quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Ministro Joaquim Barbosa: o estudo e o 'anti-herói'

Tenho sempre cá comigo as palavras de Antonio Cândido na abertura do célebre Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda: Chegam certas alturas da vida que "vai ficando possível dar um balanço no passado sem cair em autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas caraterísticas gerais de uma época". Ora, isto me tem feito, cada vez mais, por exemplo, a não atribuir nenhum valor a dicotomias, que, de per se, já são improdutivas e estéreis. Sejam elas de que natureza forem. Por vezes, há quem entenda que a pertença a determinado âmbito, automaticamente, imuniza a crítica. Daí se tem fatos como: não poder discordar e criticar os movimentos sociais, desqualificar quem não tem crença religiosa específica, defender uma posição por que ela é a posição de uma determinada pessoa, etc.  Estou longe, muito longe, de coisas desse gênero. E longe quero me manter. Dentre outas razões, esta minha prosa decorre do que, nos últimos dias, tenho visto dizer sobre o Ministro Joaquim Barbosa. Em certas intervenções, uma tentativa sem sentido de desmerecê-lo como magistrado; em outras, a sanha oposicionista de elevá-lo a herói. Ele próprio, em entrevista, colocou as coisas no devido lugar. O apreço pelo estudo. O compromisso com o que faz. O anti-herói. Abaixo, vale a pena ler a entrevista.

MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA - Folha de São Paulo 
O ministro Joaquim Barbosa em seu gabinete no STF

