sábado, 2 de abril de 2016

Movimento e permanência: tranquilidade da felicidade serena


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Tela de Rob Gonsalves

"Se o método racional e a própria vontade nos conduzissem ao porto do conhecimento, a partir do qual já nos encaminhamos para a região sólida da felicidade, não sei se eu não diria temerariamente que muito menos seres humanos lá chegariam, ainda que, já agora, conforme se vê, são muito raros e poucos os que lá chegam.
De fato, porque fomos lançados para este mundo, como que ao acaso e sem orientação, ou pela natureza, ou pela necessidade ou a nossa vontade, ou pela confluência de algumas ou de todas estas causas – assunto este, decerto, muito obscuro -, quantos saberiam para que local se dirigir ou por onde regressar, a não ser que, um dia, alguma tempestade, considerada pelos ignorantes como algo adverso, contra a nossa vontade e resistência, nos impelisse violentamente, viajantes ignorantes e errantes, para a mais desejada terra.
Ora, parece-me haver três classes, como que de navegantes, entre os seres humanos aos quais o conhecimento pode acolher.
A primeira é a daqueles que, quando a idade da razão se assenhora deles, com um pequeno esforço e a pulso dos remos, se afastam da proximidade e se recolhem à tranquilidade donde levantam um sinal luminoso de alguma sua obra para os outros cidadãos serem advertidos e a ela se acolherem.
A segunda, ao contrário da anterior, compreende aqueles que, desiludidos pelo aspecto muito enganador do mar, optaram por avançar por adentro e atrevem-se a peregrinar longe da pátria, dela se esquecendo muitas vezes. Se – não sei como ou por que modo oculto – lhes bate o vento pela popa, vento que consideram favorável, adentram-se, ufanos e regozijantes, nas profundezas da miséria. Que outra coisa, portanto, se deve desejar para estes humnaos senão alguma contrariedade precisamente nas coisas em que eles, como que lançados, se encontram envolvidos, e se isso não for suficiente, uma tempestade muito feroz e  um vento que sopre em direção contrária e  os conduzam, mesmo gemendo e chorando, até às alegrias certas e sólidas?

Ainda existe, no meio, uma terceira classe, formada por aqueles que, ou no limiar da sua adolescência, ou vagueando pelo mar há já mesmo muito tempo, contemplam, apesar de tudo, alguns sinais que os levam a recordar, ainda no meio das ondas, a sua dulcíssima pátria. Então a ela regressam, sem se desviarem ou demorarem, quer por uma rota adequada, a maior parte das vezes, ou errando pela neblina, ou avistando os astros que as ondas submergem, ou presos por algumas ilusões, deixam passar o tempo para uma boa navegação e erram durante um longo período, e, muitas vezes, arriscam a sua própria vida."

(Agostinho de Hipona - Santo Agostinho. In:  De beata uita' - Diálogo sobre a felicidade', edição bilingue - português e latim -, Coimbra, Edições 70, 2000, p. 21-23).  

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