De forma direta e indireta, tem-me chegado manifestações a respeito das últimas postagens sobre a universidade. Agradeço-as. Neste tema, como em outros, se conseguirmos pautar o debate pela 'autoridade do argumento' (ao invés do contrário), estaremos num caminho alvissareiro. De resto, coloquemos de parte a mera retórica ('espuma de palavras') e os ruídos que quase nunca se apresentam ao diálogo: vivem sob o abrigo dos escaninhos; no máximo, repetem os chavões do Conselheiro Acácio (indo talvez até mais longe do que a criação de Eça de Queirós...). A seguir, da autoria do Prof. Nilson José Machado, mais um texto, de maior fôlego, a respeito do assunto.
Por Nilson José Machado (USP)
NA SOCIEDADE EM que vivemos, o conhecimento
transformou-se no principal fator de produção, no elemento fundamental para a
produção de riquezas, explicitando-se com muita nitidez sua imediata vinculação
com o universo do trabalho. De modo geral, a importância decisiva da Educação
para uma justa "distribuição" desse "bem" tem sido
reconhecida, e as Universidades, como centros de criação de conhecimento,
desempenham, nesse cenário, um papel de destaque.
O fácil acordo no discurso sobre a relevância de
tais temas não nos impede, no entanto, de enfrentar uma série de situações
desconcertantes, que parecem resultar justamente de uma justaposição acrítica
entre esses dois universos — o do conhecimento e o da economia. Mesmo sendo
considerado um "ativo" em sentido econômico, certamente o
conhecimento não pode ser tratado como uma mercadoria em sentido industrial sem
a ocorrência de efeitos colaterais insólitos, ou sem a emergência de situações
paradoxais, de verdadeiros becos sem saída.
Acrescente-se a isso o fato de que, em um período
pleno de debates sobre os limites e as relações entre o espaço público e o
privado, nos diversos âmbitos sociais — saúde, educação, pesquisa científica,
entre outros — as atenções se voltam naturalmente para a universidade.
Ressurgem, então, de tempos em tempos, na mídia, nas vozes ou nos porta-vozes
de um liberalismo radical, argumentos que invocam a limitação de recursos
públicos e/ou o suposto caráter elitista dos estudos superiores, para
questionar o financiamento da universidade pública. Tais argumentos conduzem,
inevitavelmente, a um sítio com as feições de um aparente dilema: ou se
aumentam significativamente as vagas na universidade pública (gratuita), o que
esbarra na limitação de recursos, ou se abandona a idéia de gratuidade, o que
poderá acentuar o elitismo que se visaria combater.
Formulada dessa forma limitada, a questão torna-se
excessivamente simplificada, beirando o caricato e não atingindo a raiz dos
problemas. De fato, em nenhum lugar do mundo a universidade é, em sentido
próprio, "gratuita": certamente, os custos do ensino e da pesquisa
são financiados de alguma forma, direta ou indiretamente, sendo difícil
imaginar-se a possibilidade, ou apontar-se exemplos consistentes de situações
em que o pagamento direto, por parte dos alunos, seja a solução para as
limitações de recursos. Uma análise radical remete, necessariamente, à
estrutura do sistema tributário. Áreas como a Saúde e a Educação não podem ter
um financiamento equacionado apenas segundo parâmetros mercantis. Não lidam com
"produtos" que se pode vender ou comprar a um preço determinado pelo
putativo equilíbrio entre a oferta e a procura. O papel do Estado é
fundamental, no mínimo para configurar uma teia de tributos que incidam sobre a
renda — sobretudo sobre operações financeiras ou sobre heranças, e não sobre
salários — tendo em vista a eqüidade na oferta dos serviços de saúde e no
financiamento da educação. Mas considerar tais temas, neste momento, significaria
um grande desvio dos objetivos da presente reflexão.
De qualquer forma, um tratamento consistente da
questão em tela — organização do conhecimento na Universidade — não pode
prescindir do exame de outra questão correlata, que diz respeito ao modo como o
conhecimento é concebido e organizado, tanto no ensino pré-universitário e nos
vestibulares, associados aos mecanismos de acesso à Universidade, quanto no
interior da própria Universidade, com a tênue interação existente entre as
diversas unidades, os departamentos ou as disciplinas. A própria pesquisa
científica parece, com certa freqüência, ilustrar uma crescente fragmentação do
saber sem a contrapartida de uma visão abrangente relativa aos valores
envolvidos. Em determinadas áreas, transparece uma superestimação muitas vezes
acrítica de certas especializações intradisciplinares, que pouco ou nada
significam no que tange à promoção da liberdade humana.
Atendo-nos especificamente à concepção e à
organização do conhecimento na Universidade, é possível identificar três focos
problemas, que buscaremos caracterizar e analisar:
a assintonia entre os padrões atuais de organização
do universo do trabalho, associados ao uso intensivo de tecnologias
informáticas, e a estrutura interna das Universidades, tributárias de um
cartesianismo radical;
o desequilíbrio nas relações entre a Educação e a
Cultura, com o progressivo deslocamento do centro de gravidade da Universidade
do conhecimento em sentido pleno para a formação profissional ou a produção
tecnológica;
a insuficiência do par valor de uso/valor de troca,
no que tange à compreensão do valor do conhecimento produzido, ou aos critérios
para o financiamento da pesquisa científica.
Para uma reorganização do processo de
construção/circulação do conhecimento, particularmente no que se refere ao
espaço acadêmico, três idéias podem contribuir para o equacionamento dos
problemas supra-referidos:
a imagem do conhecimento como uma rede de
significações;
o reconhecimento do valor do conhecimento tácito;
e a explicitação da dádiva como dimensão do
conhecimento.
Conhecimento como rede de significações
Na organização do conhecimento escolar, em
praticamente todos os níveis de ensino, a imagem hegemônica que orienta as
ações educacionais é a do encadeamento, matriz do pensamento cartesiano, tão
bem caracterizado no livro Discurso do método (Descartes,
1978).
Para Descartes, a construção do conhecimento
somente poderia ser confiável se o ponto de partida fosse constituído por
"idéias claras e distintas". Assim, diante de uma tarefa complexa, em
termos cognitivos, o método, ou o caminho, era um só: decompor, analisar,
reduzir o complexo a idéias simples. A conta que se paga por tal redução chega
rapidamente: o objeto do conhecimento é reduzido a fragmentos, esvaindo-se seu
significado. Diante disso, outra vez, para Descartes, o caminho é um só:
reconstituir o objeto por meio de uma enumeração exaustiva de suas partes
simples, seguida de um encadeamento lógico entre as mesmas, tendo como elos
fundamentais proposições do tipo "se A, então B".
