terça-feira, 17 de setembro de 2013

'Tudo que é sólido desmancha no ar'

A propósito da recente morte de Marshall Berman, autor do clássico Tudo que é sólido desmancha no ar, reproduzo a seguir um extrato preambular seu dessa obra. Não deixa de ser intrigante que  ele termine a falar da morte, em decorrência da perda do seu pequeno filho Marc, de cinco anos, a quem dedicou o livro. Manter essa vida, disse, "exige esforços desesperados e heróicos, e às vezes perdemos". Berman foi considerado, por alguns, como "um homem triste, mas de grande energia".  Ao contrário de determinadas percepções, não considerava que a solidão era uma inimiga. Lecionava na Universidade da Cidade de Nova Iorque. 


(...)
Durante a maior parte da minha vida, desde que me ensinaram que eu vivia num “edifício moderno” e crescia no seio de uma “família moderna”, no Bronx de trinta anos atrás, tenho sido fascinado pelos sentidos possíveis da modernidade. Neste livro, tentei descortinar algumas das dimensões de sentido, tentei explorar e mapear as aventuras e horrores, as ambigüidades e ironias da vida moderna. O livro progride e se desenvolve através de vários caminhos de leitura: leitura de textos — o Fausto de Goethe, o Manifesto do Partido Comunista, as Notas do Subterrâneo, e muitos mais; mas tentei também ler ambientes espaciais e sociais — pequenas cidades, grandes empreendimentos da construção civil, represas e usinas de força, o Palácio de Cristal de Joseph Paxton, os bulevares parisienses de Haussmann, os projetos de Petersburgo, as rodovias de Robert Moses através de Nova Iorque; e por fim tentei ler a vida das pessoas, a vida real e ficcional, desde o tempo de Goethe, depois de Marx e Baudelaire, até o nosso tempo. Tentei mostrar como essas pessoas partilham e como esses livros e ambientes expressam algumas preocupações especificamente modernas. São todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança — de autotransformação e de transformação do mundo em redor — e pelo terror da desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual “tudo o que é sólido desmancha no ar”.
Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e freqüentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz. Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski até o nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis. Não surpreende, pois, como afirmou Kierkegaard, esse grande modernista e antimodernista, que a mais profunda seriedade moderna deva expressar-se através da ironia. A ironia moderna se insinua em muitas das grandes obras de arte e pensamento do século passado; ao mesmo tempo ela se dissemina por milhões de pessoas comuns, em suas existências cotidianas. Este livro pretende juntar essas obras e essas vidas, restaurar o vigor espiritual da cultura modernista para o homem e a mulher do dia-a-dia; pretende mostrar como, para todos nós, modernismo é realismo. Isso não resolverá as contradições que impregnam a vida moderna, mas auxiliará a compreendê-las, para que possamos ser claros e honestos ao avaliar e enfrentar as forças que nos fazem ser o que somos.
Logo depois de terminado este livro, meu filho bem-amado, Marc, de cinco anos, foi tirado de mim. A ele eu dedico Tudo o que é sólido desmancha no ar. Sua vida e sua morte trazem muitas das idéias e temas do livro para bem perto: no mundo moderno, aqueles que são mais felizes na tranqüilidade doméstica, como ele era, talvez sejam os mais vulneráveis aos demônios que assediam esse mundo; a rotina diária dos parques e bicicletas, das compras, do comer e limpar-se, dos abraços e beijos costumeiros, talvez não seja apenas infinitamente bela e festiva, mas também infinitamente frágil e precária; manter essa vida exige talvez esforços desesperados e heróicos, e às vezes perdemos. Ivan Karamazov diz que, acima de tudo o mais, a morte de uma criança lhe dá ganas de devolver ao universo o seu bilhete de entrada. Mas ele não o faz. Ele continua a lutar e a amar; ele continua a continuar.
Marshall Berman 
Cidade de Nova Iorque, Janeiro de 1981

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