sábado, 28 de setembro de 2013

Cultura científica

A interação com a realidade tendo por base o conhecimento sistemático, não é algo frequente. Nem mesmo em que era suposto ser. Deficit de cultura científica. E aí está um terreno fértil para a disseminação dos preconceitos/discriminação. É contra isso que se tem voltado o Professor espanhol Miguel Ángel Quintanilla, ao propor a disseminação da cultura científica junto aos cidadãos em geral. Confira, abaixo, a entrevista realizada com ele pela Agência FAPESP, mediante a condução do jornalista Samuel Antenor. 

Fotomontagem alusiva ao acesso aberto aos conhecimentos da insituição

Agência FAPESP – A apropriação cidadã da cultura científica envolve o trabalho de vários agentes, como professores, pesquisadores e jornalistas, na difusão de temas de ciência e tecnologia (C&T). Apesar de as notícias do setor não serem tão populares nos meios de comunicação como as de esportes, por exemplo, os dispositivos tecnológicos e as campanhas emblemáticas ajudarão a aumentar essa popularidade.
Isso é o que afirma o professor espanhol Miguel Ángel Quintanilla, diretor do Instituto de Estudos de Ciência e Tecnologia (eCyT, na sigla em espanhol) da Universidade de Salamanca (Usal) e da Fundação Centro de Estudos de Ciência, Cultura Científica e Inovação (3CIN).
Catedrático em Lógica e Filosofia da Ciência na Usal e professor honoris causa pela Universidade de Valparaíso (Chile), Quintanilla foi secretário de Estado de Universidades e de Pesquisa, entre 2006 e 2008, e é um dos organizadores da Empirika, Feira Ibero-americana da Ciência, Tecnologia e Inovação, evento internacional, bienal e itinerante inaugurado em 2010 na Espanha e que foi realizado em 2012 em São Paulo e Campinas.  
Com larga experiência na articulação de atividades interdisciplinares e interinstitucionais, trabalhando com pesquisa e difusão de temas situados na intersecção entre filosofia, ciência e tecnologia, ele falou com exclusividade para a Agência FAPESP sobre seus estudos em cultura científica, sobre a crise no sistema de C&T na Espanha e as perspectivas para pesquisas conjuntas com universidades paulistas.
Quintanilla aponta que as pesquisas em parceria com instituições de outros países podem ser uma saída para a crise de financiamento pela qual passa o sistema de ciência e tecnologia europeu.
Agência FAPESP – Suas linhas de pesquisa envolvem filosofia, estudos sociais da ciência, comunicação pública da C&T e cultura científica. Nesta área, especificamente, o senhor propõe a criação de um centro de estudos na Universidade de Salamanca voltado também para a profissionalização da difusão da cultura científica. Como seria esse centro e qual seria seu objeto de estudo? 

Miguel Ángel Quintanilla – A cultura científica nada mais é do que a inserção, cada vez maior, da ciência, da tecnologia e das inovações nos mais diferentes âmbitos do nosso cotidiano. E mesmo a difusão da cultura científica como profissão já está presente. O que precisamos é unificar as ações desses diferentes agentes, pois há diversos tipos de difusão. Há, por exemplo, a dos professores, feita ainda na escola primária ou secundária. Os jornalistas que atuam na cobertura da ciência são especializados na divulgação de temas científicos e os próprios cientistas também são escritores científicos. O que queremos potencializar é um enfoque diferente. É um tipo de profissional muito importante, mas poucas universidades ou centros de pesquisa têm escritórios especializados em cultura científica. É uma das muitas fronteiras que necessitamos ultrapassar.

Agência FAPESP – Sua sugestão seria a de unificar as ações de difusão, feitas originalmente por diferentes tipos de divulgadores científicos? 

Quintanilla – Mais do que unificar, é fazer junto. O que está claro é que a difusão da cultura científica se faz de diversas formas e em muitos níveis, pois há muita gente envolvida nessa profissão, com ações distintas, mas que compartilham uma mesma visão sobre a importância de difundir a cultura científica. Sobre a clássica pergunta, se um profissional da cultura científica deve ser um cientista especializado em jornalismo ou um jornalista especializado em ciência, posso responder, pela minha experiência, que tanto faz. Eu não poderia definir um único perfil de expert da cultura científica, salvo no sentido de que o profissional deve ter formação e capacidade para entender a cultura científica e uma visão de como fazer a cultura científica, que eu chamo de cívica.

Agência FAPESP – Como fazer para que a apropriação social da ciência – no sentido de alargamento da participação cidadã nas questões de C&T – se transforme em um processo efetivo na sociedade, a partir da difusão? 

Quintanilla – O objetivo é a apropriação por parte dos cidadãos. Falo de cidadãos, porque são pessoas que devem se apropriar da cultura científica, e não uma sociedade abstrata. Para isso, não há receitas mágicas. Creio que uma linha fundamental é a da educação cívica, obrigatória, básica, geral, para toda a população, que incorpore de forma muito mais ativa a cultura científica como parte da educação formal. E não apenas em áreas como matemática, física ou química, mas de forma muito mais transversal, que abarque todos os níveis e aspectos da educação. Penso que a educação precisa estar muito mais centrada em um esforço para a cultura científica por parte dos cidadãos.

Agência FAPESP – E como isso seria possível? 

Quintanilla – Isso requer uma reforma educacional, e há iniciativas nesse sentido. Passa pela educação formal, mas é necessário fazer de uma maneira transversal, envolvendo todos os níveis. É preciso normalizar a presença da cultura científica com todos os níveis de exigência nos meios de comunicação, tradicionais ou novos. Precisamos assumir ativamente a responsabilidade de fazer com que a informação científica nos meios de comunicação, jornais, televisão, internet seja tão frequente quanto é a cultura esportiva. Porém, ainda estamos muito longe de uma realidade como essa. Estamos longe, mas vamos avançar.

Agência FAPESP – Como conciliar diferentes pontos de vista para uma apropriação social da ciência? 

Quintanilla – Tentando construir um modelo de cultura científica cidadã, para que os demais atores envolvidos entendam qual é o núcleo fundamental de sua tarefa. Esta é a perspectiva da cultura científica. Ela ajuda a capacitar os cidadãos para os mecanismos de ciência e tecnologia, de forma a fazer com que possam tomar decisões sobre questões de interesse público envolvendo ciência e tecnologia ou que delas dependam.