Quase toda a moldura da cultura ocidental resulta
dessa matriz do pensamento cartesiano. Tal fato levou Tocqueville a afirmar, ao
analisar o modo de pensar dos americanos, que eles seguem rigorosamente os
preceitos cartesianos, ainda que nunca tenham lido ou nunca venham a ler
Descartes (Tocqueville, 1977: 321). No solo firme do Discurso,
enraízam-se, portanto, no cenário ocidental, as palavras de ordem do discurso
educacional, como "pré-requisitos", "seriação", "ordem
necessária para os estudos", entre outras. No mesmo sentido, consolidam-se
metáforas metodológicas de grande aceitação, como a que associa a construção do
conhecimento à construção de uma casa, ou à percepção de uma imagem
fotográfica. No primeiro caso, tem-se como um dadoa priori que o
ponto de partida na construção do conhecimento devem ser os alicerces, as
bases, não havendo sentido em se pensar nas paredes ou no teto de uma casa
cujas fundações não são confiáveis. Considerar essa metáfora em sentido literal
está na origem de tantas reclamações por parte de professores quanto à suposta
"falta de base" de seus alunos. No segundo caso, considera-se como
fato indiscutível a suposição de que uma foto é construída/percebida ponto a
ponto: para ver uma paisagem complexa, seria necessário discernir antes seus
pontos/ingredientes; somente então, ponto a ponto, a foto seria composta.
Grande parte da linguagem da didática é tributária desta última pressuposição,
como é o caso, por exemplo, das "listas de pontos" a serem estudados,
em provas ou concursos.
De modo geral, as máximas cartesianas predominam na
organização de todo o sistema escolar, mas sua influência é mais aguda à medida
em que se avança para os níveis superiores do ensino. A análise dos livros
didáticos utilizados, nas diversas disciplinas, revela certa cristalização de
percursos, no tratamento dos conteúdos dos programas, o que conduz a uma
aparência de ordem necessária dos assuntos apresentados. A idéia de que alguns
assuntos devem ser ensinados antes de outros é freqüentemente superestimada,
ignorando-se uma rica diversidade de contextos, de centros de interesse e de
possibilidades de percursos. Nos cursos superiores, as palavras de ordem
cartesianas têm conduzido, muitas vezes, a um enrijecimento excessivo das
estruturas curriculares, reduzindo toda a possibilidade da composição pessoal
de um cardápio de estudos a um estreito leque de optativas e não favorecendo
uma formação pessoal, ou mesmo uma teia de interações mais efetivas entre as
diversas disciplinas componentes dos currículos dos diversos cursos. Os
próprios professores organizam-se em Departamentos, cujo significado pode ser
apreendido pelo elenco de disciplinas que oferecem, e cuja articulação lógica
com os demais departamentos é bastante restrita, limitando-se, quase sempre, a
aspectos formais ou administrativos. E as possibilidades de uma convivência
acadêmica, de uma interação intelectual efetiva, de uma partilha de
conhecimentos tácitos desenvolvidos individualmente no exercício do trabalho
acadêmico, ficam restritas a momentos situados à margem da organização do
ensino, ou dependentes de situações fortuitas, decorrentes de iniciativas
isoladas.
Poucas são as unidades universitárias que escapam a
uma caracterização como a que se acabou de esboçar. Na Universidade de São Paulo,
por exemplo, o Instituto de Estudos Avançados (IEA) tem uma estrutura
significativamente distinta: as áreas que agregam professores e alunos não se
caracterizam como departamentos, mas constituem pólos de investigação com
temática definida, estando associadas a projetos em andamento. As atividades
realizadas são de freqüência livre a todos os interessados, não constituindo
cursos formais, como os de graduação. A temática das diversas áreas é, quase
sempre, interdisciplinar, e os interesses envolvidos transcendem, seguramente,
o âmbito das disciplinas acadêmicas. Não existem, pois, professores ou alunos
permanentes, ocorrendo, ao longo dos anos, uma circulação de temas e de pessoas
que parece fundamental para a fecundidade das atividades realizadas.
Ocorre, no entanto, que a possibilidade de uma
organização alternativa, como a do IEA, decorre exatamente do fato de o mesmo
não ministrar cursos regulares — nem de graduação, nem de pós-graduação —, o
que reforça a idéia de a estruturação dos cursos formais oferecidos na
Universidade estar radicalmente comprometida com os padrões cartesianos de
organização. A hegemonia é tão marcante que se chega mesmo a inquirir: poderia
ser de outra forma? Sem dúvida, poderia, e o recado está sendo transmitido,
continuamente, pela forma como o conhecimento se organiza no mundo do trabalho,
nos setores de produção. Analisaremos, agora, tal ponto.
Inicialmente, é importante registrar que, sobretudo
a partir do século XIX, o mundo do trabalho acolheu, progressivamente, a perspectiva
cartesiana como padrão de organização. Na produção de automóveis, a linha de
montagem traduzia com perfeição o esmigalhamento de uma tarefa complexa,
reduzida à realização de microtarefas, esvaziadas de sentido mas devidamente
encadeadas de modo a garantir, em algum sentido, a eficácia da produção.
Chaplin captou com perfeição a dimensão caricata de tal redução, explicitando-a
em interessante filme, no início do século XX (Tempos Modernos). Nos
últimos 30 a 40 anos, no entanto, outros padrões de organização têm ocupado
cada vez mais espaço, inspirados, em grande parte, na utilização intensiva de
tecnologias informáticas. De modo geral, é possível reconhecer-se uma crescente
valorização do trabalho em equipe, do envolvimento coletivo na realização de um
projeto, da interação entre os participantes, além de maior
flexibilidade/mobilidade na atribuição de tarefas. É nesse cenário que se
enraíza e se irradia, tanto em sentido literal quanto em sentido metafórico, a
palavra rede.
A idéia de rede constitui uma imagem emergente para
a representação do conhecimento, inspirada, em grande parte, nas tecnologias
informacionais. Nesta perspectiva, conhecer é como enredar, tecer
significações, partilhar significados. Os significados, por sua vez, são
construídos por meio de relações estabelecidas entre os objetos, as noções, os
conceitos. Um significado é como um feixe de relações. O significado de algo é
construído falando-se sobre o tema, estabelecendo conexões pertinentes, às
vezes insuspeitadas, entre diversos temas. Os feixes de relações, por sua vez,
articulam-se em uma grande teia de significações e o conhecimento é uma teia
desse tipo.
