Escrevi o texto abaixo, inicialmente, como base para uma conferência que proferi como aula inaugural no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPB. A partir do frutífero debate com pesquisadores do Programa e pós-graduandos, produzi a versão atual. A senda é a mesma que venho seguindo há já algum tempo (assim como outros companheiros), mesmo quando me detenho apenas nos processos educativos não-formais: conceber a instituição escolar em perspectiva sócio-histórica, os seus delineamentos pedagógicas e, analiticamente, pugnar por uma outra escola...
A ESCOLA EM
PERSPECTIVA: NOVOS FENÔMENOS, RECONFIGURAÇÕES E DESAFIOS À PESQUISA[1]
Ivonaldo Leite[2]
Introdução
Se é fato que, em
educação, dado o caráter da área, delega-se à pesquisa um forte atributo no
sentido de resolver “questões práticas”, por outro lado, deve-se assinalar que
isto não pode significar uma instrumentalização normativa da investigação
educacional, de modo que ela, abdicando da sua autonomia, se limite - de forma
funcional – a tratar de agendas que, exogenamente, lhe são social e
politicamente construídas. Importa, portanto, que a pesquisa educacional
afirme-se com independência, assuma-se como autorreflexiva e comprometida com a
problematização analítica dos fenômenos.
É evidente que esta é uma
perspectiva que, no âmbito das ciências humanas, questiona a (improdutiva)
oposição dicotômica entre ciência pura e ciência aplicada. Trata-se de uma
dicotomia que, de resto, além de pagar demasiado tributo teórico a um decalque
positivista das ciências exatas, ignora, por isto mesmo, o fato de, no campo
das ciências humanas, o conhecimento, em sua relação com a instância prática,
adquirir uma dimensão de recontextualização, reconfiguração e recriação.
Ou seja, a relação com a realidade
não é unilateral, de via única, com ela inertemente recebendo a “aplicação” de
um determinado saber. Pelo contrário, a sua replicação à esta “aplicação” pode
levar o saber que está sendo “aplicado” a ser reconfigurado, e até mesmo
completamente recriado. Daí que, por exemplo, no caso do pedagogo, ele não se
limita a aplicar um conhecimento que lhe precede (histórico, sociológico,
psicológico, etc.), pois os desafios da prática podem levá-lo refazer o
conhecimento que lhe preexista (o dito “conhecimento puro”).
Com estas palavras
preliminares, pretendo realçar que, atualmente, diante das mutações no campo
educativo, é imprescindível que a pesquisa educacional não se deixe pautar pela
retórica de segmentos como os opinion makers,
a mídia e agências com interesses poucos claros, cujos discursos, realizados do
exterior da comunidade científica, ao centrarem-se unicamente na dita
“aplicação prática”, ocultam que o processo educacional é condicionado pelo
contexto onde ele é desenvolvido.
Impõe-se então que a pesquisa
em educação exercite o que, epistemologicamente, é próprio da démarche investigativa: a abordagem sem
nenhum tipo de renúncia à problematização analítica dos fenômenos que enfoca,
tendo como pressuposto que é necessário ultrapassar o que se apresenta como
aparente, pois, como há muito já foi dito, se aparência e essência fossem a
mesma coisa, a ciência seria desnecessária. Daí há que reter que, no estudo de
um determinado objeto, deve-se fazer uma distinção “entre
representação e conceito da coisa, com isso não pretendendo apenas distinguir
duas formas e dois graus de conhecimento, mas especialmente, e sobretudo, duas
qualidades da práxis humana”[3]
(Kosik, 1976, p. 10), cabendo, portanto, à pesquisa científica, como esfera de
mediação e tradução entre o teórico e o empírico, expressar os fatos que
correspondem à realidade objetiva.
É a partir desta perspectiva que interessa abordar a educação
contemporânea, tratando dos novos fenômenos que perpassam a escola e dos
desafios que se colocam à pesquisa. O presente ensaio pretende ser uma reflexão
neste sentido.
