domingo, 26 de fevereiro de 2012

Perspectivas recentes de desenvolvimento na América Latina

As perspectivas de desenvolvimento na América Larina, nos últimos tempos, têm se reconfigurado significativamente. A este respeito, escrevi o pequeno artigo abaixo por ocasião de um debate num fórum eletrônico coordenado pelo norte-americano Louis Proyect. Disponível aqui: http://archives.econ.utah.edu/archives



Recent perspectives about development in Latin America 

By Ivonaldo Leite
Latin America is a much more diversified and dynamic reality than the image presented in United States and Europe. It also is more complex than the image presented by some academic analysis.
Until the mid-1970s Latin America's major countries' growth rates were not far away from those of East Asia. It was the "lost decade" of the 1980s, as a consequence of the debt crisis and of deterioration in terms of trade, that set back Latin America. Even countries with high export performances such as Brazil had to use their earnings to cover their financial obligations, being forced to cut imports and public spending at a critical moment when international competition and technological revolution required the modernization of the productive structure. By Manuel Castells, taking the long-term view, it is possible to say that Latin America has struggled in the half-century after the Second World War to make the transition along three distinct, albeit overlapping, models of development. The first model was based on exports of raw materials and agricultural products, within the traditional pattern of unequal exchange, trading primary commodities for manufactured goods and know-how from most advanced regions in the world.
The second model was based on import-substituition industrialization, along the policies designed and implemented by United Nations-CEPAL economists (most notabily Raul Presbisch and Anibal Pinto), couting on the expansion of protected domestic markets. The third was based on an outward development strategy, using comparative cost advantages to win market shares in the global economy, trying to imitate the successful path of Asias' newly industrialized countries. The first model deteriorated in the 1960s, the second was exhausted by the end of the 1970s, and the third failed by and large in the 1980s as a critical period of restructuring in the relationship of Latin America to the new "global economy". Latin America, with all the singularities of such a diverse continent, was in the 1990s in process of being integrated into the "new economy global economy", albeit, again, in a subordinate position. Foreign investment has poured into countries, particulary Mexico, Chile, Brazil, and Argentina since the early 1990s.
Even Peru, which was literally in a process of economic disintegration during the 1980s, reversed its decline in 1993-1995, under impact of massive foreign direct investment flows and fast expanding trade, once Fujimori established some sort of political stability and imposed the Fujishock to regain the “good reputation” with IMF that country had lost under Alan Garcia. However, since massive foreign investment, both in stocks and in real estate assets, is an essential part of new economic dynamism in Argentina, Peru, Bolivia, Mexico, and to some extent Brazil, we may be observing an artificial increase of the wealth of these economies, by labeling as investment what is basically a transfer in ownership of existing assets, particularly in privatized state companies in strategic sectors. Thus, some of the region´s new prosperity could be a financial mirage, subject to reversible capital flows relentlessly scanning the planet for short-term profitability, as well as for positioning in strategic sectors (such as telecommunications).

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O 'homem só' sartreano em diálogo com Saramago: 'a ilha desconhecida que somos nós'

O Rio Grande do Norte é um estado da minha tríplice fronteira (PE-PB-RN) - estado com o qual tenho tenho o prazer de conservar laços. E nesta condição, tenho testemunhado, nos últimos tempos, a sua conjuntura promissora no debate universitário. A UERN, a UFERSA e a UFRN têm dado mostras neste sentido. O artigo que a seguir reproduzo, do Doutorando em Letras (UFRN) Pedro Fernandes de Oliveira Neto, é um exemplo disto. Trata dos fios de um singular diálogo entre Sartre e Saramago (Fonte: http://www.litcult.net/revistalitcult_vol7.php?id=563).  
O homem só sartreano e a ilha 

