Quais caminhos podem ser trilhados para levar a cabo esta tarefa? Aqui e algures, sinais vão sendo descortinados. Em maior ou menor medida, por certo. Mas vão. Só não percebe isto quem insiste em se apegar em referenciais fossilizados. Na artigo abaixo, com propriedade, a Profa. Rejane de Souz Fontes (UFF) vai além da escola, no sentido convencional, para abordar a questão. Uma perspectiva instituinte de reinvenção da escola a partir do espaço hospitalar.
A reinvenção da escola a partir de uma experiência
instituinte em hospital
Rejane de Souza Fontes
Cada vez mais presenciamos uma sociedade complexa,
na qual vivemos, que tem se configurado como uma sociedade do espetáculo,1 do
consumo rápido e imediato, em que tudo é fugaz e instantâneo, desde os objetos
até as pessoas.
Numa lógica do mercado capitalista que invade os
padrões educacionais e éticos de nosso país, os profissionais se vêem à beira
de um abismo, encurralados por uma lógica que sempre pede para serem mais do
que são e, em contrapartida, não oferece os instrumentos necessários para sua
libertação e ascensão profissionais. A qualificação da educação como mercadoria
ganha espaço nesta sociedade do consumo e arrasta consigo um forte arcabouço
ideológico que desqualifica pessoas, pessoas que tiveram suas vidas tecidas
pela escola pública, quer como alunos quer como professores.
A sociedade da informação mediática e do bombardeio
visual abre mão da reflexão e da análise minuciosa da produção cultural e
educacional que a invade, reproduzindo como se fossem dogmas (reflexos de um
pensamento único e hegemônico) os jargões que a mídia produz:
A multidão busca o divertimento sem exercer uma
participação ativa e crítica, como o espera Benjamin, mas para esquecer o
trabalho alie-nante. A indústria cultural, então, tem realmente por função
distrair os trabalhadores, mas distraí-los da questão essencial de uma
transformação das condições sociais de produção, ao fornecer-lhes uma
compensação ilusória e passageira. (Gagnebin, 1985, p. 55)
Para Benjamin (Gagnebin, 1985), a prática de narrar
histórias está vinculada à experiência coletiva de comunidades em que os
indivíduos não se escravizaram à divisão capitalista do trabalho. Nessas
sociedades pré-capitalistas a experiência coletiva predomina sobre a
experiência individual dos sujeitos. A arte de narrar entrou em declínio em
conseqüência do advento da informação. A informação passou a ser a mais
importante das funções comunicativas trazendo em si uma explicação fechada em
detrimento das narrativas.
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E,
no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já
nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que
acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da
informação. (Benjamin, 1987, p. 203)
Nesta sociedade da informação e do espetáculo, em
que ouvir histórias deveria aproximar fisicamente narradores e ouvintes,
vivemos um distanciamento solitário proporcionado por uma informação rápida e
mediatizada pela TV e pelo computador. Com o surgimento da TV como veículo de
informação, inventa-se o sujeito espectador, cujas histórias não pode mais
narrar. Silenciado pelo texto televisivo, o sujeito da era da informação é
impossibilitado de interagir com as narrativas que ouve e que contam sempre
grandes feitos e grandes fatos.
A sociedade do espetáculo chocou os processos de
comunicação que alimentavam os circuitos de narração. O impacto da imagem
parece ter calado as vozes que dialogavam e insurgiam contra o pensamento único
da pós-modernidade, tornando o homem cada vez mais solitário num mundo
globalizado. Esse pensamento foi muito bem ilustrado nas palavras de Oliveira
(2002) quando disse que "a sociedade de hoje não é coletiva, ela é formada
por indivíduos".
Para Zemelman (2002), um grande de número de
pessoas é excluído da informação. Todavia, elas não têm consciência de que não
têm informação. "Não há necessidade de pensar porque não há necessidade de
ser pessoa". Segundo ele, vivemos num processo de atomização social. E
acaba também por concluir que "não há sociedades, apenas
indivíduos".
Qual o lugar dos indivíduos excluídos2 na
sociedade do espetáculo? Na sociedade de promessas de lucros fáceis, fama
rápida e conhecimentos sem aprendizado?