Agência FAPESP – E isso independentemente de serem cientistas. 

Quintanilla – Exatamente, propondo-se responsáveis por isso. Ainda que não sejam cientistas, é preciso que estejam capacitados para dialogar com cientistas, enquanto os cientistas devem estar capacitados para conversar com todos os cidadãos. O importante é que os cidadãos que não trabalhem com ciência entendam como funciona o processo de produção da ciência, e os cientistas precisam ter em conta que, desse modo, todos os cidadãos vão valorizar o esforço para aumentar o conhecimento por parte de quem faz as pesquisas. Funciona como uma engrenagem e que se autoalimenta.

Agência FAPESP – Então a divulgação científica e a participação cidadã interferem nesse processo de produção da ciência? 

Quintanilla – Os cidadãos influenciam na produção da ciência. A questão é se isso é feito de maneira consciente, com informações e instrumentos adequados, com objetivos predefinidos e racionais, ou de forma cega, por meio de simples mecanismos de mercado ou de procedimentos gerais de participação política indireta e de voto de diferentes programas eleitorais dos partidos políticos. 

Agência FAPESP – O senhor tem mencionado a intenção de criar um programa de estudos científicos na Universidade de Salamanca. O que seria e como funcionaria esse programa? 

Quintanilla – Trata-se de um curso para professores. Poderíamos chamá-lo de “Ciência para Cidadãos”.  O programa estará aberto a todos e terá um caráter disciplinar. Seria fantástico se, em breve, pudéssemos adaptá-lo para oferecê-lo também em uma versão em português.

Agência FAPESP – Esses investimentos estão sendo afetados pela atual crise na Espanha? 

Quintanilla – A crise econômica não abarca apenas a Espanha, mas todo o conjunto de países europeus, de forma mais acentuada em alguns, como no caso espanhol. Evidentemente, a crise também não atinge apenas o financiamento às pesquisas, mas nessa área se sente com mais rigor o corte de verbas, pois diminuíram substancialmente as subvenções públicas para as atividades e instituições científicas. Particularmente, creio que o sistema possa aguentar por algum tempo essa situação, que afeta todos os setores na Espanha, mas o sistema espanhol de ciência e tecnologia é robusto o suficiente para se reerguer, caso a crise seja controlada e debelada rápido. O que não sabemos é quanto tempo essa crise vai durar e por quanto tempo o sistema será afetado pela falta de verbas.

Agência FAPESP – A FAPESP realizou em dezembro de 2012 o simpósio Fronteras de la Ciencia, na Espanha, no qual foram discutidos diferentes aspectos sobre a produção científica dos dois países. Como o senhor vê a possibilidade de intercâmbio entre pesquisadores brasileiros e espanhóis e que resultados isso pode trazer para o desenvolvimento da ciência produzida no Brasil e na Espanha? 

Quintanilla – Na Espanha, ficamos muito impressionados com o dinamismo e com a força do sistema científico do Brasil, especialmente das instituições de ensino e pesquisa localizadas no Estado de São Paulo. A oportunidade de desenvolvermos projetos conjuntos e de estreitarmos nossos laços para uma maior colaboração científica é muito importante para nós. Além disso, temos já experiências prévias muito satisfatórias. No caso específico do Instituto de Estudos da Ciência e da Tecnologia e da Fundação 3CIN, alimentamos grandes expectativas de que possamos concretizar, já nos próximos meses, vários programas de colaboração. Isso, tanto no campo da pesquisa como da divulgação de ciência e da tecnologia. 
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sábado, 21 de setembro de 2013

'O menino que escrevia versos'

O escritor moçambicano Mia Couto, também professor da Universidade Eduardo Mondlane, já referido mais de uma vez aqui, tem, reconheça-se, introduzido inovações na língua de Camões. Com um estilo característico que passa pelo conto, pela crônica e pelo romance, distingue-se como uma novidade no mundo literário de expressão portuguesa. O que pode ser observado no conto que a seguir transcrevo. Ao ser indagado, pelo médico, se lhe doía alguma coisa, o 'menino que escrevia versos' não teve mãos a medir, e retorquiu: 'dói-me a vida'. 


Mia Couto: o conto do 'menino que escrevia versos' 

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
 
— Ele escreve versos! 
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe, doutor? 
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol. Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas  confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe  espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, por quê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida
 — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo...
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Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Foi jornalista e atualmente é professor e biólogo. É sócio correspondente, eleito em 1998, da Academia Brasileira de Letras, sendo sexto ocupante da cadeira 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa. Como biólogo, dirige a Avaliações de Impacto Ambiental, IMPACTO Lda., empresa que faz estudos de impacto ambiental, em Moçambique. Mia Couto tem realizado pesquisas em diversas áreas, concentrando-se na gestão de zonas costeiras. Além disso, é professor da cadeira de ecologia em diversos cursos da Universidade Eduardo Mondlane (UEM).


terça-feira, 17 de setembro de 2013

'Tudo que é sólido desmancha no ar'

A propósito da recente morte de Marshall Berman, autor do clássico Tudo que é sólido desmancha no ar, reproduzo a seguir um extrato preambular seu dessa obra. Não deixa de ser intrigante que  ele termine a falar da morte, em decorrência da perda do seu pequeno filho Marc, de cinco anos, a quem dedicou o livro. Manter essa vida, disse, "exige esforços desesperados e heróicos, e às vezes perdemos". Berman foi considerado, por alguns, como "um homem triste, mas de grande energia".  Ao contrário de determinadas percepções, não considerava que a solidão era uma inimiga. Lecionava na Universidade da Cidade de Nova Iorque. 