No primeiro momento, passarei em
revista a construção sócio-histórica do moderno modelo escolar, pondo em realce
a sua genealogia; no segundo, colocarei em evidência a erosão de alguns dos
postulados que deram sustentação à estruturação da escola; e no terceiro, tendo
em conta os problemas e a crise que a escola enfrenta, por conta da mencionada
erosão, tratarei de alguns desafios que se põem à pesquisa educacional
atualmente.
A construção
sócio-histórica do moderno modelo escolar
A escola, como hoje a
conhecemos, emerge no continente europeu, associada ao surgimento dos modernos
Estados-nação, num processo que significou o deslocamento da educação do âmbito
da Igreja para a esfera estatal[4].
Isto é, procurou-se, assim, assegurar a unidade de cada país, sendo delegada à
escola a função de formar os cidadãos nacionais. A educação escolar assume,
nesta perspectiva, uma dimensão de educação moral, uma espécie de “religião da
pátria”, conforme realçou Jules Ferry - primeiro ministro da educação francês
-, ao assinalar que: “O Estado não é doutor em matemática, em filosofia ou em
química, nem se ocupa da educação com a finalidade de criar verdades
científicas, mas, sim para manter uma certa moral de Estado, certas doutrinas
de Estado que importam à sua conservação”[5].
De outra parte, a construção sócio-histórica da escola é tributária da
Revolução Industrial, num processo em que ela socializa antecipadamente às
novas gerações, em sintonia com as regras e padrões da fábrica, incutindo-lhes
hábitos e comportamentos funcionais ao mundo da produção.
Deste modo, a escola
erigiu-se assente num modelo que comporta três dimensões: uma forma, uma organização e uma instituição[6].
No que concerne à forma, o modelo
escolar representa uma nova maneira de conceber a aprendizagem, rompendo com os
processos de continuidade relativos à experiência e à imersão social,
instituindo uma modalidade de aprendizagem baseada na revelação, na
cumulatividade e na exterioridade. Como organização,
a escola levou a cabo uma transição dos modos de ensino individualizados (um
mestre, um aluno) para modos de ensino simultâneos (um mestre, uma classe),
instaurando modos específicos de organizar os espaços, os tempos e os
agrupamentos dos alunos. Já como instituição,
no sentido histórico-sociológico, a escola é uma instância que, a partir de um
conjunto de valores, funciona como um centro formador de cidadãos,
desempenhando um papel central no processo de integração social, tendo sido,
nesta perspectiva, historicamente, um veículo fundamental no processo de
unificação cultural, lingüística e política dos Estados-nação.
Com tal horizonte, a
escola é configurada a partir de alguns postulados que - respondendo às missões
dos sistemas de ensino da modernidade - sedimentam as bases da sua existência.
O primeiro postulado diz
respeito à assunção da escola como
instância hegemônica de socialização secundária. Ou seja, assim como o
grupo social familiar é o âmbito próprio da socialização primária, a escola se
apresenta como o local que tem o apanágio da socialização secundária. Como
decorrência disto, não só se verificou uma desvalorização das práticas educativas
não-formais, mas mesmo uma espécie de colonização destas pela educação formal.
O segundo postulado
concerne ao lema da moderna pedagogia: Ensinar
a muitos como se fosse a um só. Quer dizer, trata-se de um axioma que
justifica a constituição da classe escolar, num quadro em que, além de
basear-se na revelação e na cumulatividade, norteia-se não por uma relação
pessoa a pessoa, mas, sim, pela subordinação dos professores e dos alunos a
regras impessoais: “Num espaço fechado e
inteiramente ordenado à realização por cada um dos seus deveres, num tempo tão
cuidadosamente regulado que não pode dar lugar a nenhum movimento imprevisto,
cada um submete a sua atividade aos princípios ou regras que a regem”[7].
O terceiro postulado
refere-se a algo que é inerente ao modelo escolar: A fragmentação disciplinar. Levando a efeito, como bem diz Ardoino[8],
uma espécie de taylorismo intelectual, a escola parte e reparte o conhecimento
num currículo que separa em teoria o que se encontra unido em empiria, ou seja,
fragmenta o saber em diferentes disciplinas que, assim sendo, negam o caráter
uno da realidade e submetem a compreensão desta a abordagens parciais, conforme
o objeto de cada ciência.