DIÁLOGOS ENTRE JOSÉ SARAMAGO
E JEAN-PAUL SARTRE


Pedro Fernandes de Oliveira Neto
O que me motiva esta relação de dois “S” europeus vem muito antes de meu primeiro contato com O conto da ilha desconhecida. Vem do contato mais específico com as discussões em torno do pensamento sartriano, denominado O ser e o nada. Desde já parece haver entre os dois – Saramago, escritor português, nobelizado em 1998 e Sartre, escritor e pensador francês, nobelizado em 1964 – elementos que além desses sublimes traços biográficos por si só justificam a necessidade ou proposta duma leitura de um através do outro. E é isso a que me proponho neste texto acerca do texto saramaguiano O conto da ilha desconhecida, publicado em 1997. Trata-se, pois, duma leitura espelhar em que buscarei a compreensão da constituição na referida obra saramaguiana pelas vias do existentialisme de Jean-Paul Sartre.
Cito, antes, os elementos comuns entre ambos de que mencionei acima. O primeiro é que o escritor português prima por uma literatura que reflita a história, a realidade e as inúmeras questões acerca do homem contemporâneo, sua existência e sua essência em suas mais diversas dimensões; e isto muito se aproxima do engagement sartriano, segundo o qual o escritor e, conseqüentemente a Literatura, têm o caráter de “desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade” (Sartre, apud Souza, s/d).
O segundo é o estilo saramaguiano de romancista. Sua escrita encontra-se ancorada num relato de curto fôlego, uma escrita que prima a (re)criação, seja a partir do fundir de gêneros, seja do cruzamento da oralidade com o plano da escrita – e aqui remeto aos romances escritos a partir de Levantado do chão, de 1980. Esse caráter novo dado ao romance, diz Sartre, dota-o, logo também a ficção, de um universo outro. Este romance, esta ficção a que estamos acostumados e que teve seus moldes na sociedade burguesa do século XVIII, mas precisamente no Romantismo, já não mais existe, o que existe, é o que o pensador francês chama de naif.
O terceiro – e aqui busco os subsídios à leitura a que me proponho – trata-se do pensamento saramaguiano. Este parece nutrir-se ou carregar reflexos, estilhaços do movimento existencialism precursionado por Jean-Paul Sartre. Digo isso por enxergar em pensamentos do escritor português, como: “Eu não sou pessimista, o mundo que é péssimo” (Saramago, 2004, não paginado) ou, “Como será possível acreditar num Deus criador do universo se o mesmo criou a espécie humana? Por outras palavras, a existência do homem, precisamente é o que prova a inexistência de Deus” (Saramago, apud Amaral Jr., 2007, não paginado) algo como em Sartre, “O mundo pode passar sem literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem” (Sartre citado por Souza, 2007, p. 42), “Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamo-lo quase sempre como um artífice superior (...) e Deus produz o homem segundo técnicas e uma concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel” (Sartre, 1978, p. 05). Nessa relação de pensamentos me parece haver uma proximidade em ambos os modos de pensar, reforçando em Saramago uma abordagem existencialista que considera o homem como ente finito e limitado nas suas capacidades, responsável, também, por suas escolhas e suas responsabilidades. Noutras palavras, nele se deposita tudo, a crença/descrença da/na sua figura.
Ao estabelecer estas relações parece-me necessário compreender ou buscar entender a posição e a composição do ser saramaguiano na sua escrita. Isto é, o valor a que atribuo esta discussão centra-se no fato de evidenciar as questões que dizem respeito ao ser no corpo da escrita do escritor português, recobrando o caráter de que a literatura na realidade em que se insere é palco de todas as vozes (polifonia bakhtiniana), tomando por missão refletir acerca desta realidade e quebrar a linearidade discursiva valendo-se de territórios outros das ciências humanas. Constituir uma leitura de cunho filosófico para o texto saramaguiano não é apenas para descobrir e nutrir-se de novos enunciados e/ou doutrinas, como uma obra artística portátil de verdades ou a elas volátil. Mas, o trato para com a literatura enquanto “documento na história das idéias e da filosofia, pois a história literária é paralela à história intelectual e a reflete” (Warren e Wellek, 2003, p. 139). Vou mais adiante, a literatura não só reflete, mas funda outras realidades, haja vista que o olhar literário coloca-se como que espelhos virados para dentro (SEIXO, 1996), isto é, ao mesmo tempo em que reflete a realidade este reflexo é a realidade outra.
Este refletir e fundar outras realidades se dá através do campo semântico da palavra. É o signo lingüístico semantizado, grávido em suas órbitas de sememas, a força motriz que rege este universo em que humanos de tinta e papel se situam. Ao tratar da palavra grávida de sentidos refiro-me à força maior, primordial e fundamental nessa constituição da realidade em si (reflexo) e ao mesmo tempo realidade outra. Refiro-me à metáfora. E é sob o signo da metáfora que entendendo Saramago e sua escrita, uma escrita que se dobra sobre si mesma. É neste vínculo cíclico da linguagem que me lanço à leitura do ser no conto em questão. A perspectiva existencialista do filósofo francês Jean-Paul Sartre é o meu aporte teórico, o apêndice de onde através de outras leituras (cito Abbagnano, 2001; Sass, 2007; Moutinho, 1995; entre outros sartrianos) busco traços à compreensão dessas reflexões.
Agora, se faz necessário para esse dialogar a apresentação desse território onde imprimirei minhas marcas e impressões, visto que é do corpo tatuado da ficção que me faço interlocutor, pressupondo haver entre eu e o texto uma interação ou feixes de diálogos para com ele. As rotas que estabeleço para essa leitura em Saramago estão delimitadas, conforme já expus, pelas fronteiras da metáfora maior que é este conto. Sua apresentação se faz necessária não apenas por isso, é que é nesse percurso, no movimento da própria narrativa em que penetro a fim de incutir minhas marcas.
Semelhante a uma parábola este conto se apresenta como um fato que se desdobra em dois movimentos no corpo narrado. O primeiro acontece de homem que bate à porta de um rei para pedir um barco no intuito de encontrar uma ilha desconhecida. O segundo marca-se a partir da concessão do pedido, a busca e o sonho, marcadores da tentativa de encontrar a ilha desconhecida.
Será nessa trajetória de busca, nesse lançar-se da personagem ao mundo, que centro minhas atenções, porque enxergo nelas, a personagem e sua trajetória, as molas propulsoras do texto saramaguiano e também onde poderei compreender a constituição do ser pela ótica sartriana. Esse roteiro ou rota dá-se num conjunto de imagens compósitas de um grane painel, que é o conto; estas imagens nada mais são que seis momentos distintos e, ao mesmo tempo imbricados que a seguir enumero-os: (i) o pedido do barco; (ii) a concessão do pedido; (iii) a saída pela porta das decisões da mulher da limpeza e seu abraçar a idéia do homem do barco; (iv) a limpeza do barco; (v) a busca por marinheiros; e (vi) a descoberta, depois do sonho, da realidade, da busca e da ilha desconhecida. É a costura desse trajeto que me interessa nesta leitura.
Assim sendo recorto o momento (i) que me parece necessário para entender o caráter da apresentação da personagem, momento em que ela se coloca para além, diante de um enigma – a ilha desconhecida:

Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco (O conto da ilha desconhecida, p. 17-18).
A personagem é posta e exposta ao veneno catatônico e paralisante das possibilidades humanas (a maior delas na figura do rei, centrada no comodismo, adiante veremos que não será apenas ele). A personagem é manifestada sob um indeterminismo, sob uma insignificância que nela se constrói como significante e determinismo ao projetar no pedido do barco sua busca pela ilha desconhecida:

E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar, Às minhas ordens, com os meus pilotos e os meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem piloto, só te peço um barco (p. 18).