Nosso centro de interesse, neste artigo, volta-se
para práticas educativas alternativas materializadas em escutas pedagógicas
(Ceccim; Carvalho, 1997) dentro de espaços hospitalares, as quais propõem o conhecimento
como uma forma de conforto emocional à criança enferma que sofre com a
internação e o desconhecimento do ambiente hospitalar. Acreditamos que essa
prática possui traços que a configuram como uma experiência instituinte,3 capaz
de dar voz aos "excluídos" mas que em vez de se dar na escola
pública, acontece num outro espaço público: o hospital.4
A classe hospitalar contemporânea, além de atender
às necessidades pedagógico-educacionais da criança e do adolescente
hospitalizados (necessidades provenientes de atenção integral ao seu
crescimento e desenvolvimento), obedece aos fundamentos políticos da educação,
isto é, ratifica o respeito aos princípios democráticos da igualdade, da
liberdade e da valorização da dignidade humana. (Ceccim, 1999, p. 31-32)
A escola, que era sagrada e desejada, tornou-se
ultrapassada diante da frenética inovação tecnológica do mundo contemporâneo,
dessa sociedade instantânea da imagem e do espetáculo, em que os valores
cultivados são os do mercado de consumo e a lógica eleita, a do impacto. Embora
as estatísticas oficiais demonstrem, a cada ano, maior ingresso de alunos das
camadas populares nas redes oficiais de ensino, o conhecimento formal como
moeda de troca, agora como antes, continua pertencendo a círculos restritos da
sociedade. Isso pode ser atestado pela diferença no nível da qualidade do
ensino ministrado em escolas públicas e particulares, cujo conteúdo parece não
ser atrativo para as maiorias, que se contentam com o entretenimento fugaz e
superficial dos programas que noticiam os bastidores do mundo artístico e
os reality shows nacionais.
Assim, Benjamin (1987) se manifesta sobre a
velocidade da (in)comunicação dos tempos modernos e que podemos transpor para o
mundo escolar:
A experiência transmitida pelo relato deve ser
comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e
de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo,
destruiu. A distância entre os grupos humanos, particularmente entre as
gerações, transformou-se hoje em abismo porque as condições de vida mudam em um
ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação. Enquanto no
passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de
uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho
cujo discurso é inútil. (Gagnebin, 1987, p. 10)
O autor nos fala aqui que a "comunidade da
experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional" (Gagnebin,
1987, p.11). A pessoa que conta transmite um saber que seus
interlocutores podem receber com algum proveito. Esta sapiência prática toma,
muitas vezes, a forma de uma lição, de um conselho ou de uma advertência. Essa
forma de comunicação parece estar desaparecendo, pois hoje não sabemos mais
como orientar, através do diálogo, pessoas de gerações diferentes
da nossa, como nossos alunos, "de tão isolados que estamos, cada um em seu
mundo particular e privado" (Gagnebin, 1987, p.11).
Em meio a esse bombardeio informa-cional, muitas
vezes, irrefletido, a instituição escola e com ela, seus
profissionais, têm sofrido de um obsoletismo crônico acompanhado de freqüentes
turbulências internas entre os que lutam para sobreviver e os que já se
renderam a uma guerra ideológica (in)visível.
E o professor? E a professora? Esses parecem erigir
estratégias que oscilam entre a resistência (coletiva ou individualmente
referenciada) e a desistência, o desânimo, a alienação. Trata-se de um campo
histórico e quotidianamente minado por onde projetos são semeados, ceifados,
reconstruídos. Caminhar por esses campos, hoje, requer basicamente a
compreensão de que a identidade do profissional da educação no Brasil, se
compõe, antes de mais nada, a partir da definição de políticas públicas, no
campo da educação e para além dele. (Simões; Carvalho, 2001, p. 32)
Rememorando e contando histórias sobre os processos
educativos de ontem e de hoje, as pesquisas em Educação e, particularmente, em
Educação Especial, devem buscar resgatar a potencialidade de vozes emudecidas
pela historiografia e pela política oficiais, provocando o encontro de
experiências tecidas a partir de fios históricos que evocam lembranças e que
trazem o potencial da mudança nos pequenos detalhes de uma história que se
constrói cotidianamente.