(...)
Durante a maior parte da minha vida, desde que me ensinaram que eu vivia num “edifício moderno” e crescia no seio de uma “família moderna”, no Bronx de trinta anos atrás, tenho sido fascinado pelos sentidos possíveis da modernidade. Neste livro, tentei descortinar algumas das dimensões de sentido, tentei explorar e mapear as aventuras e horrores, as ambigüidades e ironias da vida moderna. O livro progride e se desenvolve através de vários caminhos de leitura: leitura de textos — o Fausto de Goethe, o Manifesto do Partido Comunista, as Notas do Subterrâneo, e muitos mais; mas tentei também ler ambientes espaciais e sociais — pequenas cidades, grandes empreendimentos da construção civil, represas e usinas de força, o Palácio de Cristal de Joseph Paxton, os bulevares parisienses de Haussmann, os projetos de Petersburgo, as rodovias de Robert Moses através de Nova Iorque; e por fim tentei ler a vida das pessoas, a vida real e ficcional, desde o tempo de Goethe, depois de Marx e Baudelaire, até o nosso tempo. Tentei mostrar como essas pessoas partilham e como esses livros e ambientes expressam algumas preocupações especificamente modernas. São todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança — de autotransformação e de transformação do mundo em redor — e pelo terror da desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual “tudo o que é sólido desmancha no ar”.
Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e freqüentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz. Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski até o nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis. Não surpreende, pois, como afirmou Kierkegaard, esse grande modernista e antimodernista, que a mais profunda seriedade moderna deva expressar-se através da ironia. A ironia moderna se insinua em muitas das grandes obras de arte e pensamento do século passado; ao mesmo tempo ela se dissemina por milhões de pessoas comuns, em suas existências cotidianas. Este livro pretende juntar essas obras e essas vidas, restaurar o vigor espiritual da cultura modernista para o homem e a mulher do dia-a-dia; pretende mostrar como, para todos nós, modernismo é realismo. Isso não resolverá as contradições que impregnam a vida moderna, mas auxiliará a compreendê-las, para que possamos ser claros e honestos ao avaliar e enfrentar as forças que nos fazem ser o que somos.
Logo depois de terminado este livro, meu filho bem-amado, Marc, de cinco anos, foi tirado de mim. A ele eu dedico Tudo o que é sólido desmancha no ar. Sua vida e sua morte trazem muitas das idéias e temas do livro para bem perto: no mundo moderno, aqueles que são mais felizes na tranqüilidade doméstica, como ele era, talvez sejam os mais vulneráveis aos demônios que assediam esse mundo; a rotina diária dos parques e bicicletas, das compras, do comer e limpar-se, dos abraços e beijos costumeiros, talvez não seja apenas infinitamente bela e festiva, mas também infinitamente frágil e precária; manter essa vida exige talvez esforços desesperados e heróicos, e às vezes perdemos. Ivan Karamazov diz que, acima de tudo o mais, a morte de uma criança lhe dá ganas de devolver ao universo o seu bilhete de entrada. Mas ele não o faz. Ele continua a lutar e a amar; ele continua a continuar.
Marshall Berman 
Cidade de Nova Iorque, Janeiro de 1981

sábado, 14 de setembro de 2013

'A música do mundo e o sopro cósmico da palavra'

A Editora Escrituras fez vir a lume, há já algum tempo, uma antologia poética de Casimo Brito, sob o título de Música do Mundo. Ao realizar a apresentação do livro, Maria João Cantinho, ela própria também uma referência no mundo poético português, escreveu: 'a musica do mundo ou o modo como se escuta o sopro cósmico da palavra'. Reproduzo a recensão de Maria João e, assim como ela, recomendo a antologia. 


Por Maria João Cantinho
Há alguns anos que leio e acompanho a obra de Casimiro de Brito, o seu percurso extraordinário, sobretudo no que respeita à sua carreira internacional. Recebeu alguns dos mais prestigiados prémios literários, ao longo dos 50 anos da sua carreira.
Cidadão do mundo, universalista de primeira água, tem uma obra vasta, pautada pela extrema depuração, pela vigilância quase feroz, suspeitando dos arroubos líricos que lhe chegam de madrugada.
Poderia passar a noite toda a falar de Casimiro e da sua obra, mas infelizmente cabe-me a apresentação desta pequena antologia de poesia, publicada no Brasil, pela mão da editora Escrituras.
Esta antologia reúne poemas de várias obras, desde o início da sua actividade poética, até aos mais recentes textos poéticos. É-nos permitido, assim, abeirarmo-nos de uma evolução interna e orgânica do seu trabalho. É difícil retirar um conjunto de características peculiares de uma obra que condensa tantos anos de labor e de intensa vigilância poética.
Comecemos pelo título e pelas suas ressonâncias místicas, alusivas à mais antiga tradição da linguagem como sopro, respiração. O primeiro poema, que abre o “espaço literário”, para parafrasear Blanchot, “Da Palavra”, em Da Arte poética, começa assim:

Silêncio: a palavra
Respira. Corpo deitado
No mar. Silêncio de fogo
E música.

A escuta como acto privilegiado. A escuta da respiração da palavra e da matéria muda. Só o silêncio permite a abertura, a fissura que dá a ver a luz íntima de cada coisa, dos ossos, da terra, do mar, do corpo da mulher amada. Casimiro de Brito, neste poema, anuncia o seu programa, procurar a clareira onde, finalmente, essa “pausa de sol” que é a palavra, incide sobre a mudez das coisas resgatando-a. Acto de fidelidade amorosa que se anuncia nesse acto de escuta sagrada. Que se escuta?
Não, não é o silêncio que se escuta, como poderíamos ser levados a pensar. Mas sim essa “Música do mundo” que ecoa, o cósmico sopro que arrebata tudo, que arrasta o mundo, n sua incandescente metamorfose. O poeta entrega-se ao desejo imoderado das coisas, tenta alcançar a musicalidade que vibra no coração do mundo, desde a mais ínfima criatura ao mais elevado ser. Mergulha no desvario dos sentidos, perde-se no amor (p. 82), reencontra-se ao rés do chão, onde se demora, como quando se deita sobre a areia, para aceder à mais humilde condição: a da escuta. A escuta do mais secreto rumor, do vento nos canaviais, dos pássaros que anunciam a luz inigualável da manhã.
Longe do ruído e da fala, o poema, como um corpo esplendoroso, nasce do silêncio e do sonho, desse trilho onírico que o homem percorre, cavalgando desabridamente no dorso selvagem da linguagem, na procura da voz genuína, nascida do segredo. Sabe que nada lhe está prometido senão o fulgor derradeiro do instante, a luz crepuscular do amor e da paixão, mas vive na epiderme do mais efémero acontecimento. Lugar de sombra, o poeta vive confinado ao umbral que separa a vida do sonho, a vida da morte, procurando levar a cabo o milagre da passagem ou do resgate possível. Por isso, ele nega a morte, a morte física e irremediável (p. 27):

Interrogai as pedras de quem sois
O mais puro reflexo a mais funda
Negação da morte.