Joaquim, o anti-herói


O "dia mais chocante" da vida de Joaquim Benedito Barbosa Gomes, 57, segundo ele mesmo, foi 7 de maio de 2003, quando entrou no Palácio do Planalto para ser indicado ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A ocasião era especial: ele seria o primeiro negro a ser nomeado para o tribunal.
"Eu já cheguei na presença de José Dirceu [então ministro da Casa Civil], José Genoino [então presidente do PT], aquela turma toda, para o anúncio oficial. Sempre tive vida reservada. Vi aquele mar de câmeras, flashes...", relembrava ele em seu gabinete na terça-feira, 2.
No dia seguinte à entrevista com a Folha, e nove anos depois da data memorável de sua nomeação, Joaquim Barbosa condenou Dirceu e Genoino por corrupção.
Para conversar com o jornal, impôs uma condição: não falar sobre o processo, ainda em andamento no STF.
O TELEFONE TOCA
Barbosa diz que foi Frei Betto, que o conhecia por terem participado do conselho de ONGs, que fez seu currículo "andar" no governo.
"Eu passava temporada na Universidade da Califórnia, Los Angeles. Encontrei Frei Betto casualmente nas férias, no Brasil. Trocamos cartões. Um belo dia, recebo e-mail me convidando para uma conversa com [o então ministro da Justiça] Márcio Thomaz Bastos em Brasília." Guarda a mensagem até hoje.
"Vi o Lula pela primeira vez no dia do anúncio da minha posse. Não falei antes, nem por telefone. Nunca, nunca."
Por pouco, não faltou à própria cerimônia. "Veja como esse pessoal é atrapalhado: eles perderam o meu telefone [gargalhadas]."
Dias antes, tinha sido entrevistado por Thomaz Bastos. "E desapareci, na moita." Isso para evitar bombardeio de candidatos à mesma vaga.
"Na hora de me chamar para ir ao Planalto, não tinham o meu contato." Uma amiga do governo conseguiu encontrá-lo. "Corre que os caras vão fazer o seu anúncio hoje!"
Depois, continuou distante de Lula. Não foi procurado nem mesmo nos momentos cruciais do mensalão. "Nunca, nem pelo Lula nem pela [presidente] Dilma [Rousseff]. Isso é importante. Porque a tradição no Brasil é a pressão. Mas eu também não dou espaço, né?"
O ministro votou em Leonel Brizola (PDT) para presidente no primeiro turno da eleição de 1989. E depois em Lula, contra Collor. Votou em Lula de novo em 2002.
"Vou te confidenciar uma coisa, que o Lula talvez não saiba: devo ter sido um dos primeiros brasileiros a falar no exterior, em Los Angeles, do que viria a ser o governo dele. Havia pânico. Num seminário, desmistifiquei: 'Lula é um democrata, de um partido estabelecido. As credenciais democráticas dele são perfeitas'."
O escândalo do mensalão não influenciou seu voto: em 2006, já como relator do processo, escolheu novamente o candidato Lula, que concorria à reeleição.
"Eu não me arrependo dos votos, não. As mudanças e avanços no Brasil nos últimos dez anos são inegáveis. Em 2010, votei na Dilma."
DE LADO
No plenário do STF, a situação muda. Barbosa diz que "um magistrado tem deveres a cumprir" e que a sociedade espera do juiz "imparcialidade e equidistância em relação a grupos e organizações".
Sua trajetória ajuda. "Nunca fiz política. Estudei direito na Universidade de Brasília de 75 a 82, na época do regime militar. Havia movimentos significativos. Mas estive à parte. Sempre entendi que filiação partidária ou a grupos, movimentos, só serve para tirar a sua liberdade de dizer o que pensa."
VENCEDOR E VENCIDO
Barbosa gosta de dizer que não tem "agenda". Em 2007, relatou processo contra Paulo Maluf (PP-SP). Delfim Netto não era encontrado para depor como testemunha. Barbosa propôs que o processo continuasse. Foi voto vencido no STF. O caso prescreveu.
No mesmo ano, relatou processo em que o deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PB) era acusado de tentativa de homicídio. O réu renunciou ao mandato e perdeu o foro privilegiado. Barbosa defendeu que fosse julgado mesmo assim. Foi voto vencido no STF.
Em 2009, como relator do mensalão do PSDB, propôs que a corte acolhesse denúncia contra o ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo. Quase foi voto vencido no STF -ganhou por 5 a 3, com três ministros ausentes.
Dois anos antes, relator do mensalão do PT, propôs que a corte acolhesse denúncia contra José Dirceu e outros 37 réus. Ganhou por 9 a 1.
NOVELA RACISTA
Barbosa já disse que a imprensa "nunca deu bola para o mensalão mineiro", ao contrário do que faz com o do PT. "São dois pesos e duas medidas", afirma.
A exposição na mídia não o impede de fazer críticas até mais ácidas.
"A imprensa brasileira é toda ela branca, conservadora. O empresariado, idem", diz. "Todas as engrenagens de comando no Brasil estão nas mãos de pessoas brancas e conservadoras."
O racismo se manifesta em "piadas, agressões mesmo". "O Brasil ainda não é politicamente correto. Uma pessoa com o mínimo de sensibilidade liga a TV e vê o racismo estampado aí nas novelas."
Já discutiu com vários colegas do STF. Mas diz que polêmicas "são muito menos reportadas, e meio que abafadas, quando se trata de brigas entre ministros brancos".
"O racismo parte da premissa de que alguém é superior. O negro é sempre inferior. E dessa pessoa não se admite sequer que ela abra a boca. 'Ele é maluco, é um briguento'. No meu caso, como não sou de abaixar a crista em hipótese alguma..."
Barbosa, que já escreveu um livro sobre ações afirmativas nos EUA, diz que o racismo apareceu em sua "infância, adolescência, na maturidade e aparece agora".
Há 30 anos, já formado em direito e trabalhando no Itamaraty como oficial de chancelaria -chegou a passar temporada na embaixada da Finlândia-, prestou concurso para diplomata. Passou. Foi barrado na entrevista.
DE IGUAL PARA IGUAL
É o primeiro filho dos oito que o pai, Joaquim, e a mãe, Benedita, tiveram (por isso se chama Joaquim Benedito).
Em Paracatu, no interior de Minas, "Joca" teve uma infância "de pobre do interior, com área verde para brincar, muito rio para nadar, muita diversão". Era tímido e fechado.
A mãe era dona de casa. O pai era pedreiro. "Mas ele era aquele cara que não se submetia. Tinha temperamento duro, falava de igual para igual com os patrões. Tanto é que veio trabalhar em Brasília, na construção, mas se desentendeu com o chefe e foi embora", lembra Joaquim.
O pai vendeu a casa em que morava com a família e comprou um caminhão. Chegou a ter 15 empregados no boom econômico dos anos 70. "E levava a garotada para trabalhar." Entre eles, o próprio Joaquim, então com 10 anos.
RUMO A BRASILIA
No começo da década, Barbosa se mudou para a casa de uma tia na cidade do Gama, no entorno de Brasília.
Cursou direito, trabalhou na composição gráfica de jornais, no Itamaraty. Ingressou por concurso no Ministério Público Federal.
Tirou licenças para fazer doutorado na Universidade de Paris-II. E passou períodos em universidades dos EUA como acadêmico visitante. Fala francês, inglês e alemão.
Hoje, Barbosa fica a maior parte do tempo em Brasília, onde moram a mãe, os sete irmãos e os sobrinhos. O pai já morreu. Benedita é evangélica e "superpopular". Em seu aniversário de 76 anos, juntou mais de 500 pessoas.
O ministro tem também um apartamento no Leblon, no Rio, cidade onde vive seu único filho, Felipe, 26. Se separou há pouco de uma companheira depois de 12 anos de relacionamento.
PÚBLICO
A Folha pergunta se Barbosa não tem o "cacoete da condenação" por ter feito carreira no Ministério Público, a quem cabe formular a acusação contra réus.
"De jeito nenhum. O que eu tenho do MP é esse espírito de preocupação com a coisa pública. Mesmo porque não morro de amores por direito penal. Sou especialista em direito público."
DEVER
Nega que tenha certa aversão por advogados [ver página ao lado]. E nega também que tenha prazer em condenar, sem qualquer tipo de piedade em relação à pessoa que perderá a liberdade.
"É uma decisão muito dura. Mas é também um dever."
"O problema é que no Brasil não se condena", diz. "Estou no tribunal há sete anos, e esta é a segunda vez que temos que condenar. Então esse ato, para mim e para boa parte dos ministros do STF, ainda é muito recente."
Diante de centenas de grandes escândalos de corrupção no Brasil, e de só o mensalão do PT ter chegado ao final, é possível desconfiar que a máquina de investigação e punição só funcionou para este caso e agora será novamente desligada?
"Não acredito", diz Barbosa. "Haverá uma vigilância e uma cobrança maior do Supremo. Este julgamento tem potencial para proporcionar mudanças de cultura, política, jurídica. alguma mudança certamente virá."
MEQUETREFE
O caso Collor, por exemplo, em que centenas de empresas foram acusadas de pagar propina para o tesoureiro do ex-presidente, chegou "desidratado" ao STF, diz o ministro. "Tinha um ex-presidente fora do jogo completamente. E, além dele, o quê? O PC, que era um mequetrefe."
O país estava "mais próximo do período da ditadura" e o Ministério Público tinha recém-conquistado autonomia, com a Constituição de 1988. Até 2001, parlamentares só eram processados no STF quando a Câmara autorizava. "Tudo é paulatino. Mas vivemos hoje num país diferente."
PONTO FINAL
Desde o começo do julgamento do mensalão, o ministro usa um escapulário pendurado no pescoço. "Presente de uma amiga", afirma.
Depois de flagrado cochilando nas primeiras sessões, passou a tomar guaraná em pó no começo da tarde.
Diz que não gosta de ser tratado como "herói" do julgamento. "Isso aí é consequência da falta de referências positivas no país. Daí a necessidade de se encontrar um herói. Mesmo que seja um anti-herói, como eu."
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/70604-joaquim-o-anti-heroi.shtml

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Cioran ou Os Domingos da Vida


"Se as tardes dominicais fossem prolongadas durante meses, o que seria da humanidade, emancipada do suor, livre do peso da primeira maldição? A experiência valeria a pena. É mais do que provável que o crime se tornasse a única diversão, que a devassidão parecesse candura, o uivo melodia e o escárnio ternura. A sensação da imensidade do tempo faria de cada segundo um intolerável suplício, um pelotão de execução capital. Nos corações mais imbuídos de poesia se instalariam um canibalismo estragado e uma tristeza de hiena; os patíbulos e os carrascos extinguiriam-se de langor; as igrejas e os bordéis explodiriam de suspiros. O universo transformado em tarde de domingo… é a definição do tédio – e o fim do universo… (…) Como matar de outra maneira este tempo que já não flui? Nestes domingos intermináveis, ador de ser manifesta-se plenamente" [Cioran, E. M. Breviário de decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. – Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 30/31].