Ao apenas demarcar a personagem central sem uma nomenclatura própria está intrínseca nessa forma esfarelada da personagem o procurar do escritor na constituição do homem e as estruturas fundamentais do ser; uma busca pela compreensão existencial “do quem somos”, “para onde vamos”. As marcas ausentes duma descrição, da especificidade das personagens, debilitadas ou mutiladas por um nome próprio e delimitadas apenas por seus papéis sociais recobra o caráter de um escritor pouco preocupado com o que há de mais imediato ou de supérfluo no ser humano, isto leva-nos a inferir que, reside no fosso do ser sua preocupação.
O pedido do barco por um simples homem comum a um rei, funda um espectro de ser que é livre, cujas responsabilidades por seus atos (o de desafiar o rei, por exemplo) e a subjetividade (o da crença na ilha desconhecida) convergem para a construção de ser único; a maestria nos seus atos e no seu destino será o que o constrói/constitui enquanto ser existencialista que enxergo. O homem que queria um barco é livre, produto de suas escolhas e seu corpo liga-se ao mundo através da consciência (aqui, fujo do cartesianismo “Penso, logo existo”) uma vez que ele se vai constituindo enquanto ser nessa relação. Tanto que as conquistas representam espécies de anéis modelares do ser. Isto é, o homem é seus atos e aqui justifico com a forma como o narrador compõe sua personagem central: num dado momento narrativo é ele o homem queria um barco (p. 9); noutro, o homem que ia receber o barco (p. 20); e, o homem do leme (p. 56); ou, por fim, apenas o homem (p. 62). A concessão do pedido (momento ii) é o que traceja as linhas do ser no corpo da obra e leio esta cena como a libertação da consciência de seu estado fixo, o estado comum, para o seu lançar-se ao mundo.
Nessa viagem o caráter de liberdade parece se manifestar enquanto condição necessária ao descobrimento do ser enquanto ser. Digo isso para introduzir aqui o caráter simbólico que remete a essa importância o momento (iii). O momento em que a mulher da limpeza, para aderir à busca pela ilha desconhecida, tem a necessidade de sair pela porta das decisões. Sublinho o valor semântico intrínseco nessa cena e reforço minha compreensão no entendimento de que nesse conto as personagens se relacionam como que consciência-mundo. Nessa saída do castelo reside a saída da própria consciência para o mundo a fim de constituir-se enquanto consciência, corroborando Sartre, “o eu não é um habitante da consciência, mas sim do fora, no mundo” (cit. in Moutinho, 1995, p. 81). Isso também é válido para a cena anterior se compreendo o diálogo do homem que queria um barco com o rei, incutindo o rei duma simbologia na qual ele pode ser lido com o próprio ser carregado da expectativa de/por lançar-se ao mundo em busca do desconhecido; o rei como uma espécie manifesta de ser-outro que está fixo no inconsciente da personagem, o responsável pelo impulso, pela tomada de decisão já, de certa forma, estabelecida. A metáfora maior reside no que o que parece ser a busca das personagens, o que elas procuram reside fora do discurso escrito e da realidade porque o que elas procuram é o mundo e o que irão encontrar nada mais será do que o mundo particular, ou seja, a metáfora maior é a do ser-ilha.

Quando o homem levantou a cabeça, supõe-se que desta vez é que iria agradecer a dádiva, já o rei se tinha retirado, só estava a mulher da limpeza a olhar para ele com cara de caso. O homem desceu do degrau da porta, sinal de que os outros candidatos podiam enfim avançar (...). A aldraba de bronze tornou a chamar a mulher da limpeza, mas a mulher da limpeza não está, deu a volta e saiu com o balde e a vassoura por outra porta, a das decisões, que é raro ser usada, mas quando o é, é. (p. 23)

Esta saída da mulher da limpeza pela porta das decisões funda outro caráter: o papel do outro nessa empreitada do constituir-se, estando no outro a dimensão outra a mim necessária para ser, consoante o pensamento heideggeriano. E é com este caráter que emendo outra cena, a (iv), a do momento de limpeza do barco:

Atirou para a água os ninhos vazios, quanto aos outros deixou-os ficar, até ver. Depois arregaçou as mangas e pôs-se a lavar a coberta. Quando acabou a dura tarefa, foi abrir o paiol das velas e procedeu a um exame minucioso do estado das costuras, depois de tanto tempo sem irem ao mar e sem terem de suportar os esticões saudáveis do vento (p. 34).

Sem a figura do feminino vejo que o caráter de extensividade ou complementaridade do ser estariam abalados. Mas, não apenas isso, ela é a figura catalisadora de todo processo de criação, havendo nela uma espécie de força mediadora à profícua realização da busca do autoconhecimento da personagem masculina.
Noutra empreitada recobro a busca do homem do barco por marinheiros que o ajudassem na sua busca (cena v). A negação por parte de todos ao dizê-lo que não há mais ilhas por conhecer parece frear esse caráter de liberdade da consciência. Mas não. Não compreendo que esta personagem deixe-se balizar por este aspecto. A liberdade da qual trata Sartre e em que me apóio não é aquela do obter o que se quer, mas a do querer autonomamente, determinar-se a si mesmo. E isso é o que a meu ver nestas personagens residem; para elas é o querer descobrir a ilha desconhecida e não o poder o que as fazem crer na busca ou necessidade pela ilha desconhecida. Dito isso chego ao desfecho do conto, marcado pelo tom poético saramaguiano. E chegando ao desfecho do conto, chego também ao desfecho desse texto:

Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetece um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarde que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sobre nas copas e vá encaminhando a caravela e seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começavam a cantar pássaros, deviam está escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi querendo ao lado da sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se é este o de bombordo ou de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar a proa do barco, de um lado e do outro em letras brancas, o nome ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma (p. 61-62).