A (re)invenção da escola
Como muito bem nos aponta Linhares (2000/2001), os
movimentos instituintes não nascem em redomas de vidro, não crescem isolados da
vida, da história, das ações coletivas e individuais, mas se alimentam de
circuitos incessantes de religação entre passado e futuro, entre as diferentes
disciplinas, entre afetos, linguagens, emoções, saberes e conhecimentos. É por
isso que esses movimentos estouram nos mais diferentes espaços e tempos da
vida.
Como uma proposta de inclusão dos que estão social
e educacionalmente excluídos devido a uma enfermidade, poderíamos afirmar que a
contribuição do acompanhamento pedagógico em hospital para o bem-estar da
criança hospitalizada passa por duas vertentes de análise. Primeiro, porque
este tipo de atividade, ao acionar o lúdico como canal de comunicação com a
criança hospitalizada, procura fazê-la esquecer, durante alguns instantes, do
ambiente agressivo no qual se encontra, resgatando sensações da infância vivida
anteriormente à entrada no hospital. Segundo, porque ao conhecer e desmitificar
o ambiente hospitalar, re-significando suas práticas e rotinas, que é uma das
propostas de atendimento pedagógico em hospital, o medo que paralisa as ações e
cria resistência, tende a desaparecer, surgindo em seu lugar a intimidade com o
espaço e a confiança naqueles que cuidam dela.
Em uma sociedade com forte ênfase visual centrada
no espetáculo, Ceccim (1997) nos falará da "escuta pedagógica para
agenciar conexões, necessidades intelectuais, emoções e pensamentos" e que
pensamos ser um conceito importante para ser recuperado neste texto. Segundo
ele,
O termo escuta provém da psicanálise e
diferencia-se da audição. Enquanto a audição se refere à apreensão/compreensão
de vozes e sons audíveis, a escuta se refere à apreensão/compreensão de expectativas
e sentidos, ouvindo através das palavras, as lacunas do que é dito e os
silêncios, ouvindo expressões e gestos, condutas e postura.
A escuta não se limita ao campo da fala ou do
falado, ao contrário, busca perscrutar os mundos interpessoais que constituem
nossa subjetividade para cartografar o movimento das forças de vida que
engendram nossa singularidade. (Ceccim, 1997, p. 31)
Essa escuta pedagógica de que nos fala Ceccim deve
transcender o físico, aparentemente imediato e adentrar o mundo silencioso ou
silenciado das subjetividades da criança enferma. Desse modo, a escuta se
materializa numa perspectiva de atenção integral como escuta à vida, resgatando
o conceito de saúde como afirmação da própria vida.
Começamos a perceber nesse contexto inter-subjetivo
do hospital, em que se interpenetram os conceitos de educação e saúde, uma nova
perspectiva de educação que fertiliza a vida, pois sabemos que o desejo de
aprender/conhecer engendra o desejo de viver no ser humano.
Ao mesmo tempo em que a hospitalização é um
acontecimento permeado por situações de medo e tristeza, que tem o potencial de
paralisar o processo de construção de conhecimento,
Uma adequada possibilidade de acolhimento dos
medos, desejos, ansiedades, confusões e ambivalências, com adequado nível de
informação, permitirá, portanto, a produção de conhecimentos sobre si e uma
construção positiva a respeito da saúde, em que o corpo não se separe do
pensamento. (Ceccim, 1997, p. 34)
Nessa perspectiva, a abordagem pedagógica pode ser
entendida como instrumento de suavização dos efeitos traumáticos da internação
hospitalar e do impacto causado pelo distanciamento da criança de sua rotina,
principalmente no que se refere ao afastamento escolar. O período de
hospitalização é transformado, então, num tempo de aprendizagem, de construção
de conhecimento e aquisição de novos significados, não sendo preenchido apenas
pelo sofrimento e o vazio do não desenvolvimento afetivo, psíquico e social.
A atuação do pedagogo em hospital deve ultrapassar
a experiência escolar e atingir níveis diferenciados de educação.
Nesse sentido, educação é o conjunto das ações,
processos, influências, estruturas, que intervêm no desenvolvimento humano de
indivíduos e grupos na sua relação ativa com o meio natural e social, num determinado
contexto de relações entre grupos e classes sociais. É uma prática social que
atua na configuração da existência humana individual e grupal, para realizar
nos sujeitos humanos as características de "ser humano". (Libâneo,
2000, p. 22)
Ainda segundo este autor, cumpre distinguir
diferentes manifestações e modalidades de prática educativa, tais como a
educação informal, não-formal e formal. A educação conhecida como não-formal
seria a realizada em instituições educativas fora dos marcos institucionais,
mas com certo grau de sistematização e estruturação pedagógica.