Nega-se a morte porque para a morte não há lugar ou poema que lhe convenha. Para a morte, só a alquimia da linguagem, a pura transfiguração do corpo, do sangue e dos ossos em lenho da palavra, a transforma, elevando o profano à condição de sagrado. De, resto, essa concepção panteísta atravessa toda a obra do autor, numa imanência que recobre tudo. O tempo vazio, profano, quotidiano, dá lugar a uma outra dimensão da temporalidade, a do instante durável, que se expande infinitamente, no lugar do poema. Aí, a mais íntima relação que a música pode entretecer: a da palavra com o tempo. E dessa entretecedura nasce precisamente o canto poético. Imerso no fluxo desse canto único e irrepetível, ele sabe que é na música onde mais suavemente resplandece a unidade ( e disso bem o sabiam os pitagóricos e os antigos), pois ela é o resultado de uma harmonia, composta pelos instantes fugazes. Esta unidade da música, ela própria efémera na sua natureza, é uma unidade de criação, atravessada pelo sonho. Com os sons dispersos e passageiros, tão voláteis quanto o vento que passa, constrói-se a organicidade do poema. O poeta, como o músico, dança com a metamorfose, capta o mais volátil instante, percorre o íntimo voo do tempo, tanto quanto humanamente lhe é possível. Esse tempo é o tempo nascente, que brota sem figura nem aviso, que não alberga nenhum acontecimento, mas que é um tempo único, nascente em sua pureza, inaugural e límpido.
Gostaria apenas de vos deixar com este belo poema:

Eu caio, eu morro em cada verso
E depois levanto-me como se fosse
Um filho do ar e das nuvens. E parto com elas
Até cair de novo. No corpo em que sofro
Por dentro e aterrado. Duros sãos os prados
Onde se escuram os meus cuidados.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Os três 'eus', a mente e a consciência

Professor da University of Southern California, em Los Angeles, o português António Damásio tornou-se um consagrado pesquisador da neurociência na atualidade. O que se entende por mente? O que é a consciência? E as emoções? As respostas que ele apresenta para questões como estas aliam mais de um campo do conhecimento. De significativo valor, penso, é a sua formulação a respeito dos três 'eus': o proto-eu, correspondente a um padrão de ativação neural que mapeia estados físicos/fisiológicos a cada instante, dando origem a sentimentos primordiais à regulação e manutenção da vida; o eu nuclear, fluxo ininterrupto de imagens (internas e externas ao corpo), configurando uma consciência apenas do 'aqui e agora'; o eu autobiográfico, esfera de configuração da nossa identidade, fazendo-nos 'saber quem somos'. Entendendo que a mente é uma sucessão de representações criada através de sistemas visuais, auditivos, táteis e de informações do próprio corpo sobre o que está a ocorrer com ele, Damásio faz então uma distinção entre emoção e sentimento. A emoção "é um conjunto de todas as respostas motoras que o cérebro faz aparecer no corpo como réplica a algum evento"; já o sentimento é a forma como a mente vai interpretar o movimento desse conjunto de respostas. As implicações das formulações de Damásio para o processo educativo em geral são significativas, apesar de ainda não terem sido exploradas. Abaixo uma entrevista dele, originariamente publicada no jornal lusitano O Público

António Damásio: o neurocientista põe a mão na consciência

Um dos maiores mistérios da natureza está dentro da cabeça de cada um de nós. Como é que o nosso cérebro gera a consciência? Como consegue articular a nossa percepção do mundo com o nosso sentir do mundo e de nós próprios? Como fabrica subjectividade, esse atributo exclusivamente humano da mente consciente?
Há quem diga que o problema de saber como a consciência é construída pelo cérebro humano é demasiado complexo para ser resolvido... pelo cérebro humano.
O neurocientista português António Damásio — um dos mais brilhantes investigadores do mundo na área do cérebro — não concorda: a prova disso é que tem dedicado a sua vida ao estudo das bases biológicas da consciência e do papel das emoções na consciência, na tomada de decisão ou no sentido moral. Todas elas áreas que, até não há muito tempo, eram consideradas totalmente inacessíveis aos métodos da experimentação no laboratório. 
Para António Damásio, coisas à partida tão distantes da ciência “dura” como a música ou as artes são na realidade indissociáveis da problemática das bases neurais da consciência: como explicar de outra forma de onde nos vem essa nossa tão natural capacidade de nos emocionarmos com uma peça de Bach, com uma paisagem — ou com o azul do mar? 
Há muitos anos, António Damásio, hoje com 66 anos, emigrou de Portugal para os EUA — primeiro para o Iowa e mais tarde para a costa oeste, onde hoje dirige com a mulher, Hanna Damásio, o Brain and Creativity Institute, na Universidade da Califórnia do Sul (o nome do instituto é revelador). 
Na sua passagem por Lisboa, no início deste mês, a Pública falou com ele sobre a teoria da consciência que apresenta no seu último livro, recentemente editado em Portugal — e também de como surgiu a sua paixão pelas neurociências, do dia-a-dia do seu trabalho, do seu gosto pela escrita e de muito mais. 
O seu eu autobiográfico, para usarmos uma das suas expressões, conta que foi o historiador Joel Serrão, então seu professor, que lhe disse, um pouco inesperadamente, para se dedicar à neurologia. Nesta entrevista diz aos jovens que, para ser cientista, é preciso saber tolerar a solidão intelectual. Ele, que tem sempre o seu “dueto” com Hanna, explica que as ideias da última obra, O Livro da Consciência (Temas e Debates), levaram dez anos a amadurecer. 

Por que é que se dedicou ao estudo do cérebro? Foi por causa de livros que leu ou houve algum professor que o fez apaixonar-se pelo tema? 