O quarto postulado
relaciona-se ao poder dos diplomas e a capacidade da escola em
promover mobilidade social. No dizer
de Rui Canário, durante um largo período, “a escola viveu o que, hoje, podemos
retrospectivamente considerar uma ‘idade de ouro’, que coincide com o apogeu do
capitalismo liberal e que permanece no imaginário coletivo como um referente a
confrontar com os ‘males’ da escola atual”[9].
Foi um período em que, por razões específicas da época, os diplomas tinham uma
forte distinção simbólica e, assim sendo, eram portadores de um significativo
poder, tornando a escola uma agência determinante na promoção da mobilidade
social, na medida em que havia uma estreita funcionalidade entre os mundos da
formação e do trabalho.
Por terem sido
referenciais centrais na construção sócio-histórica da escola, os quatro postulados aludidos, dentre outros,
acompanharam a sua trajetória, e foram, ao longo dos tempos, sendo impactados
por diferentes fenômenos sociais, culminando, nos dias atuais, com a sua
extrema fragilização, pondo em causa, portanto, as bases constituintes do
modelo escolar. A trajetória do modelo escolar, que culmina na sua crise atual,
pode, para fins analíticos, ser categorizada em três fases: a da escola das certezas, que corresponde à sua “idade de ouro” e que pode ser
situada entre a Revolução Francesa e o fim da Primeira Guerra Mundial; a da escola das promessas, datada do fim da
Segunda Guerra Mundial ao colapso do Estado Providência nos anos 1970, e cuja
marca é a ampliação da oferta educativa e a promessa de um crescimento
econômico permanente; e a da escola das
incertezas, surgida no último quartel do século passado e que se estende
aos nossos dias, tendo como traços distintivos, por exemplo, a instabilidade
interna e a insegurança na capacidade de os diplomas proporcionarem acesso aos postos
do mercado de trabalho, relativamente aos quais eles certificam habilitações. O
background do modelo escolar
encontra-se, portanto, colocado em questão.
A crise da escola: erosão dos seus postulados
Embora, como sublinha Nóvoa[10],
o discurso sobre a crise da escola seja algo recorrente, a verdade é que, nos
dias atuais, esta crise, entendida como mutação, apresenta um caráter
estrutural, como bem assinalou Charlot[11].
Trata-se de um “problema” comum a todos os países industrializados, o qual
surge estreitamente vinculado ao fato de, perante ao esboroar gradual das suas
bases fundadoras, a instituição escolar aparecer impotente. Daí então poder-se
afirmar que tal crise exprime também “uma crise do modo de pensar a escola”[12].
De fato,
recenseando-se os fenômenos que impactam as bases constituintes do modelo
escolar, pode-se efetivamente realçar que não estamos em presença de
“disfunções provisórias”, mas assistimos, sim, a erosão dos pilares que deram
sustentação a esse modelo. Entendamo-nos.
No que toca à
sua posição como instância de
socialização secundária, a escola tem sido relegada, sobretudo com o
advento das novas tecnologias, a uma posição de relativa subalternização. De
uma parte, os conhecimentos escolares têm sido, cada vez mais, deslocados para
o exterior das escolas, assumindo as mais diversas configurações através, por
exemplo, da internet e de canais de televisão; de outra parte, tem ocorrido uma
espécie de antecipação da socialização secundária, no âmbito mesmo de um grupo
da socialização primária (a família), na medida em que, em casa - não raramente
sem o acompanhamento dos pais -, adolescentes e jovens ocupam parcelas
significativas do seu tempo em contactos com as chamadas “máquinas
inteligentes”, a exemplo da navegação pela internet, com a participação em chats e comunidades virtuais, numa
manifestação daquilo que Pierre Lévy chamou de interatividade, calcada em mensagens lineares e participativas[13].