Enquanto texto que se assemelha ao fluxo duma parábola o comportamento metafórico da personagem principal pode preencher a ótica em que a vontade, o livre querer, é a marca do desejo por conseguir algo, estando esta ancorada ao plano da simplicidade. Entre o desejo por um barco e tê-lo pronto para partir, entre o buscar o outro e o encontro com a mulher da limpeza, o viajante vai de certo modo alterando a idéia que faz de si e do outro. É com certeza o que o faz constituir-se. É o que o torna mais apto a obter o que sonhou.
As linhas que demarcam a constituição do ser saramaguiano neste conto são as mesmas que demarcam a existência do homem no mundo. A partir delas posso inferir vários questionamentos: como o que buscamos nós os humanos durante a vida inteira – a verdade, a felicidade? Ou ainda, por que sempre buscamos nesse movimento dialético? “A ilha desconhecida somos nós”, diz Saramago, a ilha desconhecida é o que nos leva esse lançar-se ao mundo, é o limite do processo de busca constante do ser para ser, uma busca que se dá numa aventura até fátua, rumo ao desconhecido que somos nós próprios.



REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. vol. 12. 4. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2001.
AMARAL JR., José de Almeida. Intelectual luso cria fundação para defender Direitos Humanos e Meio Ambiente. Notas Quotidianas. In Jornal Mundo Lusíada, 05/07/2007.
MOUTINHO, Luiz Damon S. Sartre – existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção Logos).
SARAMAGO, José. A ditadura disfarçada. Jornal do Brasil, 20/03/2004.
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. 20 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: Os pensadores – Sartre. São Paulo: Abril S.A. Cultural, 1978, p. 01-32.
SASS, Simeão Donizeti. O eu é um outro: o ego como objeto psíquico transcendente. Revista Mente-cérebro e filosofia. vol. 5. Ed. especial. São Paulo: Duetto Editorial, 2007, p. 41-47.
SEIXO, Maria Alzira. Os espelhos virados para dentro – configurações narrativas do espaço e do imaginário em Ensaio sobre a cegueira In: Giulia Lanciani (org.) José Saramago – Il Bagaglio dello scrittore. Roma: Bulzoni Editore, 1996, p. 191-210.
SOUZA, Thana Mara de. Além das palavras. Discutindo filosofia – Sartre, a consciência, o homem e a condenação à liberdade. São Paulo: Escala Editorial, ano 1, n. 2, p. 41-43.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Sobre as Eleições para Reitor na UFPB e a Sociologia das Ausências

Tenho recebido posts indagando se este espaço não publicará nada sobre as eleições para Reitor da UFPB. Bem, é fato que, em outras instituições em que atuei, fui mais interventivo em matéria de eleições universitárias - e, em dada altura, por pouco não estive compondo uma chapa reitoral (ainda bem que o fato não  se consumou...). Na UFPB, atualmente, ocupo a Chefia do Departamento ao qual pertenço, mas não por vontade própria de me ter disposto a ser candidato. Seja como for, sim, as eleições para Reitor na instituição serão objeto de abordagem aqui. Para já, limito-me a publicar uma resenha do livro de Boaventura de Sousa Santos dedicado a enfocar perspectivas para a Universidade no Século XXI, de autoria do especialista em Economia da Educação Valdemir Pires. A intitulação desta postagem, de certa forma, é reveladora do modo como, no momento, vejo as eleições para Reitor na UFPB. Uma Sociologia das Ausências para entender o que está presente.



A contra-reforma universitária: uma universidade diferente é possível...*
(Resenha do livro de Boaventura de Souza Santos, A universidade do Século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória.  São Paulo: Cortez, 2004. 120 p.)

