Hachete, 1999, p. 56. Ver também BARRÈRE, A.  e  SEMBEL, N. Sociologie de l’éducation. Paris: Nathan, 1998. 

  
[6] -  A propósito, ver CANÁRIO, R. O que é a escola? Um “olhar” sociológico. Porto: Porto Editora, 2005.

[7] - VICENT, G. L’éducation prisionnière de la forme scolaire? Scolarisation et socialisation dans les soiétés industrielles. Lyon: Paul, 1994, p. 17-18. 
 
[8] -   Ver ARDOINO, J. Éducation et politique. Paris: Anthropos, 1999. 

[9] -  CANÁRIO, R., op. cit., p. 63.
[10] -  Cf. NÓVOA, António. “O espaço público da educação: Imagens, narrativas e dilemas”. In: Vários, Espaços de educação. Tempos de formação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2001, p. 237-286.

[11] - Ver CHARLOT, B. L´école en mutation. Crise de l ´école et mutations sociales. Paris: Payot, 1987; CHARLOT, B. “L´école est-elle em crise?”. In: Pour, Paris: nº 165, 2000, p. 167-171.  

[12] -  CANÁRIO, R., op.  cit., p. 61. 

[13] -   Ver  LEVY, P. Cibercultura. São Paulo: 34, 1999. 

[14] -  A propósito, ver  SIROTA, Régine. “Le métier élève: Approaches sociologiques. In: Revue Française de Pédagogie, Paris:  nº 121, 1988. 

[15] -  CORREIA, J. A. Para uma teoria crítica em educação. Porto: Porto Editora, 1998.

[16] - CANÁRIO, R., op. cit., p. 68.

[17] - A esse respeito, ver Harvey, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

[18] -  Procurei fazer isso no livro Educação, formação, trabalho e políticas educativas (Porto: Profedições, 2007).

[19] -  Ver  GURVITCH, George. Traité de sociologie. Paris: PUF, 1962.

[20] -  Quer dizer, pagando-se tributo a Sartre, é de se assinlar que a totalização corresponde à concepção do todo como algo aberto e intensamente dinâmico. De acordo com este entendimento, há de submeter os resultados obtidos pelas ciências particulares a dois crivos de avaliação: Por um lado, ao princípio da totalidade, através do qual se procura relacionar dialeicamente os objetos elaborados por uma determianda ciência particular com a totalidade social, mediatizando e desfetichizando tais objetos, fazendo com que eles deixem de ser meros “fatos” e se convertam em processos; por outro lado, ao crivo da historicidade, superando a pseudoconcreticidade com que os objetos analsiados se apresentam, tornando-os então estados transitórios de um permanente devir. Cf. SARTRE, Jen Paul. Critique de la Raison Dialetique. Paris: Gallimard, 1960. Ver também  LUKÁCS, Georgy. The ontology of social being. London: Merlin Press, 1980. 

[21]Cf. MORIN, Edgar. La métode. La nature de la nature. Paris: Seuil, 1977.

[22] -  BORDIEU, P. Lição sobre a lição. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas, 1996, p. 10.   

[23]CANÀRIO, R. op. cit, p. 63.

[24] -  Ibidem, p. 69. 

[25] - BELL, Daniel. The coming of post-industrial society: A venture in social forecasting. New York: Basic books, 1999.  
[26] - FRANCO, Augusto. A revolução do local: Globalização, glocalização, localização.  Brasília: AED; São Paulo: Cultura, 2004. 

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