Se há muitas práticas educativas, em muitos lugares
e sob variadas modalidades, há, por conseqüência, várias pedagogias: a
pedagogia familiar, a pedagogia sindical, a pedagogia dos meios de comunicação,
etc.; e também a pedagogia escolar. (Libâneo, 2000, p. 23-24)
Não é mais possível afirmar que o trabalho
pedagógico se reduz ao trabalho docente nas escolas. Em resumo, estamos diante
de uma sociedade genuinamente pedagógica (Beillerot, 1985 apud Libâneo, 2000).
Então por que não haver uma pedagogia hospitalar, com princípios, métodos e
avaliações diferenciadas da pedagogia escolar oficial, engendrada pela
especificação do próprio contexto que a alimenta?
Essa discussão desdobra-se inevitavelmente na
formação desse profissional de educação para atuar junto à criança
hospitalizada. O universo desta ainda é pouco conhecido nas instâncias
educacionais de formação pedagógica e, portanto, pouco explorado como locus próprio
de atuação do professor e local de aprendizagem.
Como pano de fundo da investigação ora apresentada
não poderíamos deixar de pensar acerca da vinculação entre a formação do
professor e sua prática pedagógica em hospital. Quais são as pontes que unem e
os abismos que separam a formação inicial e a vivência educativa? Como formar
professores nas universidades preparando-os para um exercício de autonomia, com
"vocação para serem mais" (Freire, 1998), para
transcenderem a teoria que a faculdade lhes oferece e chegarem a uma prática realmente
emancipadora?
Afinal uma formação de professores, que possa
apoiar e instrumentalizar uma refundação emancipatória da escola, não pode
deixar de atender às exigências éticas e epistemológicas de religar os saberes,
preparando um outro tipo de cultura mais cooperativa, mais participante e mais
interligada (Linhares, 2001/2002). E é exatamente isso que procuramos
estabelecer por meio da interdisciplinaridade na prática pedagógica hospitalar.
De acordo com esse novo enfoque educacional, sugerimos
a prática de uma educação para o afeto ao lado da secular educação para o
conhecimento. E também convidamos à reflexão sobre as novas possibilidades de
se pôr em prática a relevância da interdisciplinaridade, que ainda conhecemos
apenas teoricamente. A nosso ver a continuidade de um atendimento educacional
em âmbito hospitalar certamente dependerá do empenho com que os diferentes
profissionais e pesquisadores encarem a qualidade de vida da criança enferma. E
principalmente do pedagogo que deve ter a sensibilidade de respeitar o
sofrimento, o medo, o anseio, a dor, a agressividade, a alegria, a depressão,
enfim, todos os sentimentos da criança doente durante as atividadespedagógicas,
além de lhe dar a oportunidade de expressar-se, que dá a certeza da
continuidade da vida!
A crise por que passa a educação brasileira hoje
não é só econômica e financeira, ela perpassa a própria sociedade e seus
valores culturais e éticos e irrompe na instituição escolar de um modo geral, e
na escola pública, em particular. Onde a população infanto-juvenil marcada para
sobrar, fica silenciosamente depositada, aguardando sua vez de ser excluída:
primeiro do sistema educacional e demais acessos a bens culturais e de
informação crítica e, mais tarde, da sociedade civil e do mundo do trabalho,
sendo jogada à margem da história. Entendemos aqui o conceito de história como
nos propõe Walter Benjamin em que "a história é objeto de uma construção
cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de 'agoras'"
(1987, p. 229).
Mas tão perigoso quanto o silêncio são as práticas
discursivas vazias e inférteis que paralisam as ações e adiam as
transformações. Afinal, um discurso que não penetra a prática, nem a fertiliza,
morre. Um exemplo bastante claro delas são as políticas públicas e algumas
pesquisas acadêmicas que não foram e não são capazes de dialogar com
significados educa-cionais construídos visceralmente pela sociedade. Zemelman
(2002) nos alerta que o conhecimento é construído sem saber para que é
construído. Para ele, o conhecimento sem função social se aliena de si mesmo.