Aí está Emil Cioran, já comentando neste espaço noutra altura. É em decorrência desta e de outras trilhas do seu pensamento que muitos, como eu próprio, chegam ao seu "castelo metafísico". 

Por Vasco Moura 

Bastou-me uma frase, e a paixão estava consumada. Nunca mais deixei de ler Cioran. Retorno sempre às páginas de seus livros com redobrado prazer. E tudo por causa daquela frase. Às vezes basta uma frase para que sejamos fisgados por um autor e nunca mais deixemos de nos encantar com seus escritos. Na minha descoberta do filósofo romeno Emil M. Cioran (Rasinari, Romênia, 8/4/1911-Paris, 20/6/1995) foi assim. Bastou uma frase, aquela frase perfeitíssima, completa, inigualável, que vale por todo um tratado de filosofia, a frase que um dia eu gostaria de ter escrito (desculpem-me os leitores se abuso aqui dos superlativos e dos adjetivos, mas é que quando me apaixono não consigo disfarçar): “Nestes domingos intermináveis a dor de ser manifesta-se plenamente”. Depois vieram outras, que também me provocaram não menos prazer, como aquela em que Cioran indaga: “Que pecado cometeste para nascer, que crime para existir? Tua dor, como teu destino, não tem motivo”.
Primeiro foi a leitura do seu Breviário de decomposição. Li-o com o prazer de quem se encontra diante do prato da mais fina e rara iguaria. Li-o com volúpia, da primeira à última palavra. Depois fiquei aguardando ansiosamente a próxima tradução de um livro seu, torcendo para que José Thomaz Brum se decidisse a fazê-lo. Mas foi necessário esperar, ainda, dois anos. Então chegou às livrarias Silogismos da amargura.
Lá estavam novamente as frases curtas e certeiras, desta feita mais curtas ainda, uma vez que se trata de silogismos. Como essa: “A vida, esse mau gosto da matéria” (Cioran, E. M. Silogismos da amargura.Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991,  p. 56). Ou, ainda, o resumo curtíssimo e, talvez por isso mesmo, completo, do autor de Hamlet, sobre o qual Cioran afirmou apenas: “Shakespeare: encontro de uma rosa e de um machado…” (p. 13). E sobre Deus: “Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo” (p. 49).
Depois continuei lendo – e o faço ainda, sempre – Cioran, torcendo para que sejam publicadas mais traduções de seus livros (algumas outras já foram editadas). Os dois aqui citados contam-se entre os livros mais lidos, mais cotejados da minha pequena biblioteca. Tenho retornado a eles reiteradas vezes, e o prazer experimentado é sempre o mesmo. Cioran é como um vinho antigo, que deve ser sorvido em doses comedidas, para que possamos bem apreciar-lhe o sabor sem que nenhuma gota seja desperdiçada.
Em 1995, quando a revista Veja noticiou a morte de Cioran, destaquei a página, mandei emoldurá-la e dei-lhe um lugar de destaque na parede da minha biblioteca, onde permanece até hoje. Quero concluir com uma citação que tenho como uma das afirmações mais verdadeiras sobre a realidade do ser:
“O ser entregue a si mesmo, sem nenhum preconceito de elegância, é um monstro; só encontra em si zonas obscuras, onde rondam, iminentes, o terror e a negação. Saber, com toda sua vitalidade, que se morre e não poder ocultá-lo, é um ato de barbárie. Toda filosofiasincera renega os títulos da civilização, cuja função consiste em velar nossos segredos e disfarçá-los com efeitos rebuscados. Assim, a frivolidade é o antídoto mais eficaz contra o mal de ser o que se é: graças a ela iludimos o mundo e dissimulamos a inconveniência de nossas profundidades. Sem seus artifícios, como não envergonhar-se por ter uma alma? Nossas solidões à flor da pele, que inferno para os outros! Mas é sempre para eles, e às vezes para nós mesmos, que inventamos nossas aparências…” (Breviário de decomposição, p. 17).
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Fonte: http://blog.opovo.com.br/sincronicidade/cioran-ou-os-domingos-da-vida/#.T3s2TkFCerk.wordpress

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Aprovar quem não aprendeu? Aluno aprovado sem saber escrever o próprio nome



Determinados modismos pedagógicos, geralmente importados (e adotados sem considerar a realidade brasileira),  trazem um prejuízo incalculável à educação e aos próprios estudantes, com os mesmos recebendo diplomas sem terem a formação devida para obtê-los. Problemas no processo de avaliação, onde professores fingem que ensinam/avaliam e alunos fingem aprendem/são avaliados. O prejuízo só é visto depois, quando já é tarde demais: profissionais inabilitados, sem preparação, para o que as profissões exigem. O resultado, na certa, é a exclusão profissional, caminho para a exclusão social. Tal realidade inicia-se na escola básica e chega ao ensino superior, infelizmente. Veja, abaixo, o caso de um aluno, no Amazonas, que, aos nove anos, será aprovado novamente sem saber escrever o próprio nome.





Segundo avô de estudante, contas de somar e subtrair ainda são desafios.
Apesar da situação, garoto de nove anos apresenta boas notas no boletim.