Foi uma combinação de factores. Um prende-se com o meu interesse pelos mecanismos e com a curiosa transição que me fez passar dos mecanismos dos motores — que eram a minha paixão quando tinha dez anos — para os mecanismos da mente. Não faço ideia nenhuma da maneira de como isso aconteceu, mas sei que a certa altura — devia eu ter à volta de 15 anos —, ainda sem pensar de todo no cérebro, fiquei obcecado pelos mecanismos mentais. E achava que, para abordar essas questões — aí a influência foi com certeza literária —, teria de me tornar escritor ou cineasta. Isso fazia sentido, visto que também tinha uma grande paixão pela literatura e pelo cinema. Mas depois, no liceu — em Portugal —, tive como professor um filósofo chamado Joel Serrão. Era um professor magnífico — ensinava História e Filosofia — e eu de vez em quando conversava com ele. Um dia, falei-lhe do que queria fazer e disse-lhe que estava a tentar decidir se ia escolher a via literária ou científica no liceu. Ele ouviu-me e respondeu: “O que tu queres ser é neurologista.” “Ah, disse eu, neurologista. E porquê?" 

"A questão é que vieram daí uma quantidade de textos que ele achou que eu devia ler e, em particular, a recomendação de ler um livro do Egas Moniz. Tudo isto aconteceu, lembro-me muito bem, quando eu tinha 16 anos — e, depois de ter pensado bastante no assunto, decidi que ia para Medicina e que ia ser neurologista. Era a via natural. Foi uma decisão que nunca se alterou. Quando entrei para a faculdade, lembro-me de que as pessoas me diziam: “Não vais nada ser neurologista, vais ser cirurgião plástico.” “Veremos”, respondia eu. E acabei mesmo por me tornar neurologista. Claro que fui ficando cada vez mais contente com a minha escolha, porque de facto correspondia totalmente àquilo que me interessava. 

Como trabalha? Como formula as suas hipóteses? É com base na sua própria investigação, mas também nos resultados dos outros? 

São precisas as duas coisas. Há resultados que são nossos, obtidos no meu laboratório, e há resultados que são de outros e que motivam novas experiências no meu laboratório. Ou que motivam reflexões. É uma interacção extremamente dinâmica. Não há só uma linha de investigação, há muitas, a entrecruzarem-se constantemente. 

Quando tem uma ideia ou uma formulação, discute-as com outros? Ou precisa de se fechar no seu gabinete e de pensar sozinho? 

Geralmente, preciso de ambas as coisas. É raro que haja ideias que não sejam muito rapidamente discutidas com a Hanna [Damásio]. Portanto, logo ali começa um dueto. 

O diálogo com a sua mulher Hanna é essencial. 

Absolutamente. Sobretudo no aspecto experimental, porque eu tenho muito mais capacidade teórica do que experimental e ela tem uma enorme capacidade experimental. Imagina imediatamente as experiências que podem ser feitas, é uma das coisas que gosta imenso de fazer. Portanto, estabelece-se aí imediatamente um diálogo. Também há uma fase de apuramento e, a seguir, organizo uma espécie de workshop, uma série de reuniões de laboratório durante as quais o nosso grupo apresenta as novas ideias para as testar. Eu gosto de convidar as pessoas a fazer o shooting down das ideias — agradavelmente, claro, não de forma agressiva. A colocar perguntas para tentarmos avançar. 

Quais são as coisas de que mais gosta no processo de investigação? E aquelas de que não gosta? 

As coisas de que não gosto... Os tempos mortos. Por exemplo, quando estamos a começar uma nova experiência. Fazemos a primeira e corre bem, mas a segunda já não corre tão bem. Portanto, é preciso fazer uma terceira. A nossa investigação é uma investigação em seres humanos (que podem ser doentes neurológicos ou não). Por isso, não é uma investigação em que se possa dizer aos participantes para estarem lá quando nos convém. As coisas demoram o seu tempo e há um intervalo entre o momento em que a nossa ideia já é sufi cientemente clara para ser testada e o momento em que finalizamos os testes. Esse é o aspecto menos agradável. Aliás, eu costumo dizer aos estudantes mais novos, que pedem para fazer uma rotação pelo nosso instituto, que é muito bom ver como se faz investigação, porque, se pensam que querem ser cientistas, têm de ver se são capazes de tolerar os tempos mortos da ciência. Não é todos os dias que há resultados fantásticos. Nem tudo é muito excitante e há dias e dias em que não acontece nada. É preciso ter paciência e conseguir tolerar a sua própria solidão intelectual. Se isso não é possível, não vale a pena tentar ser cientista. 

E as coisas de que mais gosta? Há alturas em que algo faz clique? 

Há, sim. Aquilo de que mais gosto é de entrever uma possibilidade — quando, no meio de uma discussão, de repente se tem um momento de compreensão (um haha moment) em que se vê a possibilidade de uma interpretação ou se entrevê aquilo que devemos procurar. Isso é um grande prazer. Um outro prazer enorme é ser capaz de escrever uma boa interpretação dos resultados. Gosto de escrever e gosto de conseguir explicar bem o que penso. Não é só obter o resultado e plop! O resultado precisa de ser trabalhado e precisa de ser escrito de forma a que também se torne agradável para o leitor. Não há razão nenhuma para que os artigos científicos sejam escritos de forma maçadora, num mau estilo ou numa língua pouco trabalhada. Devem ser tão bem escritos como as peças literárias. Essa é outra fonte de prazer do meu trabalho. 

Há duas décadas, as neurociências não estudavam nem as emoções nem a consciência, que pareciam estar fora do alcance da biologia. Hoje, ainda há muitos cépticos que continuam a pensar que não é possível abordá-las pelo lado das bases neurais?

Há, mas há menos. Por exemplo, dentro da filosofia, que tradicionalmente era o bastião dos que não acreditavam que se pudesse estudar a mente pela via neural, há hoje em dia muitos jovens que estudam filosofia e que querem estudar neurociência. Tudo isso está a mudar, o que por outro lado também provoca, por parte de alguns filósofos mais tradicionais, uma enorme reacção de irritação, porque de certo modo acham que a neurociência compete com a filosofia tradicional. Ficaria espantadíssimo se, após a leitura do meu novo livro, não houvesse alguns filósofos a escrever que tudo isto é horrível, que não faz sentido nenhum estar a abordar a mente através da neurociência, que é superreducionista e que não está verdadeiramente ligado aos problemas centrais. Um argumento, quanto a mim, insustentável. Mas, hoje em dia, há também pessoas que suspeitam ou que temem que tanta biologia, que uma abordagem tão completamente biológica do ser humano, possa de algum modo reduzir a dignidade humana. No meu livro, toco várias vezes nesse problema para dizer que é exactamente o contrário que acontece. Quanto mais estudamos a biologia, tanto ao nível de uma simples célula como dos tecidos ou dos organismos inteiros, mais espantoso é o que encontramos. Espantoso pela riqueza da organização, pela complexidade, pela forma extraordinária como umas células que nem cérebro possuem antecipam os valores fisiológicos e os sistemas necessários à regulação da vida. É verdadeiramente extraordinário e a única coisa que nos deve causar é espanto. Por isso, não vejo em que é que a abordagem biológica diminui a dignidade humana, antes pelo contrário. Acho que, quando percebemos a beleza dessa vida nos pormenores mais pequenos e também no grande alcance dos grandes sistemas, passamos a ter muito mais respeito por aquilo que é a vida. Mas há aí um problema e de certeza que vamos ver pessoas, como acontece de cada vez que são publicados livros deste tipo que penetram um pouco mais no grande público, que acham que pode ser uma terrível ameaça para o ser humano. Não é. 

