O luso Vergílio Ferreira é um autor de muitas faces. Na sua perspectiva de existencialismo, questiona a condição existencial do ser humano envolvido em suas tragédias, nas decisões tomadas, na busca de opções, consubstanciando uma inexorável solidão. Mas, vamos ao terreno do conto. Aí ele praticamente estiola o modelo tradicional de conto, atribuindo-lhe um lirismo refinadíssimo. É o que vemos, por exemplo, no conto Adeus, que a seguir reproduzo.
Não lhe pedi que viesse. Pedi-lhe só que às
dez da noite, e pela última vez, a sua lembrança me esperasse ao caminho.
Cheguei cedo e sentei-me. Quando soasse a hora, eu queria senti-la ao pé de
mim, não bem no seu corpo, não bem nas suas palavras, mas apenas naquele
sossego harmonioso que tornava o mundo perfeito. No momento combinado, eu havia
de respirar o sonho de quando não sabia que era sonho.
Tudo isto está errado. Vejo-lhe daqui o erro fechado e exacto
como um cubo de pedra. Mas sei que lá dentro não há erros para fora. Por isso,
espero. Não lhe pedira que viesse. Também não tinha pedido a lua, e a lua veio,
precisamente, quando pensei que era bom haver lua. Não fiquei pois
surpreendido, quando, à hora marcada, no caminho que vai à fonte, Marta
apareceu tão leve como a sua lembrança. Percebi então que as mimosas rescendiam
através da noite sem medos. E que havia em roda pinheiros e veios de água e que
eu estava ali no meio de tudo.
Agora, mais perto de mim, ela trazia já um cântaro no braço.
Mas não parara na fonte e subira o carreiro até onde, do fundo de sua casa,
devia despedir-se para sempre do meu destino. Quando saiu da sombra e me viu,
parou. A lua vestia-a de noivado, a cauda do véu estendia-se por toda a terra
que tínhamos pisado juntos. Assim queda, em pé diante de mim, eu sentia-a
verdadeira como tudo o que era verdade à nossa volta.
- Paulo!
O caminho da serra corre ali aos nossos pés. Olho a sua
mancha branca, direita por entre os pinhais, até ao alto de uma colina. Depois
é tudo a vaguidão da noite, não o escuro de passos audazes, nem a lucidez
bastante dos passos exactos, mas apenas uma luz velada, boa para todos os
caminhos de quem não escuta as razões do caminhar.
Então ela pousou o cântaro e o restolho rangeu quando se
sentou. Eu tinha a certeza de que ela iria falar de qualquer coisa misteriosa e
longínqua, qualquer coisa já morta, mas onde pudéssemos, dali donde estávamos,
ver-nos ainda vivos, sem pensarmos no depois do que agora podíamos pensar.
Tinha a certeza de que ela me levaria para um presente sem memória do passado
nem receio de um passado no futuro. Eu estava ali de mãos abertas e olhos
dóceis, encostado a um tronco de pinheiro. Então ela contou dos patos que
criara nessa primavera, das manhãs altas de sol, do pão que vira semear. E eu
gostei, naquela hora harmoniosa, de que ela falasse nos patos, no pão e nas
manhãs.
Agora todo o campo e toda a serra abriam num místico perfume
a lua e a criação. Não fugíamos propriamente à dor do momento; apenas
escavávamos com os dedos o chão da nossa angústia, para tocarmos o vento que o
cobrira. Depois ficámos de novo em silêncio. Tínhamos mil coisas a dizer, mas
todas elas nos ficavam tão perto que podiam estrangular-nos se quisessem. Era
conveniente dizer delas não o corpo rigoroso de unhas e dentes, não os pés de
botas cardadas, mas apenas o bafo ligeiro ou os olhos que à distância não
fossem senão olhos de olhar. Por isso ela me perguntou, quase assustada, quase
supersticiosa de turvar os rios e lagos de lua, coalhados a nossos pés:
- Paulo! Porque escolheste esta vida?