Menino não consegue escrever o próprio nome, segundo avô (Foto: Reprodução/TV Amazonas)Menino não consegue escrever o próprio nome,
segundo avô (Foto: Reprodução/TV Amazonas)
Preocupado com o futuro do neto, o comerciante Antônio Marques, de 55 anos, tenta reforçar os estudos do neto em casa. Aos nove anos, o garoto não sabe escrever o próprio nome e tem dificuldades de fazer operações básicas de Matemática. Segundo o comerciante, o aluno será aprovado em uma escola pública de Manaus para o terceiro ano do Ensino Fundamental.
Sob o olhar atento do avô, o garoto procura aprender em casa os ensinamentos repassados na escola. No boletim, ele apresenta boas notas, mas na prática o resultado é diferente: contas de somar e subtrair ainda são desafios para o menino. A situação gera preocupação no avô.

"Um prédio não pode começar a ser construído do quinto andar, tem que ter a base. Esse menino não tem base alguma. Ele não sabe nem assinar o nome. Não dá para ser ninguém assim", disse.
Em 2010, o Ministério da Educação (MEC) decidiu que o processo de alfabetização seria contínuo. Nos três primeiros anos, nenhum aluno pode ser reprovado. Para o neto de Antônio Marques e muitas outras crianças, o resultado disso é 'prejuízo na certa'. É o pensa a psicopedagoga Ivone dos Reis, que há 30 anos lida com crianças que possuem déficit de atenção.
Segundo a profissional, há males irreparáveis se a criança não conseguir aprender o assunto da escola. "Muitos professores em sala de aula, pouca estrutura para se trabalhar. Os pais deveriam exigir a reprovação se constatassem que as crianças não estão aptas a seguir na escola", explicou.

Esse é o medo de Antônio Marques. O sonho de ver o neto, órfão de pai, se tornar um adulto bem sucedido, não pode parar. Ele contou que a família não teve muitas oportunidades. "Eu sonho em vê-lo concluir o Ensino Médio e entrar na faculdade", afirmou.
Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Educação (Semed) informou que conforme estabelece a resolução do MEC, por meio do Conselho Nacional de Educação Básica, nº 7, de 14 de dezembro de 2010, o processo de alfabetização é contínuo e que deve ser concluído ao final dos três anos iniciais do Ensino Fundamental.
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Fonte: http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2012/11/sem-saber-escrever-proprio-nome-aluno-sera-aprovado-em-escola-do-am.html

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Escola em Perspectiva: Professores, Alunos, Desafios e Alternativas


Escrevi o texto abaixo, inicialmente, como base para uma conferência que proferi como aula inaugural no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPB.  A partir do frutífero debate com pesquisadores do Programa e pós-graduandos, produzi a versão atual. A senda é a mesma que venho seguindo há já algum tempo (assim como outros companheiros), mesmo quando me detenho apenas nos processos educativos não-formais: conceber a instituição escolar em perspectiva sócio-histórica, os seus delineamentos pedagógicas e, analiticamente, pugnar por uma outra escola... 



A ESCOLA EM PERSPECTIVA: NOVOS FENÔMENOS, RECONFIGURAÇÕES E DESAFIOS À PESQUISA[1]
 Ivonaldo Leite[2]

Introdução
Se é fato que, em educação, dado o caráter da área, delega-se à pesquisa um forte atributo no sentido de resolver “questões práticas”, por outro lado, deve-se assinalar que isto não pode significar uma instrumentalização normativa da investigação educacional, de modo que ela, abdicando da sua autonomia, se limite - de forma funcional – a tratar de agendas que, exogenamente, lhe são social e politicamente construídas. Importa, portanto, que a pesquisa educacional afirme-se com independência, assuma-se como autorreflexiva e comprometida com a problematização analítica dos fenômenos.
É evidente que esta é uma perspectiva que, no âmbito das ciências humanas, questiona a (improdutiva) oposição dicotômica entre ciência pura e ciência aplicada. Trata-se de uma dicotomia que, de resto, além de pagar demasiado tributo teórico a um decalque positivista das ciências exatas, ignora, por isto mesmo, o fato de, no campo das ciências humanas, o conhecimento, em sua relação com a instância prática, adquirir uma dimensão de recontextualização, reconfiguração e recriação.
Ou seja, a relação com a realidade não é unilateral, de via única, com ela inertemente recebendo a “aplicação” de um determinado saber. Pelo contrário, a sua replicação à esta “aplicação” pode levar o saber que está sendo “aplicado” a ser reconfigurado, e até mesmo completamente recriado. Daí que, por exemplo, no caso do pedagogo, ele não se limita a aplicar um conhecimento que lhe precede (histórico, sociológico, psicológico, etc.), pois os desafios da prática podem levá-lo refazer o conhecimento que lhe preexista (o dito “conhecimento puro”).    
Com estas palavras preliminares, pretendo realçar que, atualmente, diante das mutações no campo educativo, é imprescindível que a pesquisa educacional não se deixe pautar pela retórica de segmentos como os opinion makers, a mídia e agências com interesses poucos claros, cujos discursos, realizados do exterior da comunidade científica, ao centrarem-se unicamente na dita “aplicação prática”, ocultam que o processo educacional é condicionado pelo contexto onde ele é desenvolvido.
Impõe-se então que a pesquisa em educação exercite o que, epistemologicamente, é próprio da démarche investigativa: a abordagem sem nenhum tipo de renúncia à problematização analítica dos fenômenos que enfoca, tendo como pressuposto que é necessário ultrapassar o que se apresenta como aparente, pois, como há muito já foi dito, se aparência e essência fossem a mesma coisa, a ciência seria desnecessária. Daí há que reter que, no estudo de um determinado objeto, deve-se fazer uma distinção “entre representação e conceito da coisa, com isso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de conhecimento, mas especialmente, e sobretudo, duas qualidades da práxis humana”[3] (Kosik, 1976, p. 10), cabendo, portanto, à pesquisa científica, como esfera de mediação e tradução entre o teórico e o empírico, expressar os fatos que correspondem à realidade objetiva. 
É a partir desta perspectiva que interessa abordar a educação contemporânea, tratando dos novos fenômenos que perpassam a escola e dos desafios que se colocam à pesquisa. O presente ensaio pretende ser uma reflexão neste sentido.  
No primeiro momento, passarei em revista a construção sócio-histórica do moderno modelo escolar, pondo em realce a sua genealogia; no segundo, colocarei em evidência a erosão de alguns dos postulados que deram sustentação à estruturação da escola; e no terceiro, tendo em conta os problemas e a crise que a escola enfrenta, por conta da mencionada erosão, tratarei de alguns desafios que se põem à pesquisa educacional atualmente.