Qual é o derradeiro objectivo das suas pesquisas? 

Penso que não há um derradeiro objectivo. Há uma tentativa, sempre renovada, de esclarecer problemas e, no fundo, os problemas que me interessam são sempre os mesmos. O problema de como as emoções funcionam, de como os sentimentos se estabelecem. Isso prende-se com uma outra grande questão: como é que nasce a mente, como é que nasce o eu e como é que se constrói a mente consciente. 

Em que consiste a teoria da construção da consciência humana que apresentou agora em O Livro da Consciência, editado há poucas semanas em Portugal? 

Em matéria de conceitos, a minha visão da construção da consciência tem muitas semelhanças com aquilo que já escrevi anteriormente [nomeadamente, em O Sentimento de Si]: há um “proto-eu”, não consciente, que surge ao nível do tronco cerebral, um “eu nuclear” e um eu autobiográfico . A esse nível, as ideias são exactamente as mesmas que já expus há uma dezena de anos. Mas os mecanismos que proponho agora são diferentes. 

A consciência aparece a que nível? 

Aparece quando aparece o eu nuclear e depois oscila constantemente entre o eu nuclear e o eu autobiográfico. Neste momento, ambos temos um eu nuclear a funcionar e o nosso eu autobiográfico está em pano de fundo. Mas quando foi preciso — por exemplo, quando me perguntou por que é que me dediquei ao estudo do cérebro, o meu eu autobiográfico funcionou completamente e fui buscar uma série de imagens que têm a ver com a minha vida entre os 10 e os 16 anos. A seguir, o meu eu autobiográfico regressou aos bastidores e aquilo que conta agora é o eu nuclear, são todos estes conteúdos com que eu estou a jogar neste momento para responder à sua última pergunta. 

Mas, antes de se tornar consciente, como é que nasce a mente? 

A criação da mente propriamente dita reside na capacidade que o cérebro tem de criar mapas neurais que vão dar origem a imagens. A ideia não é nova: vários colegas a têm abordado. Gerald Edelman [conhecido neurocientista norte-americano], por exemplo, é muito claro sobre a necessidade de existirem mapas neurais no cérebro. É dessa capacidade de gerar mapas neurais que surgem os conteúdos principais da mente: as imagens visuais, auditivas, olfactivas, tácteis — e, o que é muito importante, as imagens que nos vêm do nosso próprio corpo. Estas imagens, estes sentimentos básicos que temos do nosso próprio corpo — e que eu chamo agora sentimentos primordiais — vão depois ajudar a construir o eu. 

As imagens do nosso próprio corpo são sentimentos? 

Sim, só que os mapas do corpo são diferentes dos mapas do mundo exterior. De facto, se há algo de novo no meu último livro — algo que penso há muito tempo, mas que só agora consegui finalmente verbalizar numa forma que me agrada —, consiste em dizer que as imagens do corpo são imagens de uma natureza diferente das imagens do exterior. Porquê? Porque são imagens que começam a ser geradas ao nível do tronco cerebral, numa região do cérebro que está naquilo que eu descrevo no livro como uma união, uma fusão praticamente completa com o corpo. E o que isso vai permitir do ponto de vista teórico — e também prático, julgo eu — é fazer com que essas imagens não sejam só imagens cognitivas, divorciadas do seu objecto, mas sim imagens ligadas ao seu objecto, que é o corpo. Ou seja, imagens sentidas. Ora isso prende-se com um problema absolutamente central, que inúmeros filósofos e neurocientistas têm enfrentado. É o problema dos qualia — a dificuldade de explicar que nós não só temos imagens, mas que também sentimos essas imagens. Quando olhamos para o mar, não vemos apenas o azul do mar, sentimos que estamos a viver esse momento de percepção. Muitas pessoas têm dito que isto é impossível de compreender, que é algo que está fora do campo das neurociências. Mas eu acho que existe a possibilidade de que o modelo que acabei de descrever resolva o problema dos qualia. É óptimo vislumbrar a possibilidade de ligar coerentemente os sentimentos e a consciência. Por exemplo, neste momento, você tem uma imagem de mim, que está a construir a nível visual, mas também a nível auditivo. Mas há também uma outra imagem que surge ao mesmo tempo na sua mente: a imagem do seu próprio organismo, que está a ser gerada automaticamente no seu tronco cerebral e representada na sua ínsula [uma região do córtex cerebral]. Ora, essa imagem é uma imagem que, por estar ligada a si, está ao mesmo tempo a produzir um mapa que é sentimento. E é aí que me parece que está o grande segredo de criar uma consciência sentida e não uma consciência de autómato.

Disse que os mecanismos cerebrais que propõe agora para a emergência da consciência são diferentes...