Trata-se, primeiro, de perguntarmos qual o sentido
"necessário" e prático das investigações que se fazem nas faculdades,
centros, mestrados e doutorados de educação? (...) Trata-se de indagar sobre o
sentido histórico, social, político e técnico de nossas pesquisas. A serviço de
que e de quem despendemos nosso tempo, nossas forças, e grande parte de nossa
vida? (Frigotto, 1989, p. 83)
Contudo, a experiência escolar continua sendo para
a grande maioria das crianças e jovens pobres uma experiência dura e muito
pouco fértil para a formação de um sentido para suas vidas, que possa
traduzir-se em participação cidadã, contribuindo para reinventar a educação e a
sociedade brasileira. E é esta a proposta que trazemos para o campo de
investigação com o atendimento pedagógico em hospital, em que procuramos
ressignificar pedagogicamente a experiência de internação hospitalar sofrida
pela criança, extraindo da realidade vivida o maior número possível de conhecimentos
oferecidos pela situação em questão.
Esse pode ser um passo importante para tentar
diminuir o fosso existente entre o conhecimento pedagógico acadêmico e sua
aplicação na prática escolar, no sentido de trazer para o debate o que vem
sendo produzido nas fronteiras do conhecimento, através de um exercício
permanente de leitura do mundo, como um convite para uma intervenção solidária
de caráter inclusivo em sua construção, valorizando as conexões entre saberes e
fazeres.
Em meio a esse caos que parece assolar a educação
contemporânea, o professor está buscando espaços alternativos de afirmação de
sua autonomia, cujo desejo se expressa nos isolados e ainda tímidos movimentos
pedagógicos instituintes dentro e fora das escolas.
Em meio ao cotidiano da escola, onde estão
instaladas rotinas e irrompem movimentos clandestinos — não autorizados com
suas porções de destruição ou de recriação —, transitam tradições e inovações
que precisam ser problematizadas, observadas e apropriadas por aqueles que
fazem a escola. (Linhares, 1999, p. 181)
Enfim, ao estudar as experiências
insti-tuintes na educação, busca-se seus endere-çamentos à
constituição de uma outra ordem de racionalidade e de política que leve em
consideração outros espaços educativos que transcendam os muros escolares. O
hospital como espaço educativo para as crianças hospitalizadas também constitui
uma experiência instituinte, mediante uma nova cultura educacional
dentro ou fora da escola e está, portanto, referida a um tipo de (re)invenção
narrativa que se alimenta de sonhos de justiça e igualdade que, embora sempre
renováveis, tantas vezes foram dados como vencidos na história contada a partir
da ótica dos vencedores. Para Benjamin (1987), a história é a narrativa do
vencedor. A tarefa da educação é também revelar e resgatar essas possibilidades
esquecidas, mostrar que o passado comportava outros futuros além deste que
realmente ocorreu.
A empresa crítica converge, assim, para a questão
da memória e do esquecimento, na luta para tirar do silêncio [através da
narrativa] um passado que a história oficial não conta. (Gagnebin, 1985, p. 60)
O importante é perceber a criança e seus familiares
como seres pensantes que, quando chegam ao hospital, já trazem uma história de
vida, um conhecimento prévio e, às vezes, deturpado, sobre o que é saúde,
doença e sobre sua ação na dinâmica saúde/doença.
Vislumbramos aí pontas do iceberg do novo paradigma
do conhecimento sinalizado por Santos (1987) em que
A ciência pós-moderna tenta, pois, dialogar com outras
formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas. A mais importante de
todas é o conhecimento do senso-comum, o conhecimento vulgar e prático com que
no cotidiano orientamos as nossas ações e damos sentido à nossa vida. (...) É
certo que o conhecimento do senso comum tende a ser um conhecimento mistificado
e mistificador mas, apesar disso e apesar de ser conservador, tem uma dimensão
utópica e libertadora que pode serampliada através do diálogo com o
conhecimento científico. (Santos, 1987, p. 55-56)
Com a sabedoria que lhe é adjetiva, Santos
desconstrói o mito da ciência moderna para reconstruí-lo sob nova roupagem e
conteúdo como o novo paradigma da ciência pós-moderna. Nele, há um resgate das
diferentes formas de conhecimento que o homem foi obrigado a abandonar ao longo
de sua história em nome de um conhecimento tão parcial quanto os demais,
chamado "ciência". Encontramos em suas idéias um manancial de saber,
no qual nos abrigamos e repousamos provisoriamente em nossa caminhada rumo ao
conhecimento de nosso fazer/pensar pedagógico/científico. Nele vislumbramos que
o pedagogo seria então o interlocutor privilegiado desses dois conhecimentos em
âmbito hospitalar.