A construção sócio-histórica do moderno modelo escolar
A escola, como hoje a conhecemos, emerge no continente europeu, associada ao surgimento dos modernos Estados-nação, num processo que significou o deslocamento da educação do âmbito da Igreja para a esfera estatal[4]. Isto é, procurou-se, assim, assegurar a unidade de cada país, sendo delegada à escola a função de formar os cidadãos nacionais. A educação escolar assume, nesta perspectiva, uma dimensão de educação moral, uma espécie de “religião da pátria”, conforme realçou Jules Ferry - primeiro ministro da educação francês -, ao assinalar que: “O Estado não é doutor em matemática, em filosofia ou em química, nem se ocupa da educação com a finalidade de criar verdades científicas, mas, sim para manter uma certa moral de Estado, certas doutrinas de Estado que importam à sua conservação”[5]. De outra parte, a construção sócio-histórica da escola é tributária da Revolução Industrial, num processo em que ela socializa antecipadamente às novas gerações, em sintonia com as regras e padrões da fábrica, incutindo-lhes hábitos e comportamentos funcionais ao mundo da produção. 
Deste modo, a escola erigiu-se assente num modelo que comporta três dimensões: uma forma, uma organização e uma instituição[6]. No que concerne à forma, o modelo escolar representa uma nova maneira de conceber a aprendizagem, rompendo com os processos de continuidade relativos à experiência e à imersão social, instituindo uma modalidade de aprendizagem baseada na revelação, na cumulatividade e na exterioridade. Como organização, a escola levou a cabo uma transição dos modos de ensino individualizados (um mestre, um aluno) para modos de ensino simultâneos (um mestre, uma classe), instaurando modos específicos de organizar os espaços, os tempos e os agrupamentos dos alunos. Já como instituição, no sentido histórico-sociológico, a escola é uma instância que, a partir de um conjunto de valores, funciona como um centro formador de cidadãos, desempenhando um papel central no processo de integração social, tendo sido, nesta perspectiva, historicamente, um veículo fundamental no processo de unificação cultural, lingüística e política dos Estados-nação.
Com tal horizonte, a escola é configurada a partir de alguns postulados que - respondendo às missões dos sistemas de ensino da modernidade - sedimentam as bases da sua existência.
O primeiro postulado diz respeito à assunção da escola como instância hegemônica de socialização secundária. Ou seja, assim como o grupo social familiar é o âmbito próprio da socialização primária, a escola se apresenta como o local que tem o apanágio da socialização secundária. Como decorrência disto, não só se verificou uma desvalorização das práticas educativas não-formais, mas mesmo uma espécie de colonização destas pela educação formal.
O segundo postulado concerne ao lema da moderna pedagogia: Ensinar a muitos como se fosse a um só. Quer dizer, trata-se de um axioma que justifica a constituição da classe escolar, num quadro em que, além de basear-se na revelação e na cumulatividade, norteia-se não por uma relação pessoa a pessoa, mas, sim, pela subordinação dos professores e dos alunos a regras impessoais:  “Num espaço fechado e inteiramente ordenado à realização por cada um dos seus deveres, num tempo tão cuidadosamente regulado que não pode dar lugar a nenhum movimento imprevisto, cada um submete a sua atividade aos princípios ou regras que a regem”[7].
O terceiro postulado refere-se a algo que é inerente ao modelo escolar: A fragmentação disciplinar. Levando a efeito, como bem diz Ardoino[8], uma espécie de taylorismo intelectual, a escola parte e reparte o conhecimento num currículo que separa em teoria o que se encontra unido em empiria, ou seja, fragmenta o saber em diferentes disciplinas que, assim sendo, negam o caráter uno da realidade e submetem a compreensão desta a abordagens parciais, conforme o objeto de cada ciência.
O quarto postulado relaciona-se ao poder dos diplomas e a capacidade da escola em promover mobilidade social.  No dizer de Rui Canário, durante um largo período, “a escola viveu o que, hoje, podemos retrospectivamente considerar uma ‘idade de ouro’, que coincide com o apogeu do capitalismo liberal e que permanece no imaginário coletivo como um referente a confrontar com os ‘males’ da escola atual”[9]. Foi um período em que, por razões específicas da época, os diplomas tinham uma forte distinção simbólica e, assim sendo, eram portadores de um significativo poder, tornando a escola uma agência determinante na promoção da mobilidade social, na medida em que havia uma estreita funcionalidade entre os mundos da formação e do trabalho. 
Por terem sido referenciais centrais na construção sócio-histórica da escola, os  quatro postulados aludidos, dentre outros, acompanharam a sua trajetória, e foram, ao longo dos tempos, sendo impactados por diferentes fenômenos sociais, culminando, nos dias atuais, com a sua extrema fragilização, pondo em causa, portanto, as bases constituintes do modelo escolar. A trajetória do modelo escolar, que culmina na sua crise atual, pode, para fins analíticos, ser categorizada em três fases: a da escola das certezas, que corresponde à sua “idade de ouro” e que pode ser situada entre a Revolução Francesa e o fim da Primeira Guerra Mundial; a da escola das promessas, datada do fim da Segunda Guerra Mundial ao colapso do Estado Providência nos anos 1970, e cuja marca é a ampliação da oferta educativa e a promessa de um crescimento econômico permanente; e a da escola das incertezas, surgida no último quartel do século passado e que se estende aos nossos dias, tendo como traços distintivos, por exemplo, a instabilidade interna e a insegurança na capacidade de os diplomas proporcionarem acesso aos postos do mercado de trabalho, relativamente aos quais eles certificam habilitações. O background do modelo escolar encontra-se, portanto, colocado em questão.