Por Valdemir Pires
Boaventura de Souza Santos, uma vez mais, a partir de sua perspectiva de que nem tudo está dado e perdido, num mundo de uma nota só, faz soar alguns instrumentos que lembram aos de fraca memória o quanto a boa música do pensamento criativo, democrático e emancipatório é viva, boa e faz falta, muita falta. Em A universidade do século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade, recém-publicado pela Cortez (São Paulo, 2004), faz uma consistente análise dos acontecimentos que, nos últimos dez anos, agravaram a crise da universidade, tão bem diagnosticada por ele mesmo em Pelas mãos de Alice: o social e o político na pós-modernidade (São Paulo: Cortez, 1995). Ao invés de ceder à tentação do procedimento, nocivo mas muito encontradiço, de listar e malhar fatos e acontecimentos gerados pela globalização e pelo neoliberalismo (esses dois malvados tão resistentes e perseverantes...), o autor vai muito além, discutindo diretrizes para o que, no título do livro, aparece como "reforma democrática e emancipatória", mas que nesta resenha opta-se por definir como uma contra-reforma criativa, democrática e emancipatória, para que fique bem situada no contexto da discussão em curso, no Brasil, sobre a reforma do ensino superior (que é mais ampla que a reforma universitária, como o próprio Boaventura alerta).
Souza Santos avalia que a crise tríplice (crise de hegemonia, crise de legitimidade e crise institucional) enfrentada há muito tempo pela universidade pública foi agravada, na última década, i) pela sua deliberada descapitalização (na esteira do recuo do Estado do Bem-Estar Social); ii) pela conversão das novas tecnologias da informação e da comunicação em instrumentos pedagógicos que prescindem da co-presença e questionam de um modo ainda não compreendido a relação tradicional entre professor-aluno; iii) pela tendência de transnacionalização do ensino superior (tomado como mercadoria como qualquer outra); e iv) pelo fato de os caminhos escolhidos para enfrentar a crise estarem passando predominantemente, senão quase que exclusivamente, pelo enfrentamento do seu aspecto institucional, que é o mais visível, porém o menos promissor para oferecer respostas às inúmeras e complexas questões que a crise envolve.
Foi no processo de produção de respostas à crescente perda de capacidade de responder aos inúmeros - e muitas vezes contraditórios - objetivos que governo e sociedade vêm lhe atribuindo, que os agentes do interior da universidade e os demais atores políticos com ela envolvidos já a reformaram sem fazer alarde, sob denúncia dos prejudicados, dos descontentes e dos segmentos sociais alertas contra os malefícios do pensamento único.
No Brasil, falar de reforma universitária é não ter percebido que ela já ocorreu, tendo início com a implantação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), prosseguindo com o veto aos itens do Plano Nacional de Educação que demandavam recursos adicionais e consolidando-se pela completa modificação do sistema de ensino superior em razão do grande peso relativo do setor privado na oferta de vagas. Se ainda não chegou o momento de tentar ressuscitar a universidade pública, é certo que já é chegada a hora de fazer algo para evitar seus últimos suspiros.
Trata-se, pois, de encetar a contra-reforma universitária para reverter os estragos já produzidos pela reforma universitária, que já passou por vários aniversários, mas ainda não recebeu batismo nem certidão de nascimento, talvez porque seus pais não tenham tido a coragem de assumi-la publicamente.
É, na verdade, sobre essa contra-reforma necessária que as luzes de Souza Santos se lançam com poder esclarecedor. Ele argumenta que é preciso lidar de frente com a dimensão da legitimidade da crise para produzir enfrentamentos eficazes contra ela. Foi-se o tempo em que a universidade se legitimava simplesmente por ser o local sagrado da produção do conhecimento, pólo irradiador do avanço da razão, da verda de, da ciência. Diante de novos e mal definidos desafios, a sociedade pressiona a universidade para que a ajude a enfrentá-los e com rapidez maior do que lhe tem sido habitual. Sem atender a esses apelos, não deverá o mundo universitário esperar mais do que já tem; pelo contrário, a fonte de financiamento continuará secando, gerando crises institucionais, sem solução à vista.
Para reconquistar a legitimidade perdida, a universidade pública terá, segundo Souza Santos, que reforçar sua responsabilidade social, melhor definir sua relação com a indústria (não se limitando a definir suas prioridades em função de fontes de financiamento alternativas), estabelecer um relacionamento sinergético com a escola pública, melhorar as condições de acesso, dar maior atenção à extensão, implementar a pesquisa-ação e adotar a perspectiva da ecologia de saberes (saber dialogar com conhecimentos que, rotulados de não-científicos, foram banidos para fora dos muros da universidade). Além disso, no campo da crise institucional, tem que aprender a atuar em rede, adotar procedimentos participativos de avaliação e rever os mecanismos internos e externos de democratização.
Fica claro, o tempo todo, no rápido e instigante livro, que se trata de "enfrentar o novo com o novo", começando por uma nova e mais complexa definição da crise - "é necessário revisitar os conceitos de crise de hegemonia e de legitimidade" (p. 62) - e passando por um posicionamento: i) de que nem todas as mudanças negativas que estão ocorrendo na universidade têm fundo mercantil; e ii) de que a globalização oferece, sim, pelo menos interstícios para um tipo de relacionamento interuniversitário que vá além da transnacionalização do rico e novo espaço de valorização que se abre ao capital disposto a produzir no mercado de ensino superior. Sem sair da cômoda posição concedida por uma hegemonia e por uma legitimidade gratuitamente concedidas (depois de obtida esta a duras penas pelas primeiras instituições universitárias), as universidades públicas maduras correm o risco de "cair de podres": ou percebem que improvisados rearranjos institucionais em defesa de uma suposta autonomia são enganosos e passageiros ou perderão terreno todos os dias para novas estruturas de governança corporativa, legitimadas por regras de mercado, que vão rapidamente ganhando terreno nos sistemas mistos (público e privado) de oferta de ensino superior.
E quanto às universidades privadas? Ah, sim, é preciso lembrar delas no caso brasileiro. E não apenas para dizer que devem ser reguladas. Nesse setor:
“Alguns produtores de serviços são muito antigos, enquanto outros, a maioria, surgiram nas duas últimas décadas. Alguns têm objetivos cooperativos ou solidários, não lucrativos, enquanto a esmagadora maioria tem fins lucrativos. Algumas são verdadeiras universidades, a maioria não o é e, nos casos piores, são meras fabriquetas de diplomas-lixo”. (p. 106-107)
É preciso, nesse campo, separar o joio do trigo, já que é possível distinguir um de outro. E botar lixo na lixeira e milho na canjiqueira. Do contrário, o órgão normatizador e fiscalizador torna-se um averiguador inconveniente, inconstante e autoritário, mais criando barreiras e constrangimentos a quem faz o que deve ser feito, do que usando o seu poder de polícia para evitar a atuação livre e desimpedida de oportunistas.
Não basta, no tocante à qualidade, no Brasil, dizer, como o MEC, em documento de agosto de 2004 que:
O setor público do sistema de ensino superior no país apresenta elevado grau de qualidade, a despeito das imensas dificuldades financeiras que vem atravessando há alguns anos. Avaliações de suas atividades de ensino, pesquisa e extensão têm demonstrado a média elevada que o sistema alcança e registrado a existência de unidades de excelência, comparáveis às melhores instituições do mundo. Apesar da precariedade e da irregularidade do financiamento, as instituições públicas podem ser apontadas, em linhas gerais, como o marco de qualidade acadêmica a ser tomado como referência.
Tão heterogêneo, o subsistema público de ensino superior não pode ser apontado com segurança como parâmetro exclusivo para modelar a qualidade. Há nele instituições de qualidade duvidosa, assim como no setor privado. Algumas até deveriam encerrar atividades, assim como as "caça-níqueis" tão criticadas. Fechar os olhos a isso, assim como não captar, no interior do subsistema privado, elementos de qualidade que ofuscam grande quantidade de universidades públicas, é não saber ou não querer trabalhar com a realidade, escamoteando-a por razões corporativistas ou de preconceito. Por mais que se diga que nas recentes avaliações de desempenho dos alunos ("Provão") os egressos das universidades públicas em geral tiveram melhor desempenho que os alunos das escolas privadas, é preciso considerar que estando em escolas com estruturas e professores de mesma qualidade (baixa ou alta), alunos mais bem preparados pelo sistema de ensino pré-universitário, estudando em período integral, devem, com maior probabilidade, atingir melhor desempenho que alunos vindos do precário ensino público e, adicionalmente, cursando a faculdade em período noturno, em salas de aula superlotadas.
A legitimação do subsistema público de ensino superior, no Brasil, não ocorrerá simplesmente negando legitimidade ao subsistema privado, ao qual as portas foram escancaradas nos últimos anos para cumprir funções que o governo excluiu de suas prioridades. Muito pelo contrário, apesar de cobrar mensalidades altas para o poder aquisitivo da grande maioria da população, este setor tem proporcionado maior facilidade de acesso (muitas vezes à revelia da qualidade de ensino, é verdade, em muitos casos), já que amplia vagas enquanto o setor público não o faz na magnitude necessária. Nesse tocante, há que se lançar um olhar para a história da constituição da universidade brasileira: sua perda de legitimidade não tem crescido somente por causa dos fatores mencionados por Souza Santos; sempre houve, adicionalmente, ingredientes de privatização do espaço e dos recursos públicos em seu interior, a exemplo do que aconteceu, de resto, em todas as áreas de atuação governamental. Assim, desprivatizar a universidade brasileira é uma tarefa que ainda se coloca.
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Fonte: Educ. Soc., vol.25, nº.88. 