A premissa do ensinar a muitos como se fosse a um só
tem sido fortemente confrontada com uma série de “acontecimentos perturbadores”
em sala de aula, como a indisciplina, a desatenção e até mesmo a violência.
Verifica-se uma profunda sensação de mal-estar, onde, por vezes, discentes e
docentes contam os minutos para que a aula termine e ambos deixem a sala. Da
parte discente, a leitura da sua resistência e insubmissão não pode ser
dissociada do fato de se acentuar uma cisão entre a sua vida cultural e a vida
escolar, onde se deixa de ser estudante – alguém que está na escola – e
passa-se a ser um trabalhador escolar, dando corpo ao que a Sociologia da
Educação contemporânea tem chamado de ofício
do aluno[14].
A antecipação cada vez mais freqüente dos modos de operacionalização do mundo
do trabalho para o mundo escolar, habilitando o quanto antes a força de
trabalho, tem feito com que ser aluno já não seja apenas estar envolvido num
processo de socialização conforme a natureza, individual ou social, das coisas,
mas se apresente como sendo assumir desde logo um estatuto social que se define
per si, não podendo por isso ser
exclusivamente apreciado pela forma como ele se articula com um antes (a
socialização familiar) ou um depois (a maturidade de que ele seria o
antecedente natural)[15].
Em relação à fragmentação disciplinar, a complexa
sociedade contemporânea a coloca em causa, visto que a percepção e o
entendimento dos seus fenômenos demandam um conhecimento pluri/transdisciplinar
que transgride as fronteiras de domínios científicos específicos, até porque
seria, no mínimo, impróprio, num mundo global – onde as diversas esferas se
encontram cada vez mais interconectadas -, pretender que enfoques disciplinares
particulares sejam dotados de inteligibilidade para assumir “juízos
universsalizantes”. Além do mais, o caráter múltiplo
do humano (dimensão histórica, social, psicológica, biológica, etc.) não é fragmentado,
mas sim encontra-se condensado num uno,
que é o próprio ser humano. Há de considerar também que o conceito de currículo
oculto veio demonstrar quão ilusória é a tentativa de - a partir de fronteiras
empíricas delimitadas rigidamente - codificar de forma normativa os saberes a
serem ensinados. De resto, o mundo do trabalho, hoje, sob o impulso da nova
base científico-técnica, requer habilitações profissionais transversais, isto
é, habilitações configuradas por uma variedade de distintos saberes que se
interconectam. A fragmentação do conhecimento escolar encontra-se, portanto,
desafiada.
Por último, o
destaque no poder dos diplomas e na capacidade da escola em
promover mobilidade social. Em seus
tempos áureos, a escola, sendo voltada a um conjunto restrito da
população, destacou-se como uma instância de relativo prestígio no acesso a
empregos e na promoção da mobilidade social, com os diplomas tendo, assim, uma
forte distinção simbólica. No fundo, tratava-se de uma escola elitista, pois
poucos a ela tinham acesso.
Ora, como as
desigualdades sociais se situavam a montante e não a justante da escola, esta
podia ser ilibada de responsabilidades diretas na produção de injustiças
sociais. De outra parte, “o próprio malthusianismo inerente a um sistema
elitista favorece a rentabilidade de percursos escolares longos”[16].
Desta forma, a valorização dos diplomas permita que a sua troca por empregos
ocorresse sem maiores percalços.
Totalmente
diferente é a situação nos dias atuais, num tempo de incertezas. A ampliação do
acesso à escola e as transformações que têm afetado os setores econômicos e
políticos alteraram as relações entre escolaridade, mercado de trabalho e
mobilidade social, de par com a perda de distinção simbólica dos diplomas,
tendo em conta o declínio do poder destes como meio de proporcionar
estabilidade sócio-profissional. A estruturação de um novo padrão de acumulação
capitalista, assente na chamada acumulação
flexível[17],
em substituição aos parâmetros do Estado de Bem-Estar Social, não só rejeita a
idéia de empregos estáveis, para toda a vida, como também, indo mais longe,
inscreve o desemprego estrutural com um dos seus aspectos constituintes.