Para explicitar a fecundidade da idéia de rede,
examinaremos sucintamente algumas de suas características, que podem ser associadas
tanto às redes em sentido literal (redes de computadores) quanto à rede como
imagem do conhecimento. Tratam-se de palavras-chave, que participam da
constituição da imagem da rede tal como as palavras "decomposição",
"encadeamento", "pré-requisitos" ou "seriação"
participam da imagem da cadeia como metáfora para o conhecimento. Acentrismo, historicidade, heterogeneidade são
exemplos de palavras correlatas, associadas à idéia de rede como representação
do conhecimento.
Comecemos com o acentrismo. A teia de
significados que representa o conhecimento não tem centro. Ou o centro pode
estar em toda parte, o que equivale a afirmar a inexistência de um centro
absoluto. Como o universo da Cultura, o do conhecimento tem apenas centros de
interesse. Nossa atenção é que elege centros, diretamente associados às
circunstâncias que nos regulam, às relações que vivenciamos. Para tratar dos
mais diversos conteúdos, dentro de cada disciplina ou em temas
transdisciplinares, não existe algo como um ponto de partida necessário, nem um
único caminho a ser seguido. Múltiplas são as portas de entrada na rede de
significações e partilhá-las é o que importa: a porta por onde se adentrou à
rede perde-se na memória. Múltiplos são os percursos possíveis, na
estruturação, no planejamento dos trabalhos de uma disciplina ou de um curso.
Tais pontos de vista, no entanto, permanecem muito distantes da organização da
escola, em seus diversos níveis. A imagem do encadeamento, da ordem necessária
para a apresentação dos conteúdos permanece amplamente hegemônica. Predomina a
idéia da existência de caminhos necessários, de uma ordenação padronizada, da
superestimação da pressuposição da existência de temas que devem ser
ensinados/aprendidos na série adequada, em determinada idade. Os currículos e
os livros didáticos, de modo geral, reforçam tal perspectiva, cristalizando
percursos e alimentando a impressão da necessidade de uma ordem igual para
todos os contextos. No caso da Universidade, a introdução de disciplinas
optativas constitui, em geral, apenas um paliativo: os currículos permanecem
essencialmente como encadeamentos rígidos, que limitam os alunos mais criativos
e punem os "dissidentes".
Uma segunda característica importante das redes de
significações como imagem do conhecimento é o fato de elas estarem em
permanente estado de atualização, ou de sua natural historicidade.
Continuamente, relações são incorporadas à rede, ou são abandonadas por não
refletirem mais articulações vivas entre os objetos ou os temas envolvidos. Em
outras palavras, a construção do conhecimento é permanente, é viva, nunca se
pode fundar em definições fechadas, nunca é definitiva. A contínua metamorfose,
ou a natural historicidade dos conceitos é uma regra fundamental.
Um professor de Matemática, por exemplo, que
pretende introduzir a idéia de logaritmo, hoje, recorrendo a características do
tema como a transformação de multiplicações em adições, ou, de modo geral, à
simplificação de cálculos, provavelmente não será entendido pelos alunos: com
tantos instrumentos para a realização de cálculos, quem poderia estar
interessado em um recurso tão pouco natural como os chamados "logaritmos
naturais"? Atualmente, os logaritmos constituem um tema mais importante,
talvez, do que no século XVII, quando foi desenvolvido. Mas o feixe de relações
que caracteriza tal idéia é, hoje, fundamentalmente distinto. A simplificação
de cálculos tornou-se um coadjuvante menor. O protagonismo fica por conta de
crescimento ou decrescimento de grandezas que variam em um espectro muito largo,
e que são convenientemente representadas por potências de 10, ou de outra base
qualquer. Os logaritmos, que são apenas um nome extravagante para
"expoente", constituem elementos fundamentais nessa linguagem
"exponencial", associada à determinação da magnitude de terremotos
(Escala Richter), ao caráter ácido ou básico de uma solução (pH), às
intensidades sonoras (decibel), ou ao crescimento ou decrescimento exponencial
de certa quantidade de uma substância radiativa. Todas as escalas logarítmicas
anteriormente mencionadas têm origem no século XX, constituindo elementos
fundamentais no feixe de relações que caracteriza, atualmente, a idéia de
logaritmo.
É importante mencionar que o caso dos logaritmos
não apresenta qualquer excepcionalidade: de uma forma ou de outra, a
necessidade de atualizações de significado constitui a regra geral. Tal fato,
no entanto, não pode servir para desestruturar nossas crenças, ou mesmo
relativizá-las de modo absoluto. Os significados evoluem e podem transformar-se
mas o argumento básico em defesa de sua construção na perspectiva de que sejam
eternos — enquanto durem — é o fato de que as próprias transformações de
significado têm significado. As redes de significações não se metamorfoseiam
aleatoriamente, ou como um caleidoscópio. Para apreender o sentido das
transformações, o caminho é um só: é preciso estudar História. Ninguém pode
ensinar qualquer conteúdo, das ciências às línguas, passando pela matemática,
sem uma visão histórica de seu desenvolvimento. É na História que se podem
perceber as razões que levaram tal ou qual relação, tal ou qual conceito, a
serem constituídos, reforçados ou abandonados. É na História que buscamos o
significado das transformações de significado.
A despeito de tal fato, em todos os níveis de
ensino, a relevância da História não parece proporcional a sua importância
efetiva na construção do conhecimento. Particularmente na Universidade, muito
além do âmbito dos historiadores profissionais, ou dos que se debruçam sobre
uma temática fecunda, ainda que, muitas vezes, autocentrada, como costuma ser a
História da Ciência, os estudos históricos deveriam ocupar um espaço cada vez
maior. Tanto como fonte de inspiração para a compreensão da contínua
transformação de significados das idéias, das noções, dos conceitos, quanto
como antídoto para o fascínio da tecnologia, com seu visceral desprezo pelo
passado.
