A Editora Escrituras fez vir a lume, há já algum tempo, uma antologia poética de Casimo Brito, sob o título de Música do Mundo. Ao realizar a apresentação do livro, Maria João Cantinho, ela própria também uma referência no mundo poético português, escreveu: 'a musica do mundo ou o modo como se escuta o sopro cósmico da palavra'. Reproduzo a recensão de Maria João e, assim como ela, recomendo a antologia.
Por Maria João Cantinho
Há alguns anos que leio e acompanho a obra de
Casimiro de Brito, o seu percurso extraordinário, sobretudo no que respeita à
sua carreira internacional. Recebeu alguns dos mais prestigiados prémios
literários, ao longo dos 50 anos da sua carreira.
Cidadão do mundo, universalista de primeira água,
tem uma obra vasta, pautada pela extrema depuração, pela vigilância quase
feroz, suspeitando dos arroubos líricos que lhe chegam de madrugada.
Poderia passar a noite toda a falar de Casimiro e
da sua obra, mas infelizmente cabe-me a apresentação desta pequena antologia de
poesia, publicada no Brasil, pela mão da editora Escrituras.
Esta antologia reúne poemas de várias obras, desde
o início da sua actividade poética, até aos mais recentes textos poéticos.
É-nos permitido, assim, abeirarmo-nos de uma evolução interna e orgânica do seu
trabalho. É difícil retirar um conjunto de características peculiares de uma
obra que condensa tantos anos de labor e de intensa vigilância poética.
Comecemos pelo título e pelas suas ressonâncias
místicas, alusivas à mais antiga tradição da linguagem como sopro, respiração.
O primeiro poema, que abre o “espaço literário”, para parafrasear Blanchot, “Da
Palavra”, em Da Arte poética, começa assim:
Silêncio: a palavra
Respira. Corpo deitado
No mar. Silêncio de fogo
E música.
A escuta como acto privilegiado. A escuta da
respiração da palavra e da matéria muda. Só o silêncio permite a abertura, a
fissura que dá a ver a luz íntima de cada coisa, dos ossos, da terra, do mar,
do corpo da mulher amada. Casimiro de Brito, neste poema, anuncia o seu
programa, procurar a clareira onde, finalmente, essa “pausa de sol” que é a
palavra, incide sobre a mudez das coisas resgatando-a. Acto de fidelidade
amorosa que se anuncia nesse acto de escuta sagrada. Que se escuta?
Não, não é o silêncio que se escuta, como
poderíamos ser levados a pensar. Mas sim essa “Música do mundo” que ecoa, o
cósmico sopro que arrebata tudo, que arrasta o mundo, n sua incandescente
metamorfose. O poeta entrega-se ao desejo imoderado das coisas, tenta alcançar
a musicalidade que vibra no coração do mundo, desde a mais ínfima criatura ao
mais elevado ser. Mergulha no desvario dos sentidos, perde-se no amor (p. 82),
reencontra-se ao rés do chão, onde se demora, como quando se deita sobre a
areia, para aceder à mais humilde condição: a da escuta. A escuta do mais
secreto rumor, do vento nos canaviais, dos pássaros que anunciam a luz
inigualável da manhã.
Longe do ruído e da fala, o poema, como um corpo
esplendoroso, nasce do silêncio e do sonho, desse trilho onírico que o homem
percorre, cavalgando desabridamente no dorso selvagem da linguagem, na procura
da voz genuína, nascida do segredo. Sabe que nada lhe está prometido senão o
fulgor derradeiro do instante, a luz crepuscular do amor e da paixão, mas vive
na epiderme do mais efémero acontecimento. Lugar de sombra, o poeta vive
confinado ao umbral que separa a vida do sonho, a vida da morte, procurando
levar a cabo o milagre da passagem ou do resgate possível. Por isso, ele nega a
morte, a morte física e irremediável (p. 27):
Interrogai as pedras de quem sois
O mais puro reflexo a mais funda
Negação da morte.
Nega-se a morte porque para a morte não há lugar ou
poema que lhe convenha. Para a morte, só a alquimia da linguagem, a pura
transfiguração do corpo, do sangue e dos ossos em lenho da palavra, a
transforma, elevando o profano à condição de sagrado. De, resto, essa concepção
panteísta atravessa toda a obra do autor, numa imanência que recobre tudo. O
tempo vazio, profano, quotidiano, dá lugar a uma outra dimensão da
temporalidade, a do instante durável, que se expande infinitamente, no lugar do
poema. Aí, a mais íntima relação que a música pode entretecer: a da palavra com
o tempo. E dessa entretecedura nasce precisamente o canto poético. Imerso no
fluxo desse canto único e irrepetível, ele sabe que é na música onde mais
suavemente resplandece a unidade ( e disso bem o sabiam os pitagóricos e os
antigos), pois ela é o resultado de uma harmonia, composta pelos instantes
fugazes. Esta unidade da música, ela própria efémera na sua natureza, é uma
unidade de criação, atravessada pelo sonho. Com os sons dispersos e
passageiros, tão voláteis quanto o vento que passa, constrói-se a organicidade
do poema. O poeta, como o músico, dança com a metamorfose, capta o mais volátil
instante, percorre o íntimo voo do tempo, tanto quanto humanamente lhe é
possível. Esse tempo é o tempo nascente, que brota sem figura nem aviso, que
não alberga nenhum acontecimento, mas que é um tempo único, nascente em sua
pureza, inaugural e límpido.
Gostaria apenas de vos deixar com este belo poema:
Eu caio, eu morro em cada verso
E depois levanto-me como se fosse
Um filho do ar e das nuvens. E parto
com elas
Até cair de novo. No corpo em que sofro
Por dentro e aterrado. Duros sãos os
prados
Onde se escuram os meus cuidados.
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