O pedagogo deve utilizar atividades diversas, com o
objetivo de favorecer a construção de uma pedagogia que consiga transformar o
conhecimento científico e o conhecimento popular em um somatório de
possibilidades de forma que, deste encontro, se possibilite o auto-conhecimento
do paciente, e que este se reconheça como co-autor do processo emancipatório de
definições e escolhas de seu tratamento.
Quanto mais for levado a refletir sobre a sua
situacionalidade sobre o seu enraizamento espaço-temporal, mais emergirá dela
conscientemente carregado de compromisso com a sua realidade, da qual, porque é
sujeito, não deve ser simples espectador, mas deve intervir cada vez mais.
(Freire, 1993, p. 61)
É preciso reconhecer a criança hospitalizada e
todas as crianças excluídas como agentes promotores de sua própria saúde e
educação, passando de objeto a sujeito de seu conhecimento que, por meio de sua
narrativa de vida, compreende, interfere e interage num mundo de conhecimentos
fugazes e, muitas vezes, pouco compreensíveis.
Para (não) concluir...
A educação não pode ser a mesma em todas as épocas
e lugares devido a seu caráter socialmente determinado. Esse raciocínio muitas
vezes enfraqueceu o caráter epistemológico da educação ao longo da história das
ciências, ao retirar dela a previsibilidade e recorrência de seus
acontecimentos. Hoje, no entanto, a inovação e a pluralidade de fatos e idéias
no mundo contemporâneo parecem ressurgir como um dos pilares mais fortes da
identidade educacional em nosso país e no mundo.
Lembramos com Candau (1999) que, na América Latina,
verificam-se hoje enorme efervescência e criatividade em todos os níveis dos
processos pedagógicos e da prática educativa. Embora o pensamento hegemônico
nos obrigue a acreditar que não existem alternativas, as propostas de reformas
são plurais e desmentem a ideologia veiculada pela mídia. Essas reformas nascem
na base da sociedade civil organizada e estão articuladas com amplos setores
populares, cujos protagonistas são os educadores. A educação, assim construída,
reflete o pluralismo cultural de nosso continente e não pode ser reduzida à
formação de consumidores competentes.
O reconhecimento da complexidade da vida e, em
particular, da vida social representou um espaço de confluência entre vários
campos do saber. Isso é inegável! Não há mais dúvida de que as experiências
instituintes em escolas públicas e fora delas procuram responder às
mudanças e perplexidades de nosso tempo, que as práticas instituídas de cima
para baixo já não dão mais conta de solucionar, pois se tornaram elas mesmas
problemáticas e obsoletas diante dos desafios desse admirável mundo novo da
tecnologia do espetáculo, da informação e da semiótica diante do qual,
lembrando Benjamin (1987) e Bauman (2000), é preciso estar alerta para não
submergir a parâmetros informacionais:
A sociedade contemporânea, chamada sociedade do
conhecimento e da comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais
incomunicação e solidão entre as pessoas. (...) O mundo virtual criou um habitat para
o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do
toque, do tato e do contato humano. (Boff, 1999, p. 11)
Com toda essa complexa cultura informacional de
falas e discursos contraditórios e desconectados, o que parece ser comum, para
a maior parte das crianças e adolescentes pobres hospitalizados, é que eles são
marcados por apresentarem o ciclo da miséria, da internação e da re-internação
nos hospitais e pela ausência de quem, permitindo que eles falem, escute suas
vozes. Escutar a narrativa dos excluídos conseqüentemente tem implicações na
ampliação de experiências que podem contar uma outra história, esquecida pelo
relato dos vencedores: a de um mundo mais humanizado.