Uma terceira característica das redes como imagem
do conhecimento é a heterogeneidade. A imagem da rede continuamente
nos lembra de que os nós/significados são naturalmente heterogêneos, no sentido
de que envolvem relações pertencentes a múltiplos conteúdos, a diversas
disciplinas. As noções, os conceitos realmente relevantes sempre terminam por
ultrapassar as fronteiras disciplinares. Um conceito como o de "semelhança"
pode ser apresentado pelo professor de Matemática a seus alunos de maneira
estritamente disciplinar: os casos de semelhança de triângulos são examinados
de modo analítico, operam-se classificações e demonstram-se teoremas ou
relações entre os elementos envolvidos, exemplifica-se ... e passa-se a outro
tema. Certamente tal tratamento é possível, ainda que sempre signifique um
empobrecimento no significado da noção em tela. De fato, a idéia de semelhança
pode ser naturalmente associada com fotografias, ampliações, reduções,
maquetes, mapas, com relações de proporcionalidade entre partes do corpo
humano, entre outros temas.
Insistimos em que, em termos disciplinares, a
heterogeneidade é a regra geral e toda tentativa de homogeneização é
artificialmente construída. Uma criança com quatro ou cinco anos começa a
interessar-se por letras e números mais ou menos simultaneamente, sem
distinções disciplinares do tipo "letra é português, número é
matemática"; à medida em que avança no processo de escolarização, as
fronteiras disciplinares tendem a ser crescentemente demarcadas.
Paulatinamente, o conhecimento escolar organiza-se em compartimentos
disciplinares, a ponto de, sobretudo a partir da segunda metade do ensino
fundamental, a disciplina que se ensina passar a ser o canal de comunicação
decisivo na relação professor/aluno, no processo de ensino/aprendizagem. Se nas
séries iniciais somos professores de crianças, a partir da 5ª série passamos a
ser professores de matérias, de disciplinas. E além de perdermos o contato com
o aluno como pessoa, contribuímos para acentuar um estágio de fragmentação do
conhecimento, de esmigalhamento do sentido que se torna bastante explícito por
ocasião dos exames vestibulares. Na Universidade, tal tendência pode ainda
acentuar-se, agravada pela fraca interação entre algumas das Unidades ou
Departamentos que receberão os alunos, e pelo crescente convívio de professores
e alunos apenas com "especialistas" de temáticas contíguas.
Outras características das redes poderiam ser mencionadas,
mas vamos nos limitar às três já citadas: acentrismo, historicidade e
heterogeneidade. A imagem do conhecimento que se constrói de acordo com tais
características é fundamentalmente distinta do encadeamento linear cartesiano,
e a organização das ações docentes, como o planejamento ou a avaliação, está
diretamente associada à imagem subjacente. Uma superação da excessiva
fragmentação disciplinar, da rigidez na estruturação dos currículos, da redução
nos espaços do conhecimento aos limites das salas de aula, da estreiteza no
espectro de instrumentos de avaliação é favorecida, seguramente, pela
consideração da imagem da rede na representação do conhecimento.
No caso específico da Universidade, a contínua
reconfiguração das disciplinas no mapeamento do conhecimento nem sempre se
encontra em sintonia com a rígida estruturação em departamentos. Nos cursos de
pós-graduação, no mapeamento de interesses dos pesquisadores, as áreas de
atuação e as linhas de pesquisa costumam ser mais ágeis, funcionando como "cartas
móveis", como mapas continuamente atualizáveis. Nos cursos de graduação,
em geral, tal mobilidade está longe de se realizar.
O caso do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Educação da USP (FEUSP) pode constituir um exemplo interessante de ser analisado.
Os três Departamentos que constituem a FEUSP — Ciências da Educação,
Metodologia e Administração Escolar — operam em territórios muito bem
demarcados, agregando os professores em torno de disciplinas específicas,
ministradas, ano após ano, com fracas interações, como ocorre na maior parte
das Unidades. A organização do Programa de Pós-Graduação — mestrado e doutorado
— segue, no entanto, um padrão diferente: os professores organizam-se em nove
Áreas Temáticas, que podem agregar membros de diferentes Departamentos em torno
de uma problemática comum, caracterizada por algumas linhas de pesquisa. Um
mesmo professor pode participar de mais de uma Área Temática, o que ocorre
efetivamente com boa freqüência. E além disso, na composição do cardápio disciplinar
dos pós-graduandos, não existe qualquer disciplina obrigatória: a escolha por
parte dos alunos, devidamente aconselhados pelo Orientador, deve decorrer da
sintonia com o projeto que está sendo realizado.
Trata-se, portanto, de um padrão de organização do
conhecimento muito interessante pelas possibilidades de composição de uma
trajetória pessoal para cada estudante, o que parece extremamente desejável.
Tal padrão é pouco comum nos diversos cursos na Universidade, situando-se muito
distante do que corresponde à quase totalidade dos cursos de graduação —
inclusive nos que são realizados na FEUSP.
Universidade, cultura, conhecimento tácito
São duas as características mais marcantes — e
conflitantes — da organização do conhecimento na escola, sobretudo na
Universidade: em primeiro lugar, há as pressuposições cartesianas de
decomposição e encadeamento, como foi anteriormente examinado; em segundo
lugar, há a pretensão anticartesiana de objetividade do conhecimento, que
atribui pouco ou nenhum valor ao chamado "conhecimento subjetivo". À
medida em que, para Descartes, todo conhecimento deriva do sujeito pensante, ou
"existo porque penso", filósofos alinhados com as correntes mais
prestigiosas do neopositivismo buscaram sanar tal "deficiência" do
cartesianismo, estabelecendo as bases firmes de um "conhecimento
objetivo". É precisamente este o título de um denso e influente livro de
Popper — Objective knowledge —, com diversas versões em
português. Desqualificando inteiramente a componente pessoal do conhecimento,
Popper (1975: 77) afirma: "simplesmente não existe conhecimento subjetivo
puro, genuíno, ou não adulterado".
Existe algo de paradoxal, ou mesmo de
esquizofrenia, na convivência dessas duas características do conhecimento,
ambas hegemônicas relativamente a outros pontos de vista. Como se sabe, para
corrigir o "desvio" cartesiano, Popper postulou a existência de três
mundos: o mundo 1, chamado mundo físico; o mundo 2, de nossas experiências
pessoais conscientes, relativas ao mundo 1; e o mundo 3, que é o dos conteúdos
lógicos dos livros, das bibliotecas, das memórias dos computadores etc., único
lugar do conhecimento "objetivo". Todo conhecimento do mundo 2
(conhecimento "subjetivo") seria, segundo o autor, dependente de
teorias formuladas lingüisticamente no mundo 3, onde sobrevivem as máximas
cartesianas de decomposição e encadeamento lógico.