Neste quadro,
são paradigmáticos determinados discursos sobre o fim do trabalho. Com as
devidas exceções, cumprem uma função ideológica, sobretudo quando colocam
ênfase em expressões como empregabilidade,
querendo indicar que, por não haver trabalho para todos, as pessoas devem manter-se
em condições de ser empregadas (empregáveis), ocultando-se, então, que o
desemprego é orgânico à necessidade de o capital conservar e ampliar as suas
taxas de lucros, e não uma “decorrência natural”, por exemplo, da falta de
qualificação, das novas tecnologias ou da globalização.
Verifica-se,
portanto, um intenso processo de erosão dos postulados que estruturaram a
origem e a trajetória dos modernos sistemas educativos, levando-os a uma
situação de crise. Perante este cenário, colocam-se alguns reptos à
investigação em educação.
A pesquisa educacional e a crise da escola: desafios
Um primeiro
desafio que a crise da escola remete à pesquisa em educação tem a ver, digamos,
com uma questão de método. Ele apela
para que as discussões dos estudos sejam feitas de uma maneira que transcenda
os estreitos limites de disciplinas científicas particulares[18].
É tempo, parece,
de, no seio da análise social, recuperar pioneiras formulações a respeito de
tal problemática. Colocar sobre a mesa, por exemplo, o conceito de fenômeno social total, como realçado por
Marcel Mauss, a partir do qual se pode evidenciar o caráter uno da realidade,
por contraposição às compartimentações instituídas pelas diferentes
disciplinas. Os fenômenos sociais totais
de Mauss, também por ele chamados de totalidades
em marcha, constituem uma indicação fundamental para que o trabalho de
análise da realidade seja credível, como bem assinalou Gurvitch[19]. Em boa verdade, o conceito de fenômeno social total - assim como a formulação
sartreana em torno da totalização[20], de par com a relação o todo e as partes - antecipa, e muito,
elaborações a propósito da complexidade, como a expressa na fórmula de Morin
segundo a qual a realidade é um sistema
de sistemas de sistema[21].
Coloca-se então
como imprescindível, nos estudos sobre a escola, transcender as abordagens
parciais, procurando captá-la como totalidade
complexa. Trata-se, portanto, de um desafio, pois, por vezes, mesmo
perspectivas que se definem como interdisciplinares, o que fazem é reproduzir o
conhecimento fragmentado em outros patamares.
Um segundo
desafio à pesquisa educacional pode ser realçado a partir daquela indicação de
Bourdieu segundo a qual se impõe superar “as categorias de pensamento
impensadas que delimitam o pensável e predeterminam o pensado”[22].
Isto é, importa que, nos estudos sobre a escola, ela seja concebida como uma
criação histórica, pondo-se de parte a sua suposta atemporalidade, que faz com
que, em determinados enfoques, ela seja entendida de modo similar a um fenômeno
da natureza, dado o grau de naturalização que a tem revestido ao longo dos
tempos.
Tendo isto em
conta, cabe a investigação em educação focar a escola considerando que ela é
uma forma, uma organização e uma instituição.
Como tem sido assinalado, “a ausência de distinção analítica entre estas
três dimensões tende a confundir o debate, pela contraposição de críticas ou
argumentos que não situam a discussão ao mesmo nível para todos os
interlocutores, nem permitem uma abordagem compreensiva da globalidade”[23].
Um terceiro
desafio posto à pesquisa educacional consiste em analisar a escola tendo em
conta as modalidades educativas não-formais. Ora, se é fato que a escola tem
sido deslocada como agência de socialização secundária, se cada vez mais os
jovens têm acesso a saberes, que antes eram monopolizados pela escola, em
espaços não-formais, então coloca-se como condição sine qua non que se preste uma atenção acrescida às práticas
educativas não-formais como requisito para que seja entendido o que se passa na
escola. De resto, “nas últimas décadas, a prática e a investigação educativas
vieram a proceder à reabilitação de modalidades educativas não-escolares (no
campo da animação e da formação de adultos), tornando possível um olhar crítico
mais fundamentado e mais relativizado sobre a forma escolar”[24].