A crise da escola: erosão dos seus postulados
 Embora, como sublinha Nóvoa[10], o discurso sobre a crise da escola seja algo recorrente, a verdade é que, nos dias atuais, esta crise, entendida como mutação, apresenta um caráter estrutural, como bem assinalou Charlot[11]. Trata-se de um “problema” comum a todos os países industrializados, o qual surge estreitamente vinculado ao fato de, perante ao esboroar gradual das suas bases fundadoras, a instituição escolar aparecer impotente. Daí então poder-se afirmar que tal crise exprime também “uma crise do modo de pensar a escola”[12].  
De fato, recenseando-se os fenômenos que impactam as bases constituintes do modelo escolar, pode-se efetivamente realçar que não estamos em presença de “disfunções provisórias”, mas assistimos, sim, a erosão dos pilares que deram sustentação a esse modelo. Entendamo-nos.
No que toca à sua posição como instância de socialização secundária, a escola tem sido relegada, sobretudo com o advento das novas tecnologias, a uma posição de relativa subalternização. De uma parte, os conhecimentos escolares têm sido, cada vez mais, deslocados para o exterior das escolas, assumindo as mais diversas configurações através, por exemplo, da internet e de canais de televisão; de outra parte, tem ocorrido uma espécie de antecipação da socialização secundária, no âmbito mesmo de um grupo da socialização primária (a família), na medida em que, em casa - não raramente sem o acompanhamento dos pais -, adolescentes e jovens ocupam parcelas significativas do seu tempo em contactos com as chamadas “máquinas inteligentes”, a exemplo da navegação pela internet, com a participação em chats e comunidades virtuais, numa manifestação daquilo que Pierre Lévy chamou de interatividade, calcada em mensagens lineares e participativas[13].
A premissa do ensinar a muitos como se fosse a um só tem sido fortemente confrontada com uma série de “acontecimentos perturbadores” em sala de aula, como a indisciplina, a desatenção e até mesmo a violência. Verifica-se uma profunda sensação de mal-estar, onde, por vezes, discentes e docentes contam os minutos para que a aula termine e ambos deixem a sala. Da parte discente, a leitura da sua resistência e insubmissão não pode ser dissociada do fato de se acentuar uma cisão entre a sua vida cultural e a vida escolar, onde se deixa de ser estudante – alguém que está na escola – e passa-se a ser um trabalhador escolar, dando corpo ao que a Sociologia da Educação contemporânea tem chamado de ofício do aluno[14]. A antecipação cada vez mais freqüente dos modos de operacionalização do mundo do trabalho para o mundo escolar, habilitando o quanto antes a força de trabalho, tem feito com que ser aluno já não seja apenas estar envolvido num processo de socialização conforme a natureza, individual ou social, das coisas, mas se apresente como sendo assumir desde logo um estatuto social que se define per si, não podendo por isso ser exclusivamente apreciado pela forma como ele se articula com um antes (a socialização familiar) ou um depois (a maturidade de que ele seria o antecedente natural)[15].
Em relação à fragmentação disciplinar, a complexa sociedade contemporânea a coloca em causa, visto que a percepção e o entendimento dos seus fenômenos demandam um conhecimento pluri/transdisciplinar que transgride as fronteiras de domínios científicos específicos, até porque seria, no mínimo, impróprio, num mundo global – onde as diversas esferas se encontram cada vez mais interconectadas -, pretender que enfoques disciplinares particulares sejam dotados de inteligibilidade para assumir “juízos universsalizantes”. Além do mais, o caráter múltiplo do humano (dimensão histórica, social, psicológica, biológica, etc.) não é fragmentado, mas sim encontra-se condensado num uno, que é o próprio ser humano. Há de considerar também que o conceito de currículo oculto veio demonstrar quão ilusória é a tentativa de - a partir de fronteiras empíricas delimitadas rigidamente - codificar de forma normativa os saberes a serem ensinados. De resto, o mundo do trabalho, hoje, sob o impulso da nova base científico-técnica, requer habilitações profissionais transversais, isto é, habilitações configuradas por uma variedade de distintos saberes que se interconectam. A fragmentação do conhecimento escolar encontra-se, portanto, desafiada.
Por último, o destaque no poder dos diplomas e na capacidade da escola em promover mobilidade social.  Em seus tempos áureos, a escola, sendo voltada a um conjunto restrito da população, destacou-se como uma instância de relativo prestígio no acesso a empregos e na promoção da mobilidade social, com os diplomas tendo, assim, uma forte distinção simbólica. No fundo, tratava-se de uma escola elitista, pois poucos a ela tinham acesso.
Ora, como as desigualdades sociais se situavam a montante e não a justante da escola, esta podia ser ilibada de responsabilidades diretas na produção de injustiças sociais. De outra parte, “o próprio malthusianismo inerente a um sistema elitista favorece a rentabilidade de percursos escolares longos”[16]. Desta forma, a valorização dos diplomas permita que a sua troca por empregos ocorresse sem maiores percalços.
Totalmente diferente é a situação nos dias atuais, num tempo de incertezas. A ampliação do acesso à escola e as transformações que têm afetado os setores econômicos e políticos alteraram as relações entre escolaridade, mercado de trabalho e mobilidade social, de par com a perda de distinção simbólica dos diplomas, tendo em conta o declínio do poder destes como meio de proporcionar estabilidade sócio-profissional. A estruturação de um novo padrão de acumulação capitalista, assente na chamada acumulação flexível[17], em substituição aos parâmetros do Estado de Bem-Estar Social, não só rejeita a idéia de empregos estáveis, para toda a vida, como também, indo mais longe, inscreve o desemprego estrutural com um dos seus aspectos constituintes.
Neste quadro, são paradigmáticos determinados discursos sobre o fim do trabalho. Com as devidas exceções, cumprem uma função ideológica, sobretudo quando colocam ênfase em expressões como empregabilidade, querendo indicar que, por não haver trabalho para todos, as pessoas devem manter-se em condições de ser empregadas (empregáveis), ocultando-se, então, que o desemprego é orgânico à necessidade de o capital conservar e ampliar as suas taxas de lucros, e não uma “decorrência natural”, por exemplo, da falta de qualificação, das novas tecnologias ou da globalização.
Verifica-se, portanto, um intenso processo de erosão dos postulados que estruturaram a origem e a trajetória dos modernos sistemas educativos, levando-os a uma situação de crise. Perante este cenário, colocam-se alguns reptos à investigação em educação.