Uma perspectiva inteiramente diversa é a de
Polanyi, em sua obra fundamental intitulada Personal knowledge(1958),
que permanece sem versão em português. Para Polanyi, o conhecimento é sempre
pessoal, nunca pode ser reduzido às representações do mesmo codificadas em
livros ou organizadas em teorias. Cada um de nós, sobre qualquer tema, sempre
sabe muito mais do que consegue codificar ou explicitar em palavras. Em seu instigante
livro, Polanyi expressou tal fato representando o conhecimento pessoal como um
grande iceberg: a parte emersa seria o que é passível de
explicitação e o montante submerso corresponderia à dimensão tácita do
conhecimento, que sustenta o que é explícito ou explicitável. Um atleta, por
exemplo, pode demonstrar uma extrema competência na realização de determinada
prova, ainda que não consiga explicar em palavras as ações que realiza. Por
razões análogas, um aluno pode conhecer um assunto e não ter um bom desempenho
em uma prova, ou simetricamente, alguém pode discorrer de modo pertinente sobre
valores sem apresentar uma prática minimamente consentânea com os mesmos.
De acordo com Polanyi (1983: 95), a necessária
convivência e o equilíbrio dinâmico entre as dimensões tácita e explícita do
conhecimento constituem uma característica humana fundamental. Ainda que ele
rechace com veemência a identificação, no ser humano, do tácito com o
inconsciente e do explícito com o consciente, é possível, no entanto, estabelecer
uma comparação entre as relações tácito/explícito e consciente/inconsciente. De
fato, elementos ou motivações inconscientes são inerentes à constituição de
todo ser humano, orientando sem determinações as ações ordinariamente
realizadas, e não é possível vislumbrar a existência de um indivíduo são cuja
unidade/totalidade possa ser caracterizada apenas pela sua dimensão consciente.
De modo análogo, a permanente interação entre as componentes tácita e explícita
do conhecimento não constituem um "defeito" do ser humano, mas um
elemento distintivo imanente, especialmente importante e freqüentemente
subestimado.
Na perspectiva de Polanyi, a organização do
conhecimento na escola concentra-se excessivamente no explícito, no que é
verbalizável, ainda que nunca venha a ser plenamente sentido ou vivenciado
pelos sujeitos. As atividades escolares privilegiam o explicitável, tanto no
desenvolvimento dos trabalhos quanto nos processos de avaliação, sendo
freqüente os casos em que conteúdos disciplinares são transmitidos pelos
professores — e devolvidos pelos alunos nas provas — sem que ocorra uma
"incorporação" efetiva, que é caracterizada por Polanyi por meio de
um neologismo: indwelling. Uma tradução aproximada de indwell poderia
ser "residir em": o conhecimento escolar freqüentemente não chega a
"residir" no aluno, que o recebe e o devolve apenas no âmbito do
explícito.
Em outras palavras, os conteúdos disciplinares
normalmente examinados o são na forma escrita, expressos por meios lingüísticos
ou lógico-matemáticos, permanecendo ao largo todos os elementos subsidiários
que necessariamente os sustentam. Na organização das ações docentes seria
necessário considerar-se que tão importante quanto alimentar o conhecimento
explícito é sua incorporação efetiva por parte dos alunos. Além disso, numa
perspectiva de extração, ou de edução, que se aproxima da maiêutica socrática,
a tarefa básica do professor seria a construção de estratégias de emergência de
conhecimentos tácitos, resultantes tanto de atividades escolares quanto de
vivências fecundas em ambientes extra-escolares.
Nas empresas, a importância do conhecimento tácito
já vem se explicitando há algum tempo. Nos últimos dez anos, muitos livros
sobre economia ou administração trazem no título a palavra
"conhecimento" ou outra correlata: "Conhecimento
empresarial", "Capital intelectual", "Criação do
conhecimento na empresa", "Conhecimento como um ativo" são
apenas alguns exemplos. Em quase todos eles, os livros de Polanyi são citados,
com maior ou menor intensidade, quase sempre em um contexto de valorização do
conhecimento que vai além das tarefas costumeiramente realizadas. E dado que a
partilha do tácito não pode ser considerada uma atividade espontânea, busca-se
arquitetar estratégias de emergência, em ambientes variados. Nas escolas
regulares, tais preocupações ainda parecem muito distantes, tanto no que se
refere ao conhecimento dos alunos quanto no que diz respeito ao dos
professores.
No que tange à organização do conhecimento na
Universidade, a necessidade da busca de uma relação mais adequada entre o
tácito e o explícito revela-se principalmente no problemático equacionamento
das relações entre os elementos do par Cultura/Educação.
De fato, a Cultura é o natural sítio do tácito,
onde a arte e os valores são incorporados, cultivados e partilhados.
Certamente, em termos culturais, existem momentos de explicitação, como são as
festas, os rituais, as exposições, as comemorações de diferentes naturezas,
visando a explicitar valores partilhados. Tais momentos, no entanto, constituem
apenas a ponta do iceberg: o fundamental subjaz, tacitamente. Se
tudo se comemora, nada é comemorado; se todos os momentos são de festa,
descaracteriza-se o festejar; e o excesso de rituais conduz, freqüentemente à
banalização dos mesmos.
Atualmente, a Universidade parece imediatamente
associada à produção científica que gera tecnologia, sendo possível ouvir-se
defesas enfáticas da necessidade de uma sintonia fina entre a formação
universitária e a preparação para o trabalho, ou entre a produção acadêmica e a
geração de tecnologias. É importante lembrar, no entanto, que tal instituição
nasceu diretamente relacionada à preservação da Cultura e neste sítio manteve seu
centro de gravidade por muitos séculos. Apenas a partir da Revolução Industrial
do século XVIII, com o surgimento das primeiras escolas superiores de formação
profissional, iniciou-se um lento deslocamento de tal centro de gravidade no
sentido da preparação para o mundo do trabalho e da produção de tecnologias
diretamente relacionadas com o mesmo.
A subestimação do papel da Cultura é tão nítida
que, nas formas de estruturação mais freqüentes, a organização da Universidade
reserva uma relação mais direta com a Cultura a uma de suas várias
pró-reitorias. Além disso, a chamada Pró-Reitoria de Cultura e Extensão divide
suas atenções com outro componente, epistemologicamente difuso, como é a
extensão de serviços à comunidade.