O direito a ter um acompanhamento pedagógico em
hospital já é conhecido em lei (Brasil, 1994, 1996, 2001), mas não foi
reconhecido pela prática e ampliado a todas as crianças hospitalizadas deste
país. O direito a um trabalho pedagógico de boa qualidade em hospital nasce
atrelado ao movimento de humanização que objetiva um atendimento mais
igualitário e menos excludente em hospitais, capaz de enxergar o paciente como
sujeito integral e não como conjunto de peças anatômicas. Esse movimento
deveria ultrapassar os hospitais e ganhar a sociedade que, de várias formas
(física, emocional e cognitiva), violenta a saúde de seus cidadãos, como também
deveria invadir a escola e possibilitar a inclusão de crianças que, embora
estejam matriculadas, têm doenças crônicas e precisam se afastar periodicamente
da escola para serem hospitalizadas.
Paula (2002) nos lembra da importância psicossocial
deste trabalho quando se refere a dois ícones da história de luta por justiça
social em nosso país:
O que seria da história brasileira se grandes
personagens como Betinho e seu irmão Henfil, que foram crianças e
posteriormente adultos hemofílicos, pessoas sensíveis, que devem ter tido
muitas dificuldades em suas infâncias e em seus processos de escolarização,
devido às suas patologias, suas "diferenças", tivessem sido excluídos
do sistema escolar? Certamente a história do Brasil teria tido menos graça sem
os cartuns de Henfil e a solidariedade de Betinho. Possivelmente, essas pessoas
tiveram a oportunidade de encontrar educadores que souberam estimular as
possibilidades e competências desses seres. (p. 16)
Reforçamos nossa tese de uma educação para a
emoção. Ao lembrar Elias (1994), para quem razão e emoção não estão em dois
lugares contraditórios, mas se constituem simultaneamente, é que precisamos de
professores que se formem continuamente no exercício de religar os saberes da
escola com os sabores da vida, como ferramentas de solidariedade para os
sofrimentos e esperanças humanas. A saúde é muitas vezes conseqüência da
atitude e de poder ser feliz, de se sentir incluído numa sociedade excludente.
Enfim, sabemos que o espectro de que tratam essas
questões é muito mais amplo nesta sociedade complexa do espetáculo e do
consumo.Todavia, num mundo fugaz de afirmações cambaleantes, fica a certeza de
que nos princípios da reinvenção da escola está o gene para a reinvenção da
sociedade.
Un mundo bueno, insistían, no había sido dado a los
seres humanos como un regalo, sino que los propios seres humanos tenían que
conquistarlo. (Elias, 1994b, p. 106)
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1. A expressão sociedade
do espetáculo faz referência às idéias contidas na obra de Guy Debord
intitulada A sociedade do espetáculo, publicada originalmente em
Paris, em 1967, e pela editora Contraponto, no Brasil, trinta anos depois. Como
poucos autores que refletem sobre sua época, Debord (1931-1994) analisa a
sociedade capitalista contemporânea e apresenta a mercadoria como o grande
espetáculo. Para ele "o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma
relação social entre pessoas, mediatizada por imagens" que são
pseudo-representações da realidade. O espetáculo é, enfim, o coração da
irrealidade da sociedade real.
2. O
termo excluído assume aqui a conotação de privação de acesso
aos bens materiais e culturais produzidos pela sociedade contemporânea e
destinados a uma parcela de sua população que pode pagar por estes
serviços/mercadorias. Exclusão material e exclusão cultural constituem, assim,
os dois lados de uma mesma moeda, estabelecendo entre si uma relação dialética
que se influencia mutuamente. Ou seja, a exclusão material engendra, na maioria
dos casos, a exclusão aos bens culturais e de saúde, ao mesmo tempo em que a
exclusão a estes últimos dificulta o acesso aos bens materiais produzidos e
valorizados socialmente.
3. Os
movimentos instituintes têm como característica reinventar processos de ensinar
e aprender, como exercícios de autonomia e fortalecimento de inteligências
coletivas.
4. A
experiência instituinte a que fazemos menção neste artigo e que é objeto de
nossa reflexão desenvolveu-se na enfermaria pediátrica do Hospital
Universitário Antônio Pedro em Niterói, no Rio de Janeiro.
5. O
destaque entre aspas refere-se à idéia inspirada em Linhares (2001/2002) de que
o conhecimento assim como as experiências instituintes não são fruto de idéias
miraculosas, espetaculares e inaugurais, que surgem de uma para outra hora.
"Os movimentos capazes de anunciar o novo não podem ser decretados de fora
para dentro (...) sua validade e legitimação vêm de movimentos históricos que
carregam sonhos, desejos e projetos de saberes e conhecimentos. (p.
23-24)"
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