A pesquisa educacional e a crise da escola: desafios
Um primeiro desafio que a crise da escola remete à pesquisa em educação tem a ver, digamos, com uma questão de método. Ele apela para que as discussões dos estudos sejam feitas de uma maneira que transcenda os estreitos limites de disciplinas científicas particulares[18].
É tempo, parece, de, no seio da análise social, recuperar pioneiras formulações a respeito de tal problemática. Colocar sobre a mesa, por exemplo, o conceito de fenômeno social total, como realçado por Marcel Mauss, a partir do qual se pode evidenciar o caráter uno da realidade, por contraposição às compartimentações instituídas pelas diferentes disciplinas. Os fenômenos sociais totais de Mauss, também por ele chamados de totalidades em marcha, constituem uma indicação fundamental para que o trabalho de análise da realidade seja credível, como bem assinalou Gurvitch[19].   Em boa verdade, o conceito de fenômeno social total - assim como a formulação sartreana em torno da totalização[20], de par com a relação o todo e as partes - antecipa, e muito, elaborações a propósito da complexidade, como a expressa na fórmula de Morin segundo a qual a realidade é um sistema de sistemas de sistema[21].
Coloca-se então como imprescindível, nos estudos sobre a escola, transcender as abordagens parciais, procurando captá-la como totalidade complexa. Trata-se, portanto, de um desafio, pois, por vezes, mesmo perspectivas que se definem como interdisciplinares, o que fazem é reproduzir o conhecimento fragmentado em outros patamares.
Um segundo desafio à pesquisa educacional pode ser realçado a partir daquela indicação de Bourdieu segundo a qual se impõe superar “as categorias de pensamento impensadas que delimitam o pensável e predeterminam o pensado”[22]. Isto é, importa que, nos estudos sobre a escola, ela seja concebida como uma criação histórica, pondo-se de parte a sua suposta atemporalidade, que faz com que, em determinados enfoques, ela seja entendida de modo similar a um fenômeno da natureza, dado o grau de naturalização que a tem revestido ao longo dos tempos.  
Tendo isto em conta, cabe a investigação em educação focar a escola considerando que ela é uma forma, uma organização e uma instituição. Como tem sido assinalado, “a ausência de distinção analítica entre estas três dimensões tende a confundir o debate, pela contraposição de críticas ou argumentos que não situam a discussão ao mesmo nível para todos os interlocutores, nem permitem uma abordagem compreensiva da globalidade”[23].
Um terceiro desafio posto à pesquisa educacional consiste em analisar a escola tendo em conta as modalidades educativas não-formais. Ora, se é fato que a escola tem sido deslocada como agência de socialização secundária, se cada vez mais os jovens têm acesso a saberes, que antes eram monopolizados pela escola, em espaços não-formais, então coloca-se como condição sine qua non que se preste uma atenção acrescida às práticas educativas não-formais como requisito para que seja entendido o que se passa na escola. De resto, “nas últimas décadas, a prática e a investigação educativas vieram a proceder à reabilitação de modalidades educativas não-escolares (no campo da animação e da formação de adultos), tornando possível um olhar crítico mais fundamentado e mais relativizado sobre a forma escolar”[24].
Tratar devidamente da relação entre educação e contextos locais constitui um quarto desafio, dos mais instigantes, à investigação educacional. Se é verdade que a constituição do Estado-nação, da unidade nacional, nos mais diversos países, se fez à custa de uma homogeneização que pressupôs o enquadramento das comunidades locais e suas culturas, por outro lado, é fato que, a partir das últimas décadas do século passado, emerge um movimento de valorização do local como esfera pertinente, por exemplo, para realizar a gestão da questão social. Para além de se constatar que as macro-ações estandardizadas do Estado-nação negligenciam especificidades das comunidades - pelo que a sua intervenção revela-se ineficiente -, com o fenômeno da globalização, no dizer de Daniel Bell[25], verifica-se que o Estado se torna demasiado pequeno para resolver os grandes problemas da vida e, ao mesmo tempo, imensamente extensivo para lidar com as particularidades cotidianas. Neste contexto, o local passa a ser uma escala recorrente para a gestão sistêmica. Daí, dentre outros desdobramentos, tem-se: 1) a tendência de agencialização da ação comunitária; 2)  a tentativa de conjugar a questão da cidadania com a desresponsabilização do Estado e a hiper-responsabilização dos indivíduos; 3) a inclinação para conceber a contribuição da educação para o desenvolvimento pensando-a de maneira unicamente instrumental e definindo o desenvolvimento referenciado apenas na perspectiva da qualificação de recursos humanos, pondo de parte as questões da relação social e da sociabilidade.
De resto, está em causa a própria concepção de contextos locais. Não me é o lugar, aqui, para tratar desta questão com a abordagem acurada que ela requer, mas cabe deixar apontada a impropriedade que é entender os contextos locais como atomização geográfica, encadeando o enclausuramento regionalista. Ora, localidades tendem a se converter em holografias do planeta, ao passo que emergem comunidades no mundo globalizado. Como bem assinala Augusto de Franco, à medida que florescem comunidades globalizadas, globalização do local tende a ser igual à localização do global. E um mundo totalmente globalizado passa a ser um mundo totalmente localizado[26].    
Last but not least, o quinto desafio: a crise da escola lança um repto em relação aos estudos concernentes à formação de professores, no sentido de eles captarem os efeitos ocasionados sobre a identidade docente. Isto assim se coloca porque, convém repetir, a identidade profissional não é outorgada, de forma absoluta, pela formação acadêmica. As identidades (inclusive as pessoais) são construídas em processo e resultam de diversas socializações. No caso da identidade docente, a formação acadêmica é apenas parte do processo, visto que será nos contextos de trabalho (nas escolas) que se vão definir modos de relacionamentos, manuseamento do conhecimento oriundo da formação, surgimento da necessidade de adequação/recomposição de saberes, enfim, práticas que dizem quem são o professor, o seu perfil. Em suma, na escola, constrói-se a identidade docente.
Assim sendo, afigura-se como pertinente que a pesquisa educacional procure compreender como os fenômenos decorrentes da crise da escola se têm relacionado à ação do professor e como, desta forma, eles repercutem no processo de construção da sua identidade nos contextos de trabalho. Trata-se de uma perspectiva que, no limite, poderá dizer se a profissão docente está sendo construída sob o registro do professor-ator, que procura exercer um poder que lhe é delegado, ou se ela afilia-se a um agir onde o professor é um autor, que se credencia de per si, isto é, por sua obra.   