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

No universo do jazz: Louis Armstrong e o canto a um 'mundo maravilhoso'

Continuando a "estadia" no universo do jazz. E para referir aquele que pode ser considerado a própria personificação deste estilo: Louis Armstrong. O seu talento incomensurável, o seu jeito caraterístico, a voz que cantou por 'Um Mundo Maravilhoso'. Abaixo, um artigo a seu respeito do jornalista Ricardo Soneto e, claro, também, um vídeo com a inesquecível  What a Wonderful World. 

O que é um mundo maravilhoso? 





Passar uma tarde em um sebo olhando vinis pode elevar lembranças…
Me recordo a primeira vez que ouvi as gravações dos Hot Five e dos Hot Seven (feitas entre 1925 e 1929), o momento da invenção do jazz moderno, a arte do solista afirmado ao grupo, feito pelo Sr. Louis Armstrong. Até aquela época, na divertida atitude prepotente de quem tem dezessete anos, achava que Pops (um apelido. Pode usar Satchmo, se quiser. Mas Pops vai denotar mais intimidade. E tome prepotência) era aquele músico de jazz que tocava trompete bem, estava sempre alegre e ria muito. Meu Deus! Envelhecer tem suas vantagens (uma ou duas)! Entre elas descobrir o que significa Louis Armstrong.
Falar de Louis Armstrong é como falar dos Beatles: uma redundância e um prazer. E o dilema: o que se pode falar mais sobre eles? Existe o mito de que o “verdadeiro conhecedor de jazz” (seja lá o que isso seja) pode reconhecer o artista apenas escutando. Bobagem. O crítico Leonard Feather manteve durante anos, na revista “Down Beat”, o “Blindfold Test”, onde convidava músicos a avaliarem gravações sem que eles soubessem quem eram os artistas envolvidos. Uma forma inteligente de obter opiniões livres das pressões do peso dos nomes (quem vai ter a ousadia de considerar um solo de Coleman Hawkins “mediano”?). Pois bem, ocorreram casos em que os próprios músicos não se reconheciam (é sério!). Suponho que alguns, após terem se auto-massacrado, tenham aumentado a carga horária no analista. Enfim…
Existem, sim, gravações seminais que se tornaram marcos na história do gênero. Essas são identificáveis nos primeiros acordes. Retornaremos à esse ponto. Porém…
Alguns artistas podem ser identificados na hora. Erroll Garner e suas mãos livres, como artistas completamente independentes, percorrendo o teclados com as notas graves dançarinas da mão esquerda e os saltos felizes com a direita. Noventa por cento de chance de identificação. E Thelonius Monk? Como um equilibrista no arame ele percorria a corda desafiando o quase desequlíbrio da dissonância no uso único das blue notes. Impossível não identificar.
E temos Pops (para os íntimos). O timbre rico, se desencorpando para a assinatura pessoal parecido com o sol: só ele brilha. E não por ser estrela, mas por que é quente, luminoso e faz a vida florescer.
O que se pode ainda falar de Pops? Em “Manhattan”, Woody Allen (clarinetista, recordem) elabora uma lista das coisas que, para ele, fazem a vida valer a pena. A seleção vai culminar no rosto bonito de uma jovem que apenas lhe dedicava todo o carinho do mundo (apenas?). Entre os ítens, “Potato Head Blues”, uma gravação de Louis e seus Hot Five.
Nada podia fazer mais sentido.
É necessário falar da emoção de se escutar “West End Blues” pela primeira vez? Oh, sim! No futuro o adolescente descobrirá a relevância da faixa por sintetizar a importância desse conjunto de gravações. O solo inicial de Pops, livre das convenções do grupo, que é chamado a participar de uma conversa com o trompete. Então isso era o jazz moderno? Então por isso Louis pode ser considerado, por alguns, o músico mais importante do século XX? Ok! Existe uma polêmica em torno, pois Stravinsky ocupou o mesmo período (mas o pós-adolescente não vai se furtar a juntar ombros com o exército feliz que defende o som da corneta que os lidera).
Tarde num sebo. E se encontra uma caixa com LPs contendo o conjunto de gravações históricas dos Hot Five e dos Hot Seven (e mais algumas gemas). Será que algum adolescente vai encontrá-la para iniciar uma vida de aventuras?
E ouvir, através dos anos, seus discos de Satchmo para um permanente rejuvenescer?