Sem dúvida, tal como o tácito é subvalorizado em
benefício do explícito, a Cultura perdeu terreno na organização da
Universidade. Muitas energias são empregadas para garantir-se uma nem sempre
entendida indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão de
serviços à comunidade, enquanto é apenas tangenciada outra indissociabilidade,
realmente fecunda e decisiva, que é a que deve existir entre a Cultura e a
Educação. Questões menores do ponto de vista epistemológico, como são as
polarizações formação geral/formação específica, ou "cultura
geral"/conteúdo disciplinar, não passam de situações particulares da
questão de fundo: tal como não se pode falar de projetos sem uma arquitetura de
valores que os sustentem, nem de transformação sem a consciência do que deve
ser conservado, não se pode falar em Educação sem Cultura, nem de Cultura sem
Educação.
A diminuição relativa da importância da Cultura na
Universidade, com o deslocamento do foco das atenções para a formação
profissional e para o desenvolvimento tecnológico simboliza, em outro nível, a
progressiva subsunção do conhecimento em sentido amplo — que inclui a arte como
uma forma de conhecer, por exemplo — pelo chamado conhecimento científico, e
mais fragmentadamente ainda, pelo conhecimento disciplinar. A palavra
"cientista" foi utilizada pela primeira vez no século XIX; antes, não
havia "cientistas", mas sim filósofos, que buscavam a sabedoria em
sentido amplo. Hoje, os cientistas mais valorizados são os que ostentam um
rótulo adicional de "especialista" em uma disciplina, ou em uma subdisciplina,
ou em fragmento ainda menor de uma componente disciplinar. A necessidade de uma
visão transdisciplinar integradora faz-se notar em todos os terrenos,
revelando-se em indícios como o seguinte: ao mesmo tempo em que as pesquisas
correspondentes ao Projeto Genoma ocupam páginas e páginas de jornais e
revistas, nunca se falou tanto, nos mesmos meios, de Bioética, nunca se
reivindicou tanto a necessidade de uma reflexão sobre valores no terreno da
produção científico-tecnológica.
Nos últimos anos, um número crescente de empresas
tem concentrado suas atenções na preparação direta de seus próprios
profissionais, constituindo o que tem sido chamado de "Universidades
Corporativas". Tal expressão pressupõe, sem dúvida, certa tolerância
terminológica que não nos cabe examinar aqui: mesmo com todo o estímulo ao
desenvolvimento das instituições privadas de ensino superior, o próprio
Ministério da Educação mantém certos critérios mínimos para regular o uso da
palavra "universidade". Voltando ao ponto que aqui importa analisar,
dificilmente uma universidade pública, por exemplo, pode disputar com uma
empresa "X" a chancela de uma preparação mais adequada de
profissionais para os quadros da própria empresa. Entretanto, na formação de um
verdadeiro profissional, tanto quanto a competência técnica, contam a
sustentação da mesma por uma arquitetura de valores socialmente acordados, que
conduzem a um compromisso público relacionado com a competência que se
professa, como também certo nível de auto-regulação profissional, a qual
funciona como o correlato da autonomia do cidadão, no âmbito do exercício de
uma atividade remunerada. Sem tais ingredientes, a formação
"universitária" se reduz ao desenvolvimento de uma competência
técnica que, por mais sofisticada que possa parecer, não distingue o
profissional do mercenário, ou a uma ausência de compromissos outros que não os
assumidos com os próprios pares, o que reduz o profissionalismo a uma de suas
caricaturas — o corporativismo. Em uma universidade corporativa, portanto, o
espectro de valores que orienta os projetos é, em geral, muito estreito,
limitando-se aos objetivos econômicos, aos projetos empresariais ou aos
interesses que a sustentam.
Resumindo, afirmamos que, ainda que não se possa
diminuir a importância da Universidade na formação profissional e na geração de
tecnologias, é na construção coletiva de uma arquitetura de valores em sentido
amplo que a função da Universidade se revela fundamental e insubstituível. A
associação da reflexão acadêmica a uma espécie de "inteligência"
nacional, matriz de onde derivará a diversidade de projetos coletivos que
constituem a vida e a autonomia do país, não pode ser compreendida sem uma
relação direta com a germinação dos valores que sustentarão tais projetos. Uma
"inteligência", mesmo que possa ser caracterizada como
"científica", não pode carecer de uma arquitetura de valores,
cultivados tacitamente na prática acadêmica, e que compõem um espectro muito
mais amplo do que o dos valores econômicos ou empresariais.
Conhecimento, dádiva, valor de laço
Partimos do fato de que, hoje, o conhecimento é a
grande riqueza e a Educação é o principal instrumento para sua
"distribuição". No mundo inteiro, no entanto, de forma aparentemente
caprichosa, nunca se valorizou tanto a Educação no nível do discurso e nunca as
desigualdades na distribuição das riquezas cresceram tanto, em todos os
setores. Na mídia, nos meios artísticos, nos esportes, vivenciam-se situações
de disparidades de remuneração por tarefas nominalmente equivalentes que beiram
o paroxismo: segundo o chamado star system, o "vencedor"
leva tudo; o segundo lugar é o primeiro dos "perdedores".
Similarmente, em todo o universo do trabalho, ao mesmo tempo em que o
desemprego é considerado o mal do fim do século (ou do início do novo século),
o excesso de trabalho também o é: quem está fora do grande laço em que o
mercado se tornou, cada vez tem mais dificuldades para adentrá-lo; quem está
dentro, se esfalfa ansiosamente para não sair dele.
Especificamente no que se refere ao conhecimento, a
despeito de facilidades crescentes para a produção de livros ou de softwares como
instrumentos de socialização e de facilitação do acesso aos mais variados
saberes, é crescente a concentração do poder de distribuição em um pequeno número
de empresas, acentuando as desigualdades por meio de um sufocamento dos
pequenos produtores (editoras, por exemplo).
Na verdade, não parece haver qualquer capricho
nesse aparente paradoxo. O fato é que a grande riqueza que o conhecimento
representa ainda não encontrou, no universo da Economia, um tratamento adequado
a suas peculiaridades. Na condição de um "bem", de um
"ativo", de um fundamental fator de produção, o conhecimento
apresenta características bastante distintas daquelas de uma mercadoria em sentido
industrial. Enquanto a economia industrial trabalha e projeta na perspectiva da
obsolescência, do desgaste pelo uso, da efemeridade e de reposições em períodos
cada vez menores, o conhecimento é um bem que não é fungível, que quanto mais
"uso", mais novo fica. É certo que, freqüentemente, se ouvem
cantilenas emitidas por entusiasmados defensores da economia de mercado,
argumentando sobre a importância da Educação com base em afirmações do tipo
"até o ano de 2010, a quantidade de conhecimento no mundo dobrará a cada
80 dias", ou então, "seis meses depois de formados, metade do nosso
conhecimento evaporou-se, perdeu o sentido". Tratam-se, no entanto, de
equívocos terminológicos, de usos inadequados de termos como conhecimento ou
Educação. No exemplo anteriormente citado, é evidente a confusão entre
"dados" ou mesmo "informações" e "conhecimento".