[1] -  Uma primeira versão deste ensaio serviu de texto-base para uma conferência que pronunciei como Aula Inaugural no Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)/João Pessoa. Do frutífero debate decorrente com pesquisadores do Programa e pós-graduandos, surgiram muitas contribuições, as quais, mediadas analiticamente por mim, foram incorporadas à versão atual do texto.   

[2] -  Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus do Litoral Norte/Departamento de Educação; Professor do Programa de Pós-graduação em Educação (POSEDUC) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); Pesquisador-Bolsista EXP C do CNPq.


[3] KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 10.

[4] -  A esse respeito, no caso português, é paradigmática a reforma do Marquês de Pombal, que, ao contestar o poder da Igreja sobre as práticas educativas, expulsou os jesuítas do então Brasil colonial (1759).

[5] - In LELIÉVRE, C. (1999). Jules Ferry: La République éducatrice. Paris: Hachete, 1999, p. 56. Ver também BARRÈRE, A.  e  SEMBEL, N. Sociologie de l’éducation. Paris: Nathan, 1998. 

  
[6] -  A propósito, ver CANÁRIO, R. O que é a escola? Um “olhar” sociológico. Porto: Porto Editora, 2005.

[7] - VICENT, G. L’éducation prisionnière de la forme scolaire? Scolarisation et socialisation dans les soiétés industrielles. Lyon: Paul, 1994, p. 17-18. 
 
[8] -   Ver ARDOINO, J. Éducation et politique. Paris: Anthropos, 1999. 

[9] -  CANÁRIO, R., op. cit., p. 63.
[10] -  Cf. NÓVOA, António. “O espaço público da educação: Imagens, narrativas e dilemas”. In: Vários, Espaços de educação. Tempos de formação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2001, p. 237-286.

[11] - Ver CHARLOT, B. L´école en mutation. Crise de l ´école et mutations sociales. Paris: Payot, 1987; CHARLOT, B. “L´école est-elle em crise?”. In: Pour, Paris: nº 165, 2000, p. 167-171.  

[12] -  CANÁRIO, R., op.  cit., p. 61. 

[13] -   Ver  LEVY, P. Cibercultura. São Paulo: 34, 1999. 

[14] -  A propósito, ver  SIROTA, Régine. “Le métier élève: Approaches sociologiques. In: Revue Française de Pédagogie, Paris:  nº 121, 1988. 

[15] -  CORREIA, J. A. Para uma teoria crítica em educação. Porto: Porto Editora, 1998.

[16] - CANÁRIO, R., op. cit., p. 68.

[17] - A esse respeito, ver Harvey, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

[18] -  Procurei fazer isso no livro Educação, formação, trabalho e políticas educativas (Porto: Profedições, 2007).

[19] -  Ver  GURVITCH, George. Traité de sociologie. Paris: PUF, 1962.

[20] -  Quer dizer, pagando-se tributo a Sartre, é de se assinlar que a totalização corresponde à concepção do todo como algo aberto e intensamente dinâmico. De acordo com este entendimento, há de submeter os resultados obtidos pelas ciências particulares a dois crivos de avaliação: Por um lado, ao princípio da totalidade, através do qual se procura relacionar dialeicamente os objetos elaborados por uma determianda ciência particular com a totalidade social, mediatizando e desfetichizando tais objetos, fazendo com que eles deixem de ser meros “fatos” e se convertam em processos; por outro lado, ao crivo da historicidade, superando a pseudoconcreticidade com que os objetos analsiados se apresentam, tornando-os então estados transitórios de um permanente devir. Cf. SARTRE, Jen Paul. Critique de la Raison Dialetique. Paris: Gallimard, 1960. Ver também  LUKÁCS, Georgy. The ontology of social being. London: Merlin Press, 1980. 

[21]Cf. MORIN, Edgar. La métode. La nature de la nature. Paris: Seuil, 1977.

[22] -  BORDIEU, P. Lição sobre a lição. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas, 1996, p. 10.   

[23]CANÀRIO, R. op. cit, p. 63.

[24] -  Ibidem, p. 69. 

[25] - BELL, Daniel. The coming of post-industrial society: A venture in social forecasting. New York: Basic books, 1999.  
[26] - FRANCO, Augusto. A revolução do local: Globalização, glocalização, localização.  Brasília: AED; São Paulo: Cultura, 2004.