Sim. Há uma dezena de anos, julgava que o mecanismo com que se constrói o eu nuclear requeria a participação do córtex cerebral [a parte mais evoluída do cérebro, que desempenha as funções cognitivas]. Agora, penso que o tronco cerebral consegue perfeitamente fazer isso sozinho. Isso não quer dizer que o córtex cerebral tenha ido para as urtigas. Continua a haver
uma interacção entre o córtex cerebral e o tronco cerebral. Mas a visão de um córtex cerebral a fazer tudo parece-me extraordinariamente errada. Não posso dizer que alguma vez tenha acreditado completamente nisso, mas embora tenha tido sempre a suspeita de que havia coisas muito importantes para estudar no tronco cerebral, parecia-me sempre que o processo podia ser explicado quase completamente ao nível do córtex. Contudo, já no ano 2000, lembro-me de ter escrito um trabalho que apresentámos na Nature e no qual transparecia cada vez mais que o subcórtex tinha de ter um grande papel. No fundo, demorou dez anos a amadurecer essas ideias e a ter novos dados. Quanto ao eu autobiográfico, sempre pensei que dependia sobretudo do córtex cerebral e continuo a pensá-lo, mas hoje acho que depende sobretudo de uma região muito particular do córtex — o córtex posteromedial ou PMC — e de uma interacção, que agora me parece vislumbrar, entre o córtex e o tronco cerebral. Isto é muito diferente de aquilo que eu tinha proposto há uma dezena de anos.

Quando fala em subcórtex, trata-se de que estruturas?

Do tronco cerebral e do tálamo. O tálamo, tal como o apresento no meu livro, é um sistema intermédio, porque para chegar do tronco cerebral ao córtex cerebral é preciso passar pelo tálamo. O córtex cerebral tem maneira de chegar ao tronco cerebral sem necessariamente utilizar o tálamo, mas nas vias ascendentes o tronco cerebral tem de comunicar muito através do tálamo. 

O PMC já faz parte do córtex.

Sim, mas de um córtex mais antigo, que recebe mensagens do tronco cerebral. No fundo, temos a produção de sentimentos primordiais, depois a produção do que eu chamo “sentimentos de saber” e depois, a certo ponto, quando já há uma enorme quantidade de conteúdos relativos, por exemplo, à nossa biografia, é necessário coordenar esses conteúdos — coordenar a maneira como eles são apresentados à maquinaria dos sentimentos para que possam ser beneficiados por um sentimento que os distinga. O que é extraordinariamente importante. O PMC é precisamente um agregado de regiões que estão organizadas de tal maneira que têm a capacidade de muito rapidamente chegar a um grande número de sítios do cérebro e reevocar as imagens que nos vão permitir aceder rapidamente à nossa autobiografia. Desempenha um papel de grande coordenador. Há uma quantidade de novos dados sobre o PMC e, de facto, as coisas começam a encaixar bem. 

Também inclui no seu modelo uma estrutura chamada ínsula. Ela também faz parte do córtex? 

Também. A ínsula é um córtex com uma parte antiga e uma parte mais moderna e permite repetir com maior pormenor aquilo que já está no tronco cerebral em matéria de sentimentos. Aliás, aí é que reside outra grande diferença na minha visão das coisas: na visão mais tradicional, os sinais sobre o corpo juntam-se no tronco cerebral e são depois relançados sobre a ínsula — e é na ínsula que aparece a plataforma dos sentimentos. Na minha visão actual, os sinais estão no tronco cerebral. O tronco cerebral faz os seus primeiros mapas — que são muito simples —, transforma esses sinais e inicia o sentimento. Depois, envia todos esses sinais para a ínsula, onde os mapas são completados e onde existe a possibilidade de os relacionar com os objectos que inicialmente desencadearam o processo — e que podem ser visuais, auditivos, etc. Por exemplo, se você ouvir uma grande peça de Bach, desencadeia-se um processo auditivo. Esse processo auditivo vai provocar uma série de emoções e de sentimentos; as transformações ligadas às emoções e aos sentimentos vão aparecer mapeadas primeiro pelo tronco cerebral; depois, o tronco cerebral vai transferi-los para o córtex, onde se irão ligar ao iniciador de todo o processo, que foi a audição da peça musical do sr. Bach. Esta visão não exclui nenhum sistema, mas enriquece a maquinaria cerebral que fornece dados ao córtex. 

Há quem diga que nunca se vai conseguir saber exactamente como é que cérebro humano gera a consciência. Acha que o problema se pode de facto revelar demasiado complexo? 

É perfeitamente possível, mas é de facto provável que continuemos a progredir. Se olharmos para dez anos atrás, ou 20, ou 50, a verdade é que não se sabia então uma grande parte do que se sabe hoje. Praticamente toda a marcha da ciência tem desmentido os velhos do Restelo que não acreditavam que se pudesse descobrir coisa nenhuma. Tem havido uma constante negação desse princípio. Penso que as pessoas que apostam que não vamos conseguir se arriscam a perder a aposta. Dito isso, não quer dizer que eu tenha qualquer certeza de que todos os mistérios do Universo serão revelados. É bem possível que seja difícil ultrapassar certos muros do mistério da consciência — mas, até agora, isso não aconteceu. Todos os anos fazemos o mistério recuar um bocadinho. É por isso que devemos continuar a tentar. 

O que é que vai ser preciso mostrar para confirmar a sua teoria da consciência? O que é que está pela frente? 

Temos de pensar no imediato. Temos de pensar em técnicas — no caso dos seres humanos, em técnicas de imagem funcional e algumas de imagens estruturais — que nos permitam confirmar passo a passo algumas das coisas que no quadro teórico actual ainda são hipotéticas. Depois, vamos ter de fazer experiências em animais de várias espécies, incluindo com certeza primatas não humanos. Certas técnicas de imagem têm-se revelado extraordinariamente poderosas e surgem constantemente pequenas modificações de software que nos vão permitir chegar a resultados mais fortes. 

Acha que a Internet e a maneira como as pessoas — e principalmente as crianças — interagem hoje com os computadores podem estar a alterar o cérebro humano? De que maneira?

De variadíssimas formas. Não há dúvida de que a rapidez de processamento cognitivo está a aumentar sob o efeito do multitasking e do bombardeamento de sinais, em geral visuais. Isto influi sobre a atenção e seria improvável que não levasse a uma modificação da forma como o nosso cérebro funciona e como concebemos o mundo. Mas claro que isto é pura especulação.

Isso vai de alguma forma alterar a nossa consciência? 

Não... Vai alterar a superfície dessa consciência, vai alterar a velocidade com que as coisas funcionam. 

Graças a técnicas de imagem, conseguiu-se recentemente distinguir certos conceitos no momento em que se formam no cérebro de uma pessoa (uma planta vs. um rosto, por exemplo). Isso parece assustador quando se pensa que os militares, a polícia e até os especialistas de publicidade ou de marketing gostariam todos de poder entrar na nossa cabeça. Vai ser possível um dia alguém “ler” os nossos pensamentos? 