Tratar
devidamente da relação entre educação e contextos locais constitui um quarto
desafio, dos mais instigantes, à investigação educacional. Se é verdade que a
constituição do Estado-nação, da unidade nacional, nos mais diversos países, se
fez à custa de uma homogeneização que pressupôs o enquadramento das comunidades
locais e suas culturas, por outro lado, é fato que, a partir das últimas
décadas do século passado, emerge um movimento de valorização do local como
esfera pertinente, por exemplo, para realizar a gestão da questão social. Para
além de se constatar que as macro-ações estandardizadas do Estado-nação
negligenciam especificidades das comunidades - pelo que a sua intervenção
revela-se ineficiente -, com o fenômeno da globalização, no dizer de Daniel
Bell[25],
verifica-se que o Estado se torna demasiado pequeno para resolver os grandes
problemas da vida e, ao mesmo tempo, imensamente extensivo para lidar com as
particularidades cotidianas. Neste contexto, o local passa a ser uma escala
recorrente para a gestão sistêmica. Daí, dentre outros desdobramentos, tem-se:
1) a tendência de agencialização da ação comunitária; 2) a tentativa de conjugar a questão da
cidadania com a desresponsabilização do Estado e a hiper-responsabilização dos
indivíduos; 3) a inclinação para conceber a contribuição da educação para o
desenvolvimento pensando-a de maneira unicamente instrumental e definindo o
desenvolvimento referenciado apenas na perspectiva da qualificação de recursos
humanos, pondo de parte as questões da relação social e da sociabilidade.
De resto, está
em causa a própria concepção de contextos locais. Não me é o lugar, aqui, para
tratar desta questão com a abordagem acurada que ela requer, mas cabe deixar
apontada a impropriedade que é entender os contextos locais como atomização
geográfica, encadeando o enclausuramento regionalista. Ora, localidades tendem
a se converter em holografias do planeta, ao passo que emergem comunidades no
mundo globalizado. Como bem assinala Augusto de Franco, à medida que florescem
comunidades globalizadas, globalização do local tende a ser igual à localização
do global. E um mundo totalmente globalizado passa a ser um mundo totalmente
localizado[26].
Last but not least, o quinto desafio: a crise da escola lança um repto em
relação aos estudos concernentes à formação de professores, no sentido de eles
captarem os efeitos ocasionados sobre a identidade docente. Isto assim se
coloca porque, convém repetir, a identidade profissional não é outorgada, de
forma absoluta, pela formação acadêmica. As identidades (inclusive as pessoais)
são construídas em processo e resultam de diversas socializações. No caso da
identidade docente, a formação acadêmica é apenas parte do processo, visto que
será nos contextos de trabalho (nas escolas) que se vão definir modos de
relacionamentos, manuseamento do conhecimento oriundo da formação, surgimento
da necessidade de adequação/recomposição de saberes, enfim, práticas que dizem
quem são o professor, o seu perfil. Em suma, na escola, constrói-se a
identidade docente.
Assim sendo,
afigura-se como pertinente que a pesquisa educacional procure compreender como
os fenômenos decorrentes da crise da escola se têm relacionado à ação do
professor e como, desta forma, eles repercutem no processo de construção da sua
identidade nos contextos de trabalho. Trata-se de uma perspectiva que, no
limite, poderá dizer se a profissão docente está sendo construída sob o
registro do professor-ator, que procura exercer um poder que lhe é delegado, ou
se ela afilia-se a um agir onde o
professor é um autor, que se credencia de per
si, isto é, por sua obra.
[1]
- Uma primeira versão deste ensaio
serviu de texto-base para uma conferência que pronunciei como Aula Inaugural no
Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB)/João Pessoa. Do frutífero debate decorrente com
pesquisadores do Programa e pós-graduandos, surgiram muitas contribuições, as
quais, mediadas analiticamente por mim, foram incorporadas à versão atual do
texto.
[2]
- Professor da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), Campus do Litoral
Norte/Departamento de Educação; Professor do Programa de Pós-graduação em
Educação (POSEDUC) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN);
Pesquisador-Bolsista EXP C do CNPq.