A aldeia estava ao fundo, quieta, sem respirar, os cães
uivavam das eiras para o céu. Ao longe, na serra em frente, um comboio silvou pela
noite fora. Ouvia-se perfeitamente o martelar das ferragens e o apito. E eu
pensei: «Vai chover. Amanhã ou depois chove. Quando se ouve o comboio, chove
sempre.»
- Porque escolheste esta vida?
Agora a pergunta era tão clara que eu não achei uma sombra para
me esconder. De outras vezes, outra gente me perguntara o mesmo. E nunca soube
responder. Falavam-me de fora, de outro mundo, com uma linguagem diferente. E
assim, as nossas ideias jogavam à cabra-cega. Eu próprio, quando queria
entender-me, espreitando-me donde me não suspeitasse, não tinha razões talhadas
à medida do meu sonho. Os princípios do senso, da justiça, talvez tivessem
envelhecido e não pudessem acompanhar o meu anseio. Só metido dentro de mim eu
me compreendo todo e sem razões. Hei-de um dia tombar e arrefecer. Talvez então
seja possível a outros ler em rigor o que se imobilizou da minha agitação. Até
lá, é difícil. Qualquer coisa me está sempre forçando os limites, mesmo da
regra que julgo dar-me. Um vento largo ergueu-se não sei donde e arrebatou-me.
Lembra-me bem como tudo aconteceu. Mas quando no que eu fui, nada me parece que
tenha acontecido nada de extraordinário. É como se eu tivesse já nascido para
isso. Meu pai às vezes dizia: «hoje vou ter sorte»; ou: «hoje vai-me acontecer
uma desgraça». O mais difícil era convencer-se de que seria assim. Porque
depois, durante o dia, só tinha de andar atento para achar a sorte ou a
desgraça que profetizara. Mas nunca fui capaz de entender que arranjos da vida
o faziam acreditar assim nos anúncios do seu destino. Havia sol ou chuva no
céu, nem sempre o comer estava pronto a horas, às vezes o filho mais novo
chorava sem razões adultas, ou qualquer coisa parecida. Mas é difícil pensar
que factos desses decidissem das certezas de meu pai.
- Como explicar-te porque parti?
Tenho pés para andar e olhos para ver. Posso sentar-me ou
posso fechar os olhos e dizer que não há sol nem estradas. Mas eu sei que há
estradas e sol e os olhos vêem e os pés andam. Por mais que eu queira, quando
sei por dentro que uma coisa está certa, eu tenho de saber que está certa. E
ainda que os outros saibam que está errada, isso não me ajuda.
- Não me ajuda nada, Marta.
Mas como convencê-la? As razões são tanto o que somos, que só
nascendo outra vez as poderemos renegar. Talvez Marta o acreditasse em fim,
porque, sentada, enlaçou as mãos à frente dos joelhos unidos e se calou de vez.
Já não tínhamos que dizer, mas o eco das nossas vozes e o vapor quente da nossa
presença imobilizavam-nos a vontade. Um fluido estranho dissolvia-nos, e não
era fácil assim acharmos o que nos tornava distintos. A lua vogava agora pela
água alta do céu. Marta foi a primeira a erguer-se. Então eu ergui-me também e
apertei-lhe as mãos devagar:
- Adeus!
Caminhei pela vereda branca, lavado numa pureza desconhecida,
anterior à minha humanidade, e onde, no entanto, eu me sentia todo inteiro.
Quando cheguei ao topo da colina, olhei ainda atrás a ausência de Marta. Mas
lentamente, surpreso e todavia calmo, fui descobrindo Marta em pessoa, em pé,
no meio do caminho, vestida de lua, esperando decerto como eu que toda a serra
e toda a aldeia e tudo o que nos fora prometido ficasse enfim tão diferente
como quando ainda não tínhamos nascido.
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Extraído de FERREIRA, Vergílio. Contos. 4 ed. Lisboa: Bertand, 1991.
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