É muito fácil, por exemplo, dobrar um banco de dados, ou mesmo, a quantidade de
informações sobre qualquer tema. Assim como é verdade que a fragmentação e a efemeridade
constituem a natureza da informação. Mas o conhecimento é mais do que o mero
acúmulo de dados, ou a mera justaposição de informações datadas. Falar de
conhecimento é falar de teorias, não em sentido formal, mas em sentido lato,
mais próximo da raiz etimológica que associa a teoria a uma visão organizada
que leva à compreensão.
Nesse sentido, é muito difícil falar-se em
"acúmulo" de conhecimento, de "nível" de conhecimento. As
visões transformam-se, os cenários se reconfiguram, e se no âmbito dos instrumentos
da produção tecnológica existe certo consenso sobre a idéia de progresso, no
que se refere às relações humanas, às instituições políticas, às artes, ou em
geral, à Cultura, o mesmo não pode ser dito. Em que sentido se pode comparar o
"nível" de conhecimento de Aristóteles com o de um cientista do
século XXI? Em que situação, mesmo no cenário científico, seria possível
caracterizar-se um progresso linear que possibilitasse uma contabilidade do
tipo "dobrar" a quantidade de conhecimento? Como comparar o
"nível" da música, ou da arte, em geral, do século XVIII com a dos
dias atuais?
Analogamente, se na economia a lei da oferta e da
procura regula os preços, e o controle dos estoques é um elemento fundamental,
no caso do conhecimento, não se pode falar propriamente em "estoque",
ou ele não pode ser considerado finito. De fato, o conhecimento é um
"bem" que posso vender, doar ou trocar sem ter de ficar sem ele, o
que conduz a contabilidade econômica a verdadeiros paradoxos. Esconder o que se
conhece para aumentar o valor do que se sabe, ou controlar excessivamente a
circulação de certo "conhecimento", tendo em vista aumentar seu
preço, pode produzir, no âmbito da economia do conhecimento, um efeito
contrário ao desejado. Existem diversos exemplos de grandes empresas que
fizeram apostas nesse sentido e hoje são consideradas decididamente
equivocadas.
Na verdade, o par valor de uso/valor de troca
parece insuficiente para uma compreensão satisfatória do modo como o
conhecimento naturalmente circula entre "produtores" e
"consumidores". Existe uma multiplicidade de situações em que os
papéis referidos são diluídos entre os participantes da teia de relações
significativas, e os significados do trabalho e da própria vida em sentido
pleno podem ser associados a um permanente movimento entre o aprender e o
ensinar. Essa é, por exemplo, a perspectiva de Schaff (1990), para quem, numa
sociedade informática, "o significado do trabalho é a Educação".
A estrita troca de equivalentes e o sentido
puramente utilitário não podem explicar o que se passa no universo das relações
entre professores e alunos, muito menos o significado da vida, das artes, ou
ainda, da filosofia ou da religião. Qual a utilidade de uma criança, de um
poema, de uma música? Quanto valem um sorriso, um abraço, um rim, um coração?
Como distinguir os âmbitos em que o valor se sobrepõe ao preço ou o preço é
indício de valor?
Nas economias pré-mercantis, a forma básica de
circulação de bens era a dádiva, eram os presentes: dar, receber, retribuir
eram os instrumentos para a criação de laços, para o estabelecimento da
harmonia. Paradoxalmente, o ato de dar, que é sempre uma demonstração de
superioridade em algum sentido, é a essência da busca de relações equilibradas,
harmoniosas. A retribuição era o modo de buscar-se o reequilíbrio dos laços,
das relações. Há o tempo de dar e o tempo de receber. É preciso respeitar as
circunstâncias. Uma retribuição imediata pode assemelhar-se a uma recusa. E
nada envenena mais uma relação do que o rechaço de uma dádiva sincera. É
interessante notar que talvez não seja mero acaso o fato de uma mesma palavra — gift —
significar tanto "presente" quanto "veneno", dependendo da
língua que a acolhe: em inglês, é presente; em alemão, é veneno; em holandês, é
tanto presente quanto veneno... Uma retribuição imediata também pode sugerir
uma troca de equivalentes. Uma aparência mortal quando se oferece um presente,
cuja etiqueta com preço apressamo-nos a arrancar, cujo valor econômico
procuramos, muitas vezes, disfarçar.
A verdadeira doação, a dádiva efetiva é
sinceramente generosa mas faz parte de sua natureza certa dissimulação
igualmente generosa: quem recebe, se diz "obrigado" (a reconhecer a
superioridade, a retribuir para reequilibrar a relação); quem dá, diz "por
nada", ou "de nada", ou "não se sinta obrigado, isto não é
nada". A circunstância da retribuição precisa ocorrer de modo natural, na
convivência enriquecida pelos laços criados.
Em suas análises sobre o dom em sociedades
pré-mercantis, Mauss foi premonitório em muitos de seus insigths,
ao registrar a permanência de relações dadivosas no seio de sociedades
marcadamente mercantis. Quando escreveu seu Essai sur le don (1922),
nem de longe o mercado havia se imposto como forma quase exclusiva de
circulação de bens. Hoje, poder-se-ia mesmo afirmar que, na sociedade em que
vivemos, tudo parece estar à venda, a economia transformou tudo, ou quase tudo,
em mercadoria. Apenas em alguns âmbitos, cada vez mais restritos, discute-se a
legitimidade da submissão aos pressupostos do mercado: a Saúde e a Educação são
os exemplos mais candentes. Por outro lado, dificilmente uma economia de
mercado, mesmo a mais pujante, resistiria a uma eliminação de simulacros de
motivos para a circulação de dádivas (falsas), de dons (corrompidos), de simples
pretextos para a circulação de presentes, como soem transformar-se os notórios
"dia das mães", "dia dos pais", "dia das
crianças", entre outros. Também ocorre com muita freqüência certa redução
no significado de comemorações de diferentes tipos, envolvendo tanto atividades
esportivas como religiosas ou políticas, convertidas, quase sempre, em meros
pretextos para a circulação de presentes ou de bugigangas.