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Um outro Carnaval

Aos meus amigos e leitores deste espaço, que vão para a 'folia carnavalesca', tudo de bom. Eu, contudo, estou por outras paragens culturais. Na calma do Jazz. Para quem, em Pernambuco, quiser algo diferente, a opção é o Garanhuns Jazz Festival (informações aqui: http://www.garanhunsjazz.com.br). E já que o assunto é jazz, compartilho o clássico Take Five, de Dave Brubeck.  





terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Sem imagem repetida

Robert Kurz, analista social alemão, já tem dado demonstrações, aqui e alhures, da sua argúcia analítica. Transita com desenvoltura pela história, filosofia e sociologia. Tem boa verve. O breve artigo abaixo é um exemplo disto. 


 O CAPITALISMO NÃO SE REPETE
Robert Kurz 
Na atitude perante a vida, a lembrança de tempos supostamente melhores, por exemplo, do milagre económico, não passa de nostalgia. Na cultura pop chama-se a isso "retro": Quando os produtores de ideias não se lembram de mais nada, eles requentam coisas velhas ligeiramente modificadas. E ao voltar à "cena do crime" pela terceira vez deve ter-se em atenção se ela foi vista há poucos anos. Nada de novo sob o sol, parece ser o lema. De algum modo se espalhou a crença de que quem quiser encontrar uma receita para o presente só tem de olhar para o passado. Por que outra razão estariam a política, os média e a ciência económica, perante a crise em desenvolvimento nos últimos anos, sempre à procura de paralelos históricos? Quem abre um jornal acredita muitas vezes que está perante uma aula de história.
Especulações financeiras alucinantes, crises grandes e pequenas, toda a série de falências nacionais, mesmo uma ou outra união monetária falhada ‒ os historiadores económicos dos tempos modernos têm oferta praticamente para tudo. E a moral da história? Tudo já ocorreu antes, o que deve significar também que nada é assim tão mau e tudo pode ser gerido no terreno dos factos vigentes. Aqui não é só o desejo que é pai do pensamento, mas também uma certa imagem do capitalismo, como eterno retorno do mesmo. A conjuntura económica ora floresce, ora estoura; há quem suba e quem desça de divisão, cada ano ou cada século. Mas acredita-se, por princípio, que será sempre assim.
No entanto, isso é um erro. Não estamos lidando com um sistema estático, mas sim com um sistema dinâmico. O capitalismo não se repete, e também não gira em círculo, porque ele próprio é um processo histórico irreversível. A valorização do capital não recomeça sempre de novo do zero, pelo contrário, tem de ultrapassar o seu último nível na escala social para poder ir mais longe. O grau de integração económica global não pode voltar atrás, nem certamente o desenvolvimento das forças produtivas. A concorrência universal não o permite.
Mas se a globalização e a produtividade se desenvolvem cada vez mais, então por que hão-de ser o carácter, a profundidade e a abrangência das crises sempre os mesmos? A história que se gosta de contar sobre a especulação com os bolbos de tulipa na bolsa de Amesterdão no século XVII não nos ensina nada sobre a bolha imobiliária de 2008 nem sobre a falência do Lehman Brothers. Para se perceber que uma falência estatal no início do século XIX era algo completamente diferente do que seria uma falência estatal hoje basta olhar para a parte do Estado do produto nacional. A aula de história dos peritos e leitores de sinais actualmente nos média não passa de uma hora das bruxas.
Repetidamente se ouve a afirmação de que a política e a gestão teriam aprendido tanto com as crises do passado que hoje já disporiam de instrumentos e ferramentas suficientes para lidar com elas. Os diagnósticos discutem sobretudo se a crise agora será como a de 1872, ou possivelmente como a de 1929 ou então apenas como a de 1973. O sucesso da aprendizagem parece ser mínimo quando governos e bancos centrais nos provam diariamente que os seus planos de política económica e monetária são quase tão úteis e competentes como a caixa de ferramentas duma locomotiva a vapor para a reparação de emergência de um TGV. Quem como as elites do presente fala tanto do futuro não devia contar muito com os resgates do sistema já passados. De qualquer modo os antigos pacotes de resgate e as suas consequências apresentam-se na memória da humanidade sobretudo como catástrofes.
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Fonte: http://o-beco.planetaclix.pt/rkurz398.htm Original KAPITALISMUS WIEDERHOLT SICH NICHT in www.exit-online.org. Publicado em Neues Deutschland, 12.12.2011.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Jorge Palma: Disse Fêmea

Jorge Palma é, sem dúvida, um dos grandes nomes da música portuguesa. Infelizmente, pouco conhecido deste lado de cá do Atlântico. Abaixo, está a sua 'Disse Fêmea'


terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Gilberto Freyre e 'O Mundo que o Português Criou'

Escrevi o texto abaixo quando do centenário do nascimento de Gilberto Freyre. Vale a republicação agora por ocasião dos 25 anos do seu falecimento. A despeito de eventuais reparos analíticos que se lhe possa fazer, o mestre de Apipucos é, de longe, uma referência central no estudo do que ele chamou 'O Mundo que o Português Criou'.