Eu não ficaria extraordinariamente preocupado, porque existem limitações muito grandes. Uma coisa é ser capaz, num trabalho experimental, cuidadoso, demorado, de concluir que é mais provável que uma pessoa esteja a pensar nos pijamas do gato do que no gato propriamente dito. Mas daí a ter qualquer espécie de certeza num teste que fosse feito com exactamente essas mesmas técnicas na população geral é um grande passo. Estamos a falar em coisas curiosas, mas que têm muito a ver com probabilidades de ser uma coisa ou a outra. Mas eu tenho a impressão de que os militares e a polícia não querem jogar com probabilidades, querem ter certezas. O que seria aterrador é que não se percebesse aquilo que as técnicas permitem e se confundissem probabilidades com certezas. Aí, claro, teríamos um mundo perfeitamente kafkiano ou pior. É preciso que as pessoas percebam isso.
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quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Produção científica: fatores ocultos nos fatores de impacto

A propósito de produção científica, aí abaixo pode-se ler uma boa reflexão sobre o mau uso dos chamados 'fatores de impacto'. 


The hidden factors in impact factors: a perspective from Brazilian science

  • Laboratório de Genômica Evolutiva e Biocomplexidade, Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brazil
Contrary to all current international recommendations on evaluation of academic achievement the evaluation of graduate programs in Brazil relies heavily on journal impact factors (Garfield, 2006San Francisco Declaration on Research Assessment, 2013). The governmental agency CAPES from the Education Ministry monopolize this evaluation and pressure programs by the distribution of funding resources and departmental fellowships conditioned to adherence to a journal classification system called “Qualis” which is a discretization of the continuous distribution of journals ranking by their impact factors (Greenwood, 2007). In several institutions the graduate committee authorizes professors to act as thesis advisors only if in a certain period (e.g., 4 years) they publish at least one paper in a journal classified as “Qualis A2.” This classification has seven categories with decreasing impact factor ranges (A1, A2, B1, B2, B3, B4, B5, and C,http://www.capes.gov.br/avaliacao/qualis) and has certain percentile adjustments depending on the field of research. This has been hailed as a major cause for the enhancement of Brazilian scientific output although this system has several critics, demanding a profound review of evaluation criteria, and a proper adaptation to international guidelines (Rocha-e-Silva, 2009Hermes-Lima, 2013). Most critics suggest that the excessive concern with publication in certain journals is in fact reducing the originality. Recently, to dismay of CAPES, a survey of the Brazilian science publication output, from 2001 to 2011, has shown that although Brazil has climbed from 17th place to 13th place in the total number of papers it has dropped from 31th to 40th place in citations (Rughetti, 2013).
To investigate the “Qualis” effect we obtained journal citation data from Thomson Reuters for six journals in the Biological area and calculated, from raw data, the impact factors (mean), standard deviations, median, and mode. The journals selected are in the CAPES classification “Biology III” and correspond to the highest impact factor of A2 and B1, the middle impact factor of A2 and B1 and the lowest impact factors of A2 and B1. The A2 category includes 180 journals and B1 includes 255 journals.
These journals lie at the “exclusion zone,” in other words the frontier between A2 and B1 exactly where a professor may or may not be promoted to formal advisor status. As expected, the distributions of citations for these six journals follow power laws (Baum, 2011). As widely known power laws cannot be compared on the basis of their means (the impact factor) but preferably on their medians. Also, the standard deviations are larger than the means, showing the over-dispersed nature of the data and how the mean is meaningless in this case. In Figure 1 the journal ranking is depicted showing that the differences between journal means (impact factors) are significantly smaller than the standard deviations. This shows that the “Qualis” categories and journals considered are not statistically different. How can scientists and publications from graduate programs be compared on the basis of these measurements? Could this be, at least in part, responsible for the drop in citations of Brazilian research? As shown by others (Editorial, 2005) is this an effect of free-riding on power law outliers?
FIGURE 1
www.frontiersin.org
Figure 1. Statistics of impact factors of journals indexed in the Brazilian Qualis.BBActa, Biochemical and Biophysical Acta; JCM, Journal of Clinical Microbiology; BMC Mic., BMC Microbiology; Exp. Derm., Experimental Dermatology and Curr. Genet., Current Genetics; SD, Standard Deviation of the impact factor (error bars).
This shows yet another nationwide example of misuse of journal based metrics to evaluate individual scientists and its catastrophic consequences when, contrary to recommended by the International Mathematical Union (IMU Report, 2011), it is imposed by governmental agencies. In a country that is desperately trying to move from a peripheral scientific and technological condition to be among the major players, the journal impact factor based “Qualis” might be bad news.

References

Baum, J. (2011). Free-riding on power laws: questioning the validity of the impact factor as a measure of research quality in organization studies. Organization 18, 449–466. doi: 10.1177/1350508411403531
Editorial. (2005). Not-so-deep impact. Nature 435, 1003–1004. doi: 10.1038/4351003a
Garfield, E. (2006). The history and meaning of the journal impact factor. JAMA 295, 90–93. doi:10.1001/jama.295.1.90
Greenwood, D. (2007). Reliability of journal impact factor rankings. BMC Med. Res. Methodol. 7:48. doi: 10.1186/1471-2288-7-48
Hermes-Lima, M. (2013). Methodologies of CAPES Evaluation. Available online at:http://cienciabrasil.blogspot.com.br/2013/04/metodologias-de-avaliacao-da-capes-em.html
IMU Report. (2011). Report of the Journal Working Group of the International Mathematical Union. Available online at:http://www.mathunion.org/fileadmin/IMU/Report/WG_JRP_Report_01.pdf
Rocha-e-Silva, M. (2009). O novo Qualis, ou a Tragédia Anunciada (The new Qualisor the announced tragedy). Clinics 64, 1–4.
Rughetti, S. (2013) Brasil Cresce em Produçãoo Científica mas Índice de Qualidade Cai (Brazil Grows In Scientific Production but Quality Index Falls). Folha de São Paulo, April 22nd. Available online at:http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2013/04/1266521-brasil-cresce-em-producao-cientifica-mas-indice-de-qualidade-cai.shtml
San Francisco Declaration on Research Assessment. (2013). Available online at:http://www.ascb.org/SFdeclaration.html (last accessed date: 16 May 2013).
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