Insistimos em que, ao pensar-se o conhecimento como
um bem, dificilmente se pode entender seu modo natural de circulação, como o
que se realiza na relação professor/aluno, ou orientador/orientando, sem o
recurso à dimensão dadivosa. Não se trata de negar sua dimensão mercantil, mas
de não reduzi-lo a tal dimensão.
Nossa hipótese básica é a de que o desequilíbrio
crescente na distribuição de riquezas decorre fundamentalmente de uma crise na
idéia de valor, diretamente associada a uma ainda mal digerida transformação do
conhecimento no principal fator de produção. Se o mercado foi revolucionário a
seu tempo, significando a liberdade de escolha e a independência relativamente
aos laços e às hierarquias previamente determinadas pela estrutura social,
paulatinamente ele se transformou numa grande prisão, ou no único laço, que
aprisiona tanto os que estão dentro quanto os que estão fora dele. O
conhecimento como teoria, como visão que leva à compreensão somente pode ter
seu valor devidamente apreciado se não se olvidar o recado do poeta (Antonio
Machado):
"Todo necio
Confunde valor y precio".
Naturalmente, a crise na idéia de valor,
especialmente quando referida à insuficiência do par valor de uso/valor de
troca na referência ao conhecimento, não pode ser ultrapassada por meio do
retorno às dinâmicas pré-mercantis. Mas também não pode ser equacionada
ignorando-se certas dimensões do conhecimento insuficientemente contempladas
pelas dinâmicas mercantis.
Algumas tentativas extremamente engenhosas de
escapar dos paradoxos a que conduziu o tratamento do conhecimento como um bem
no sentido industrial têm sido continuamente realizadas. Pode ser esclarecedor
comentar algumas delas, como a de Boisot (1998). Ainda que se situando
estritamente dentro dos limites do mercado, com todas as pressuposições que o
configuram, ela oferece alguns elementos interessantes no sentido de mapear
tentativas de ultrapassagem da perspectiva mercantil. Em Knowledge
assets, Boisot caracteriza o conhecimento como um ponto em um espaço com
três dimensões. Para analisar o valor do conhecimento, considera um sistema
formado por três eixos, com escalas crescentes de zero a 100%.
Um dos eixos representa a dimensão abstrato/concreto:
quanto mais diretamente vinculado a um único contexto, a uma determinada
situação, menos valioso é o conhecimento; quanto mais abstrato, no sentido de
que as relações percebidas/estabelecidas são pertinentes a múltiplos contextos,
mais valioso é o conhecimento. Exemplificando com algum exagero mas sem
falsificação, se alguém sabe que 3 abacaxis + 4 abacaxis = 7 abacaxis, mas não
consegue saber o resultado de 3 bananas + 4 bananas, então seu
"conhecimento" vale muito pouco; conhecer que 3 + 4 = 7 exige que tal
relação seja reconhecida em todos os contextos que possam ser imaginados.
Um outro eixo representa a dimensão
não-codificado/codificado: quanto mais codificado, mais traduzido em palavras
ou símbolos gráficos, mais valioso é o conhecimento. Ainda que tal dimensão
possa se assemelhar à anterior, é possível uma distinção básica: um
conhecimento pode ser vinculado a um contexto, mas ainda assim, pode ser
passível de um registro escrito, de uma descrição pormenorizada, por exemplo,
de todas as etapas para realizar determinada tarefa; por outro lado, um
conhecimento pode transitar entre diferentes contextos apoiado exclusivamente
pela experiência de quem o pratica, sem qualquer registro escrito, sem qualquer
possibilidade de transferência para outras pessoas.
É no terceiro eixo, no entanto, que a perspectiva
mercantil aflora com nitidez: trata-se do eixo difundido/não-difundido. Nesse
sentido, quanto mais difundido é um conhecimento, menos valor ele tem (ou dele
pode ser extraído); quanto menos difundido, mais valioso, ou maior é a
possibilidade de exploração no mercado. Na perspectiva de Boisot, portanto, o
valor mínimo do conhecimento ocorre quando se sabe algo apenas de
modo vinculado a uma situação prática, não existem registros escritos que
viabilizem a utilização de tal conhecimento por outras pessoas, e o que é
"pior": todo mundo sabe; o valor máximo ocorre quando temos um
conhecimento abstrato, codificado e ainda não difundido. Tudo isso parece muito
bem equacionado, possibilitando a construção de estratégias de otimização na
extração de valor do conhecimento; no que se refere ao último eixo, tudo
funciona, no entanto, em sentido oposto ao dos objetivos educacionais, que
visam à partilha de significações e são regulados por valores maiores.
Apesar de a perspectiva de Boisot resolver algumas
das dificuldades práticas diagnosticadas na atribuição de valor ao
conhecimento, ela apenas reforça a sensação de que o sentido geral do movimento
de acumulação e de desigualdades crescentes seria, em certo sentido, aperfeiçoado.
Já há alguns anos, a busca de saídas para as
dificuldades resultantes da rigidez cartesiana na hierarquia universitária, no
encadeamento lógico das decisões em colegiados de diversos níveis, tem
conduzido a um aumento expressivo no número de Fundações, que possibilitam
maior agilidade nas decisões e maior flexibilidade em amealhar recursos para
diversas atividades acadêmicas. Uma teoria — no sentido de uma visão que leve à
compreensão — para iluminar a convivência e as interrelações entre as duas
estruturas — a acadêmica e a das Fundações — ainda está por ser esboçada, sendo
inevitáveis alguns conflitos de interesses e de valores, que, sem ela, só
tenderão a aumentar. A questão das Fundações, no entanto, é apenas a ponta
visível de um icebergimenso: não se trata de uma simples questão de
gestão de recursos, mas de uma complexa questão de atribuição de valor ao
conhecimento.
Para uma resposta a tal questão, parece necessário
esboçar uma teoria do valor que promova uma confluência entre as perspectivas
intra e extramercantis, e dê conta da natureza muito especial do
"bem" que efetivamente é o conhecimento. Enquanto tal teoria não se
configura, a organização do conhecimento na Universidade tendo em vista
exclusiva ou preponderantemente os elementos que caracterizam a forma mercantil
de circulação de bens é uma empreitada cheia de riscos, na qual o fundamental
pode estar se transformando em mero acessório, e os coadjuvantes menores podem
estar usurpando o lugar dos verdadeiros protagonistas, na grande representação
/ construção / preservação do conhecimento e da cultura.
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