[3] KOSIK,
Karel. Dialética do concreto. 2 ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 10.
[4]
- A esse respeito, no caso português, é
paradigmática a reforma do Marquês de Pombal, que, ao contestar o poder da
Igreja sobre as práticas educativas, expulsou os jesuítas do então Brasil
colonial (1759).
[5] - In
LELIÉVRE, C. (1999). Jules Ferry:
La République
éducatrice. Paris: Hachete, 1999, p. 56. Ver também BARRÈRE, A. e
SEMBEL, N. Sociologie de
l’éducation. Paris: Nathan, 1998.
[6]
- A propósito, ver CANÁRIO, R. O que é a escola? Um “olhar”
sociológico. Porto: Porto Editora, 2005.
[7] - VICENT, G. L’éducation prisionnière de la forme scolaire? Scolarisation et
socialisation dans les soiétés industrielles. Lyon: Paul, 1994, p. 17-18.
[8] - Ver ARDOINO, J. Éducation et politique. Paris: Anthropos, 1999.
[9] - CANÁRIO, R., op. cit., p. 63.
[10]
- Cf. NÓVOA, António. “O espaço público
da educação: Imagens, narrativas e dilemas”. In: Vários, Espaços de educação. Tempos de formação. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbekian, 2001, p. 237-286.
[11] - Ver CHARLOT, B. L´école en mutation. Crise de l ´école et mutations sociales. Paris: Payot, 1987; CHARLOT,
B. “L´école est-elle em crise?”. In: Pour,
Paris: nº 165, 2000, p. 167-171.
[12] - CANÁRIO, R., op. cit., p. 61.
[13] - Ver
LEVY, P. Cibercultura. São
Paulo: 34, 1999.
[14] - A
propósito, ver SIROTA, Régine. “Le
métier élève: Approaches sociologiques. In: Revue Française de Pédagogie, Paris: nº 121, 1988.
[15]
- CORREIA, J. A. Para uma teoria crítica em educação. Porto : Porto Editora, 1998.
[16] -
CANÁRIO, R., op. cit., p. 68.
[17] - A
esse respeito, ver Harvey, D. A condição pós-moderna.
São Paulo: Loyola, 1992.
[18]
- Procurei fazer isso no livro Educação, formação, trabalho e políticas
educativas (Porto: Profedições, 2007).
[19] - Ver GURVITCH, George. Traité de sociologie. Paris: PUF, 1962.
[20]
- Quer dizer, pagando-se tributo a
Sartre, é de se assinlar que a totalização corresponde à concepção do todo como
algo aberto e intensamente dinâmico. De acordo com este entendimento, há de
submeter os resultados obtidos pelas ciências particulares a dois crivos de
avaliação: Por um lado, ao princípio da totalidade, através do qual se procura
relacionar dialeicamente os objetos elaborados por uma determianda ciência
particular com a totalidade social, mediatizando e desfetichizando tais
objetos, fazendo com que eles deixem de ser meros “fatos” e se convertam em
processos; por outro lado, ao crivo da historicidade, superando a pseudoconcreticidade
com que os objetos analsiados se apresentam, tornando-os então estados
transitórios de um permanente devir. Cf. SARTRE, Jen Paul. Critique de la Raison Dialetique. Paris: Gallimard, 1960. Ver também
LUKÁCS, Georgy. The ontology of social
being. London :
Merlin Press, 1980.
[21] - Cf. MORIN, Edgar. La métode. La nature de la nature. Paris: Seuil, 1977.
[22]
- BORDIEU, P. Lição sobre a lição. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas,
1996, p. 10.
[23] - CANÀRIO, R. op. cit, p. 63.
[24] -
Ibidem, p. 69.
[25] - BELL, Daniel. The coming of post-industrial society: A venture in social forecasting. New York: Basic books, 1999.
[26] -
FRANCO, Augusto. A revolução do local:
Globalização, glocalização, localização.
Brasília: AED; São Paulo: Cultura, 2004.
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