 
Gilberto Freyre and the Portuguese World
 By Ivonaldo Leite                        
The countries of the Portuguese language are this year paying homage to
Brazilian sociologist and anthropologist Gilberto Freyre. The country where he
studied, the United States, is also; and in Uruguay Vamireh Chacon and Diogo
Meneses are writing about his life. This is because it has been a century
since the birth of this Brazilian thinker. But who exactly was Gilberto Freyre?
He was born in 1900 and died in 1987 (in the Brazilian state of Pernambuco). 
His work studies the formation from Brazil as well as what he called the world
that the Portuguese created.  According to the Portuguese historian Cláudia
Castelo, the ideas of Gilberto Freyre at present have a great influence
in Portugal, mainly because a lot of intellectuals of different tendencies
utilize them, although they do not say that their ideas are Gilberto
Freyre´s.
The work of Freyre has some key concepts. For example: the ideas of a half-blood
country in Brazil, Lusitanian-tropicalism, and democracy between the races. His
theory of Lusitanian-tropicalism, for instance, maybe has the following merits: 
First, the studying of the adaptation of the Portuguese in the tropics; the
denial of the idea of inevitable decay of the tropics; the exaltation of the
African, Amerindian and Oriental contribution to the Lusitanian-tropical
civilization; the valuing of the birth of the half-blood, the union of cultures;
and the affirmation that the union between the Portuguese and the
Lusitanian-descendents doesnt annul the regional differences.
Gilberto Freyre has several original theses about Brazil. He says that the
Brazilian culture likes to have fun. The three people (Indian, European,
African) form other people (half-bred), people who like to play. According to
Freyre, the Brazilians play with the words and with the body.  He also imagined
a connection between the French libertinage of the eighteenth century and the
fun that the Brazilian has with the body.
In the book The World that the Portuguese Created, the author asserts that there
is a Portuguese style of living. It is a plastic and tolerant style. This style
would explain how the Portuguese adaptation in the tropics.
Gilberto Freyre was a pioneer. He was friend of the historian Lucien Febvre and
even in the 1920´s worked with quotidian categories, categories that just
now the academics are utilizing.  Freyre does what we can to designate of
Sociology of the Quotidian and that he called Half-Blooded Sociology or Mixed
Sociology.
But the homage to Freyre cannot conceal the limitations of his work. They are,
for example: the idea of a perfect democracy between the races and the
rationalization of the Portuguese colonization. These limitations were enhanced
by the Marxist sociology work of another Brazilian: Florestan Fernandes. This
inclusively was the motive for the theoretical conflict between them. This conflict generated 
a curious episode concerning a
pupil of Florestan´s, Fernando Henrique Cardoso.  Florestan, who oriented Fernando Henrique in the 
doctorate, invited Gilberto Freyre to participate in the commission responsible for the analysis of
Cardoso´s thesis about slavery in the Brazil.  Freyre refused to accept the
invitation. Freyres idea of democracy between the races in the Brazil hides the massacre of
the Amerindians and it doesnt consider the suffering of the blacks brought from
Africa to Brazil.  It hides still the prejudices against the blacks in
contemporary Brazil. Another example earlier cite, the rationalization of the
Portuguese colonization, was used by Salazars dictatorship in Portugal to resist
the independence of the African colonies.  Moreover the dogmatic interpretation
of a half-blooded country doesnt consider the specific details of the formation
of the Brazilian people. For example, the caboclo is unknown in these
interpretations. Who are the caboclo? They were born by the union of the
Portuguese (or descendants) with the Indians and their skin conserves the native
colour, which is a little red. They have smooth and black hair and they also
have the profile of a calm people. The Amazon and the Northeast are regions from
Brazil where there are many caboclos. The Northeast was the region where the
Portuguese first arrived.  Brazilian anthropologist Darcy Ribeiro described very
well the situation of the Caboclos in contemporary Brazil
Gilberto Freyre seems to be an example of the metaphor that Michael Lowy uses to
characterize the action of a social scientist searching for the truth. Lowy now
supports historical Marxism (Luckács, Korsh, Gramsci and Goldmann) and says that
a researchers values affect the results of the research, principally his values
of class. There arent separation between facts and values. But Lowy understands
that there is a relative autonomy of knowledge. This is what explains the fact
of  Marx to recognize importance to classic economy (Smith and Ricardo). Adam
Smith and David Ricardo were bourgeois economists, but their works have
important revelations, they are different from the other bourgeois economy, the
Malthus economy.  Marx called Malthus a vulgar economist, because he wasn't
interested in economic science. He was interested  just to justify the bourgeois
power. The scientists therefore have relative autonomy that isnt Mannheims
autonomy. The relative autonomy depicted by Löwy's Sociology of the Knowledge is
different. The scientist is now a painter. He produces pictures that are
sceneries of the truth. The techniques of painting that the painter (scientist)
utilizes can make the picture more true or false. Here is the relative autonomy.
The painter doesn't produce a truer picture just because he has truer values. The
techniques of painting are important for him to produce the sceneries of the
truth.
Gilberto Freyre maybe was a scientist that utilized good techniques and then his
work has important revelations. But his scenery of truth is problematical.
Florestan Fernandes saw this very well, as did Darcy Ribeiro. Thus the support
of Freyre to military dictatorship in Brazil wasnt surprise. Freyres' values
(principally of class) conditioned his actions.
Therefore the academic commemorations of the century Freyre's birth, in the World
that the Portuguese Created and in other worlds, can't forget the limitations of
his work. This is what the compromise with a scenery of the truth requires.
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Fonte original: http://archives.econ.utah.edu/archives/marxism/2000w13/msg00110.htm