quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O homem que vendeu o mundo

Foram um tanto impressionistas as apreciações em torno da obra de David Bowie, para além do que é habitual quando da 'transvivenciação' de um autor-artista. Muito oba-oba. É chegada a hora de uma análise mais consistente. É o que faz Vladimir Safatle no texto a seguir. 


 


Por Vladimir Safatle 

Nunca a morte de um popstar foi tão celebrada de forma tão oficial. Por si só, este é um fenômeno que mereceria nossa reflexão. Que ele seja o autor de belas canções que criaram uma parte da memória afetiva de todos nós, isto é indubitável e, de fato, não deveria ser esquecido. No entanto, há algo a mais no "caso" David Bowie. Lembremos dos fenômenos bizarros que aconteceram nas últimas semanas. Igrejas tocaram sua música em órgão, o primeiro-ministro conservador do Reino Unido deu um tempo em sua temporada de caça aos imigrantes para aparecer na televisão a fim expressar sua tristeza, o "Jornal Nacional" e a revista "Veja", certamente pontas de lança da cultura underground desde sempre, dedicaram espaços infinitos para falar de sua grandeza, alguns astrônomos belgas batizaram uma constelação com seu nome. Por fim (OK, isto ninguém merece), Elton John prometeu fazer um show em sua homenagem.
Houve época em que cantores de rock encarnavam o mal-estar juvenil em relação à entrada alienante no mundo da produção e das convenções. Por isto, alguns se perdiam em viagens místicas, outros se autodestruiam, outros procuravam formas alternativas de vida, afundavam no ócio das piscinas do excesso ou se engajavam politicamente em múltiplas causas ou, ainda, como Morrissey, torciam para o IRA acertar uma bomba em Margaret Thatcher. Mas Bowie era, desde muito, de outra época.
Na verdade, David Bowie entrou para a história da indústria cultural como sua mais perfeita expressão, e talvez seja por isto que ele foi tão celebrado. Bowie não era exatamente o mais famoso, nem o responsável pelas maiores vendagens, nem mesmo o responsável pelas letras mais poéticas, mas certamente foi o popstar mais paradigmático, aquele que compreendeu antes de todos o tipo de subjetividade que a indústria cultural iria produzir e rentabilizar.
Muito se falou a respeito de seus múltiplos personagens, suas mudanças impressionantes de estilo, como se fosse questão de estar em contínua flexibilização de identidades. Esta flexibilização de quem compreendeu a identidade como uma sucessão contínua de personas hiperteatralizadas mostrou-se muito mais adaptada aos tempos atuais de reengenharia feliz de si do que a figura do cantor de rock obcecado pelas mesmas histórias e sintomas ou, ainda, do popstar que é uma jukebox de si mesmo.
Mas esta flexibilização não teria sido tão bem sucedida se Bowie não houvesse compreendido que a indústria cultural desconheceria margens. Ela sobreviveria da comercialização e da colonização da revolta contra ela própria, da integração contínua do que se coloca como sua contraposição. Neste sentido, o popstar perfeito só poderia ser aquele que parece estar, ao mesmo tempo, dentro e fora das regras industriais do entretenimento, gerenciando uma zona de ambivalência na qual seria possível entrar por filmes terrivelmente açucarados, como "Labirinto", e sair pelo corredor de trabalhos autorais como o célebre disco "Low" e suas belas faixas instrumentais melancólicas. Bowie sabia onde corria o sangue criativo da cultura jovem. Nos últimos tempos procurou se associar a músicos singulares, mas ele sabia também (e fazia questão de lembrar) onde acendiam as luzes da sociedade do espetáculo com seu circo midiático e suas entrevistas assépticas. Não por acaso, ele foi o primeiro cantor a transformar seu nome em ativo na Bolsa de Valores, como quem se realiza na condição de marca. O popstar perfeito queria estar nos dois lugares ao mesmo tempo, dissolvendo contradições em uma conciliação incrivelmente rentável.
Neste sentido, o fim não poderia ter sido de outra forma. Em "Cosmópolis", livro de Don DeLillo sobre um yuppie que trafega em Nova York com sua limusine enquanto reflete sobre o estágio atual das sociedades capitalistas, há uma frase paradigmática: "As pessoas não vão morrer. Não é esse o credo da nova cultura? As pessoas vão ser absorvidas em fluxos de informação".
De fato, é verdade que o último personagem de Bowie foi sua própria morte, sua última obra foi a espetacularização angustiada de sua própria morte. Como se fosse o caso de desaparecer sendo absorvido em fluxos de informação. Ou, antes, como se entrássemos em uma época na qual a morte poderia, sem maiores dificuldades, transformar-se em um videoclipe profissionalmente bem feito a que assistiremos várias vezes no computador entre uma tarefa e outra ou que descobriremos quando estivermos zappeando no controle remoto. Em todos os sentidos possíveis, há algo de terminal em um gesto que nos abre a uma época como esta. Um gesto que, por mais paradoxal que possa ser, só os mais consequentes são capazes de fazer. 
---------------------------------------------------
Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 22/01/2016. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário