'Quem não lê, aos 70 anos terá vivido uma vida só': nomes nus ecoam sob a sombra do Eco dos ecos

Por Pepe Escobar 

Era uma vez na Renascença Italiana, intelectuais sérios erguiam os olhos para o polímata Pico della Mirandola, como “o último homem que sabe tudo”. Em nossa terra devastada, Il Professore (“o professor”) Umberto Eco (1932-2016) foi, pode-se dizer, o último homem pós-renascença que sabia tudo.
Filósofo, semiologista, professor de erudição épica, especialista em estética medieval, autor de ficção e não ficção, Eco oscilou gozosamente entre os papeis de “Apocalípticos e Integrados” – título de um de seus livros seminais (1964). O toque que é sua marca registrada é uma síntese deliciosamente erudita de trágico otimismo – como se fosse, ele, o sonhador erudito supremo.
Não só escreveu vários ensaios impagáveis de estética, linguística e filosofia e criticou em profundidade a midiaesfera global; foi também autor de ficção best-seller, de O Nome da Rosa (1980) – 14 milhões de exemplares vendidos – ao Pêndulo de Foucault(1988).
Antes de se tornar Il Professore, com status de ícone universal, Eco mergulhou fundo em Santo Tomás de Aquino, deixou de crer em Deus e separou-se da Igreja Católica (“Milagrosamente, Tomás de Aquino curou-me de minha fé.”). A tese de filosofia que apresentou em 1954 à Universidade de Turin – orientado por um mestre, Luigi Pareyson – estudava a estética de Santo Tomás.
Tiradas do caminho a culpa e as crucifixões – Eco estava pronto para se embrenhar pela avant garde. Opera Aperta (Obra Aberta) apareceu em 1962 – uma análise estruturalista da literatura baseada em James Joyce e que virou febre nas universidades de Paris a Berkeley nos anos 1960s e 1970s. O xis da questão era definir a arte. Eco propunha que a obra de arte traz uma mensagem ambígua, aberta a infinitas interpretações, porque muitos significados coabitam num único significante. Assim, um texto não é objeto acabado, mas “aberto”, que o leitor não pode apenas aceitar passivamente. O leitor tem de trabalhar também, para reinventar e interpretar o que leia.
Em 1971, Eco já ensinava ciências semióticas na faculdade de Letras e Filosofia de Bologna. Viu essa ciência experimental – lançada por Roland Barthes – como mais que um método; ela levou-o a experimentar além de todas as intersecções, entre culturas erudita e pop.
Bebendo freneticamente da cultura pop, Il Professore teria de acabar na TV, que se pôs a dissecar com milhão de bisturis; disso veio um coquetel tóxico de kitsch, futebol, cultura das celebridades, publicidade, moda – e terrorismo. O embrião desse frenesi crítico já estava ativado em Apocalípticos e Integrados.
A atitude apocalíptica da mídia-empresa reflete uma visão elitista e nostálgica de cultura; a atitude integrada privilegia o livre acesso aos produtos culturais, sem se preocupar com o modo como são produzidos. E foi o que levou Eco a propor uma visão crítica de todos os meios da mídia-empresa, a qual, infelizmente, poucos tiveram coragem de aplicar.

Leia, e você viverá 5 mil anos
Eco foi leitor ávido, pelo menos dois jornais todas as manhãs. Adorava jactar-se de que vivia fiel à ideia de Hegel, de que ler jornais era “a oração diária do homem moderno”. E também escreveu para jornais – colunas e ensaios.
O pós-modernismo – infindavelmente discutido nos anos 1980s a-go-go – tentou estabelecer um pensamento crítico e irônico acima de toda a tradição de intertextualidade. Mas Eco sempre fez questão de destacar o quanto a própria noção de pós-modernismo era, ela mesma, confusa; na arquitetura, o pós-moderno não seguiu Le Corbusier; na literatura, não seguiu o nouveau roman, poderia até converter-se na escola crítica norte-americana aplicada à arte de narrar, baseada em Borges e Garcia Marquez.
Eco entendia que, se o pós-modernismo na literatura visasse a uma reflexão irônica sobre a pluralidade dos modos de narrar, a coisa toda teria de ter começado com Tristram Shandy, de Sterne, Cervantes e talvez Rabelais. Mas se James Joyce em Retrato do Artista quando Jovem é “moderno”, em Ulisses e Finnegans Wake/Finicius Revem é definitivamente pós-moderno.
Mais cedo ou mais tarde, Il Professore teria de se ver frente à frente com o Sábio Total, Borges. Chegou à conclusão de que Borges deu significado a uma tradição ainda mais ancestral; a outra face da avant-garde, com, de um lado as rupturas dos futuristas e Dada, pinturas monocromas e abstratas; e, do outro lado, o surrealismo.
Em O Nome da Rosa, Eco provoca o leitor a cada página, propondo charadas sem parar, uma alusão, um pastiche ou mera citação, tudo semeado ao longo de uma trama antiga investigada por um monge franciscano, avatar de Sherlock Holmes. O livro pode ser lido de, pelo menos, três modos paralelos: pode-se seguir a intriga; pode-se seguir o debate de ideias; ou se pode seguir as dimensões alegóricas tecidas num jogo múltiplo de citações sobre citações, “livro feito de livros”. E é onde temos Eco, leitor consumado de Borges.
Seu livro mais recente, Número Zero (2015) também é tumulto. Passa-se em 1992 em torno de uma sala de redação imaginária – e dispara dardos por toda a sumarenta história política, jornalística, judicial e conspiracional da Itália moderna – do escândalo Tangentopoli ao Gladio da OTAN; dos escândalos da Loja Maçônica P2 ao terrorismo das Brigadas Vermelhas. Ninguém jamais escreveu um thriller sobre jornalismo vagabundérrimo; é tarefa que teria mesmo de caber a Il Professore. Seu Rosebud: “A questão é que jornais não são feitos para revelar, mas para encobrir as notícias.”
Faz sentido também que, no fim, Eco tenha-se recusado a publicar pelo colosso midiático italiano Mondadori-Rcs. Daí que iniciou uma nova aventura, a editora Nave de Teseo (Barco de Teseu). Il Professore observou que “Teseu é pretexto, um nome como qualquer outro. Teseu não importa. O que importa é o barco.” Mais uma pegadinha semiológica.
Leitor empenhado até o fim, Eco disse certa vez que “quem não lê, aos 70 anos terá vivido uma vida só. Os que leem terão vivido 5 mil anos. Ler é a imortalidade em retrospecto.”
Assim, faz sentido que haja um Eco póstumo – Pape Satan Aleppe –, que será lançado na Itália, dentro de poucos dias. O volume reúne as colunas que Eco publicou na revista L’Espresso interligados pelo tema da sociedade líquida e seus sintomas; como ele mesmo anunciou, “a crise da ideologia, da memória, das comunidades às quais se pertence, a obsessão com a autopromoção.” E o que significa o título? Eco explicou, risonho, que é “citação evidentemente dantesca que nada significa e, assim, é suficientemente ‘líquida’ para caracterizar a confusão de nossos tempos.”

What’s in a Name? O que há num nome?
Depois de, recentemente, receber uma laurea honoris causa em Comunicação e Cultura das Mídias em Turin, Eco provocou uma tempestade midiática, ao ridicularizar as redes sociais.
Disse que elas “deram direito de expressão a legiões de imbecis que, antes, só falavam no bar depois de um copo de vinho, sem perturbar o ambiente social. Agora, têm o mesmo direito de expressão que um Prêmio Nobel. Os imbecis invadiram tudo.”
Estava, claro, certíssimo. Qualquer um submetido aos absurdos da internet reconhece agora o quanto e como “a TV promoveu o idiota da vila, em relação ao qual o espectador sente-se superior. O drama da internet é que promoveu aquele idiota da vila ao status de enunciador da verdade.”
Acrescente isso à “confusão dos nossos tempos” que só se tornarão ainda mais confusos agora que perdemos o Grande Alquimista – homem do riso, agitador, mistura de pensador multiplural, doido pelo texto e leitor perenemente apaixonado. E daí, que nunca lhe tenham dado um prêmio Nobel? Borges também foi ignorado.
A última frase de O Nome da Rosa é “stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus“. “A rosa que houve agora existe só em nome, só temos nomes nus.” É variação de um verso de De Contemptu Mundi, de Bernard de Cluny, monge beneditino do século 12. Agora, nomes nus ecoam ecos uns dos outros, sob a sombra benigna do Eco dos ecos.
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Fonte: http://rogeriocerqueiraleite.com.br/. Título original: 'Umberto Eco, o professor que sabia tudo'. 


domingo, 28 de fevereiro de 2016

Borderline: a vida à beira de um vulcão



Por Ana Marcarini

A doença psíquica não é diferente das outras doenças. Ela é, apenas mais cruel, porque é invisível. Não há sinais físicos correlatos para quem sofre um transtorno de personalidade; não há febre; não há manchas espontâneas na pele; não há inchaços; nada que se possa ver num exame de raio x, ou mesmo numa sofisticada ressonância magnética. A doença psíquica é íntima apenas de quem convive com ela. E, mesmo assim, pode ser uma íntima desconhecida; dada sua natureza volátil e instável. Os transtornos de personalidade não têm nenhuma lógica que os possa explicar. E, aqueles que sofrem com essas doenças, ainda têm que lidar com um inimigo ainda mais implacável e cruel: o preconceito!
O Transtorno de Personalidade Borderline é caracterizado por um comportamento padrão regido por instabilidade nas relações interpessoais; autoimagem distorcida; dependência afetiva e excessiva impulsividade. Essa combinação explosiva mantém a pessoa numa condição mental perturbada, posto que ela pode ser acometida pelos sintomas de forma inesperada e violenta, transformando sua vida numa experiência caótica, intensa e dolorosa.
É na fase inicial da vida adulta que se observa maior ocorrência no surgimento do TPB. A denominação Transtorno de Personalidade Borderline foi usado pela primeira vez em 1884 e a partir disso, seu diagnóstico e tratamento passaram por várias modificações no decorrer dos anos. No início, enquadravam-se no termo pacientes cujo quadro oscilava entre a sanidade e a loucura, entre a neurose e a psicose; em função disso usou-se o termo “borderline”. O diagnóstico aparecia relacionado a sintomas neuróticos graves. A precisão no diagnóstico começou a se desenhar na década de 1980; antes disso, a maioria dos médicos tinha a crença de que a personalidade era algo definitivo, imutável; e, portanto não poderia ser objeto de observação e estudo para determinar qualquer tipo de doença.
São várias as causas envolvidas na instalação de um quadro de Transtorno de Personalidade Borderline: predisposição genética; experiências tráumáticas na infância ou adolescência; abuso; negligência; e, até fatores ambientais e sociais (guerras; acidentes causados por fenômenos naturais). É prevalente a ocorrência de TPB quando há parentes de 1º grau com esse transtorno. Famílias instáveis, formada por pais agressivos ou envolvidos em relações muito conflituosas e violentas são outro fator de desencadeamento de TPB. Crianças submetidas a uma educação excessivamente autoritária, com exigência completa de submissão e obediência, também podem desenvolver o transtorno, pois têm seu desenvolvimento cognitivo e emocional deformado por dúvidas profundas acerca de suas capacidades e excessivo sentimento de culpa e vergonha por seus fracassos, por mais naturais e típicos que sejam. No entanto, embora seja bem menos frequente, observa-se a ocorrência deste transtorno em indivíduos que não se enquadram em nenhum dos critérios previstos.
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Fonte: http://www.contioutra.com/

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Efeitos não intencionais da ação intencional: o xadrez das relações e a cassação da Presidente

'Efeitos não intencionais da ação intencional', eis aí uma chave fundamental na teoria social para se analisar/entender a interação entre as pessoas e as suas decorrências, os desdobramentos das manifestações coletivas, os encaminhamentos da ação política, etc. Sim, é de microanálise social que se trata, até com fronteiras, vá lá, com a abordagem psicológica. 'Regimes de verdade', ao invés da verdade 'finca pé', a manifestação do comportamento irracional em quem supostamente exala racionalidade, o turvamento de relações pessoais em decorrência dos 'efeitos não intencionais da ação intencional', a inversão dos resultados esperados na ação política planejada, etc. O texto aí abaixo, da lavra de André Singer, inscreve-se nessa perspectiva de análise, mesmo que ele não a assuma explicitamente. É de certo modo, por outro lado, uma lição a determinados "cientistas políticos" que andam por aí a destilar arrogância, fazendo espuma de palavras no (sofrível) esforço pseudoerudito. Singer usa, e bem, a imagem do xadrez, para tratar da nova movimentação para depor a Presidente Dilma - com a contribuição, inclusive, dela própria, ou, colocando nos termos aqui em tela, como decorrência dos 'efeitos não intencionais da sua ação intencional'. Vale a leitura. 




Por André Singer 
(Universidade de São Paulo - USP)

A espetacular prisão de João Santana, em timing cada vez mais calculado, joga, não por acaso, lenha grossa na fogueira de novas eleições para presidente e vice este ano. Apanha Dilma em curso de perigoso isolamento, ao mesmo tempo em que a alternativa do impeachment continua queimada pelos erros de Michel Temer e pela imagem de Eduardo Cunha. Nesse contexto, a "operação derruba chapa" procura pressionar o frágil colegiado do TSE a cassar os vitoriosos em 2014.
A estratégia dos enxadristas da Lava Jato combina duas linhas de força. De um lado, plantam devagar cerco que imobiliza o ex-presidente Lula. De outro, avançam rápido na direção de comprometer a presidente da República. Lembro que o anterior fato espetaculoso, também preparado com esmero, foi a prisão "em flagrante" do líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral. Ressalte-se: do governo.
Os erros que Dilma comete contribuem para a eficácia da estratégia. Na medida que o ex-presidente fica na berlinda, aumenta a tentação da atual mandatária salvar-se por conta própria. Há indícios de que o Planalto cedeu à ilusão de que se cumprir o programa liberal completo receberá salvo conduto para cumprir o resto do mandato, mesmo que Lula e o PT se estrepem.
Trata-se de miopia. Quanto maiores forem as concessões, maiores serão as exigências, sem qualquer apoio sólido em troca. Basta ver o que foi o programa do PMDB, que pretende liderar a reforma liberalizante, anteontem na TV. O partido se colocou de maneira aberta a favor da solução argentina, com Temer procurando aparecer como o Macri brasileiro. Dilma que se estoure.
A detenção de Santana, como era de se esperar, reativou a pressão pró-impeachment dos peemedebistas, que daria lugar a um governo Temer. Ocorre que, além do percalço menor da desastrada carta sentimental do vice em novembro passado, o navio do PMDB também está torpedeado pela Lava Jato. A presença destacada de Cunha no horário político desmonta toda a credibilidade do peemedebismo.
Ao separar-se de Lula, Dilma serra o galho no qual está precariamente sentada. A ameaça de conter os aumentos do salário mínimo e de reduzir a participação da Petrobras no pré-sal alienam os últimos redutos de apoio à presidente reeleita. Consultado, o antigo mandatário não a deixaria bater de frente com os movimentos sociais.
Não será surpresa, se a presidente adotar a defesa de que, se houve problemas nas contas da campanha, elas seriam de responsabilidade do PT, sem que ela nada soubesse. Completaria, assim, o isolamento em que se meteu, sem perceber que o lance seguinte consistiria no xeque-mate.

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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 27/02/2016. Título original: 'O Xadrez da Cassação'. 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

As fronteiras entre o ser e a arte

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Por Felipe Matula 

Quando foi a última vez que você comprou um produto feito a mão? Não me refiro a uma peça de arte cara adquirida em alguma galeria, mas sim um artesanato feito por um artesão de rua.
A arte nos dias atuais vem perdendo cada vez mais espaço e vem cada vez menos sendo valorizada, não somente no artesanato, como também na literatura e no cinema.
Em “A Caverna”, do autor português José Saramago, temos como personagem principal um oleiro chamado Cipriano Algor. Ele é a representação da arte que vem sendo substituída por máquinas no mundo atual.
O enredo do romance é bastante simples: Cipriano Algor é oleiro, pai de Marta Algor que é casada com Marçal Gacho. Os três moram em uma pequena casa no interior, longe do centro comercial. A rotina do oleiro Cipriano é levar de carro Marçal (que trabalha no centro) ao centro comercial, voltar para a sua casa no interior e trabalhar na olaria, junto com a sua filha Marta. Quando Marçal tem folga do trabalho, Cipriano volta ao centro comercial para buscar o genro. A rotina da vida das personagens é modificada, a partir do momento que o centro comercial para de encomendar os objetos de cerâmica produzidos pela família e Marta fica grávida de Marçal. José Saramago mostra principalmente a visão de Cipriano Algor, pai de Marta, a respeito da falta de interesse do centro comercial em seus produtos de cerâmica e a única alternativa para continuar a ter um lar: viver com a filha e com o genro no centro comercial. Uma das soluções encontradas pela família para o sustento é a produção de outro tipo de objetos de cerâmica: bonecos. Talvez, esse seja um dos elementos utilizados por Saramago para destacar um dos aspectos que tornam a arte cada vez mais desvalorizada. A partir da criação de centenas de bonecos, José Saramago nos mostra defeitos, rachaduras e pedaços que faltam em muitos deles, que podem servir como uma metáfora de nós mesmos, já que quando um boneco apresenta algum tipo de defeito, ele é logo substituído por outro em perfeitas condições, assim como nós somos substituídos pelas máquinas. Além disso, acompanhamos a trajetória de um homem que vivia da arte e é forçado a se mudar para um centro comercial. Existe derrota maior do que essa para um artista?
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A arte é arte por ser única, quando feita por uma máquina ela deixa de ser arte. No universo Saramaguiano, as pessoas consomem arte produzida por máquinas. Todavia, se pensarmos bem, nós também não consumimos? Quase tudo o que consumimos e é considerado arte é massificado, desde as músicas que escutamos até mesmo o que iremos assistir na tevê ou no cinema. E nós continuamos a viver as nossas vidas sem nos preocuparmos muito com isso, afinal, em nossas cabeças se lemos algum livro ou assistimos a algum filme no cinema, já nos consideramos mais “culturais”. Mas é preciso ir além, é necessário discutir e questionar o que nos é oferecido como arte nos dias atuais.
Os problemas apontados por Saramago mostram que o ser humano não percebe o real ao seu redor. Como perceber então o que realmente tem valor artístico? Isso ocorre não somente pelas inúmeras imagens que o homem é submetido diariamente nas ruas, na televisão ou na internet, como também pela alienação do ser que o afasta daquilo que é real. No mito da caverna, Platão aponta para a criação de uma alegoria moderna a respeito das indagações do ser humano enquanto elemento transformador da sociedade e dele próprio. A alegoria proposta por Saramago sugere e possibilita diversas formas de se pensar na problemática do simulacro (imagens que inventam a realidade a partir de uma realidade inexistente) na vida e na arte.
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Três obras são importantes para que possamos compreender melhor a massificação da arte: A Obra de Arte na Época da Reprodutibilidade Técnica, de Walter Benjamim (1936), e Perda da Aura, de Charles Baudelaire (1868) e A Arte no Século XXI – A Humanização das Tecnologias (2003), de Diana Domingues. Na primeira, Benjamim elaborou uma longa teoria a respeito da mudança de perspectiva sobre a reprodução artística com o advento das máquinas. O segundo é um poema irônico, escrito em prosa por Baudelaire, a respeito da perda da aura criativa do homem na criação artística. Tanto a Arte na Época da Reprodutibilidade Técnica, de Walter Benjamim, quanto em Perda da Aura, de Charles Baudelaire, têm um ponto em comum: ambos tratam da perda da “aura criativa” do artista e de como a massificação tem um papel fundamental nisso. Em A Arte no Século XXI – A Humanização das Tecnologias (2003), Diana Domingues traz diversas opiniões sobre a arte no século XXI, e a maneira como as pessoas passaram a utilizar as novas tecnologias para realizá-la. Percebe-se que o problema da interferência das máquinas no meio artístico é antigo. Saramago apenas nos alertou para um antigo problema sob uma nova ótica.
Ao exaltar a arte como criação, o autor português denuncia a marca aurática do artesão/artista, reveladora de gesto mimético singular, apontando o ser humano como principal elemento transformador da sociedade, por meio da criação artística contestadora e crítica. 
Mas como diferenciar a arte real da arte simulada? É preciso antes de responder essa pergunta, reconhecer o que nós estamos enxergando exatamente nas sombras da realidade nas paredes de nossa imensa caverna. Precisamos antes de tudo reconhecer o simulacro antes de reconhecer o real.
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Fonte: http://obviousmag.org/


Entre a desrazão da 'paixão cega' e o 'complexo de vira-latas'

Aí abaixo, o texto-resposta do cientista social Jessé Souza (Universidade Federal Fluminense) a Marcus André Melo (UFPE), em função da apreciação crítica que este fez, em artigo na Folha, sobre perspectivas anteriormente realçadas por Jessé, também na Folha de São Paulo. Em tempos de aridez intelectual e mediocridade nas discussões, eis aí um bom debate. No fundo, visitando o continente da história, trata-se de entender o que está em causa hoje no país. 




Por Jessé Souza 

Este artigo é uma resposta  ao texto de meu colega Marcus André Melo publicado na edição de 31 de janeiro deste caderno, no qual ele critica entrevista minha publicada, também na "Ilustríssima", no dia 10 daquele mês. Marcus Melo não critica meu livro – que eu suponho que ele não tenha lido–, mas tão somente meu argumento da "demonização do Estado" no Brasil. Ele argumenta que se trataria precisamente do contrário – o Estado teria sido "santificado", e não "demonizado".
Apesar de discordarmos em quase tudo, existe uma afinidade importante entre mim e Marcus: a percepção das "ideias" e de seu debate como fundamental para a compreensão do tipo de sociedade que se constrói. Mas aí cessam as proximidades com meu colega. Marcus constrói uma "história das ideias políticas" no Brasil que só existe na cabeça dele, sem qualquer relação com o mundo concreto lá fora. Pior, inverte esse mundo de ponta-cabeça.
É que as ideias não são importantes por si mesmas. As ideias só são importantes quando elas se acoplam a interesses poderosos e passam a dominar a vida das pessoas comuns "convencendo-as" de que são as certas e verdadeiras. Para reproduzir privilégios não basta a "força física". A real e eficaz dominação social tem que produzir uma "violência simbólica".
Marcus e os liberais brasileiros são um ótimo exemplo desse tipo de "violência". É uma violência dizer, por exemplo, que o visconde de Uruguai forjou, com sua imaginação política, as "instituições fundamentais do país" em um sentido autoritário e de reforma pelo alto que teria dominado o século 20 entre nós. Veja bem, leitor, esse é o argumento central de Marcus, a pedra fundamental de seu texto.
Ora, ele se "esquece" que o visconde –leitor do liberal Tocqueville e um dos maiores homens de Estado do século 19 entre nós– queria nada mais nada menos que o "império da lei", que Marcus assume como princípio político maior do liberalismo, se tornasse regra no Brasil. A reação do visconde tinha endereço certo: a experiência "liberal" brasileira de descentralização do poder político no século 19, que representou o mandonismo sem peias dos proprietários locais e total abuso de poder sem qualquer controle.

INVERSÃO
Na cabeça de Marcus, no entanto, o mundo se inverte para caber no seu argumento. O verdadeiro campeão das garantias individuais liberais no século 19 foi o visconde "conservador" (para mostrar como as palavras podem ser enganosas e arbitrárias).
Na verdade, antes de 1930 o Brasil era pouco mais que uma fazenda de café onde menos de 1% votava em eleições, ainda assim, fraudadas. O Brasil moderno se inicia, por um lado, com Getúlio Vargas que cria as bases "materiais" de uma nação urbana e industrial; e, por outro lado, com Gilberto Freyre, que constrói as bases "ideacionais" desse mesmo novo Brasil que se cria. Ou seja, Freyre, e depois dele, seu "filho intelectual" Sérgio Buarque de Holanda são incomparavelmente mais importantes que todo o "balaio de autores" citados por Marcus, posto que apenas depois de 1933 o Brasil produz um "mito nacional popular" que vai ganhar a mente e o coração de todos os brasileiros.
As "ideias" têm que estar no dia a dia das pessoas para serem importantes, e não na cabeça do pesquisador, como imagina Marcus. São essas as ideias presentes até hoje no nosso debate. Sérgio Buarque, por exemplo, influencia todo o programa e a ação de partidos, desde o PSDB até o PT; a ação de instituições que se supõem estarem combatendo essa suposta jabuticaba nacional chamada "patrimonialismo"; além de pautar o debate público brasileiro até hoje.
Comparar esse tipo de influência generalizada e institucionalizada com a intervenção tópica e pessoal em governos e tribunais dos intelectuais citados por Marcus é uma miopia grave da percepção da influência das ideias. Apesar de construir uma história das ideias arbitrária e míope, o esforço de Marcus é sintomático da autocompreensão do liberalismo brasileiro. E é nesse terreno que quero fazer minha crítica.

DILEMA
O verdadeiro dilema social, econômico e político brasileiro, não resolvido até hoje, começa em 1930 com Vargas. Foi o ambíguo Vargas –que efetivamente permitiu atrocidades imperdoáveis no seu governo, como menciona Marcus– quem criou as bases para uma moderna sociedade capitalista e industrial no Brasil.
Vargas criou a legislação do trabalho, a indústria de bens de capital, modernizou o Estado e criou os primeiros partidos de massa entre nós. Desde 1930 até hoje, a luta política no Brasil tem a ver com a definição do sentido desse legado: devemos ter uma sociedade moderna e inclusiva ou seguir a inércia histórica e construir uma sociedade para poucos? Que o leitor não se engane: essa é a questão central do desenvolvimento brasileiro no século 20 e 21, e nenhuma outra. Afinal, é a resposta a essa questão que separava e ainda separa até hoje os partidos e as ideias.
Veja o leitor como o presente só pode ser bem compreendido com a perspectiva histórica. Basta recompor o fio condutor que une o passado e o presente, e o que quer se vender hoje em dia como novidade se desmascara como repetição e como fraude.
O partido vencedor dessa disputa, historicamente, foi o partido da sociedade para poucos. Esse partido venceu em 1954 quando Getúlio foi levado ao suicídio por acusações de corrupção (sempre ela) que se revelariam infundadas –disseminadas por uma "república do Galeão" que se punha "acima da lei" (bateu algum sininho com tempos atuais, caro leitor?)–; venceu também de modo acachapante em 1964 –com os mesmos órgãos de imprensa e a mesma fração da classe média que atuam hoje– e está agora, mais uma vez, na ordem do dia.
Exceto esse "ponto fora da curva" que foi Collor de Mello –que conseguiu o milagre de se indispor com toda uma sociedade depois de 24h de governo ao confiscar a poupança popular–, literalmente toda a luta política brasileira desde então, todos os golpes de Estado e todas as perseguições políticas, só pode ser compreendida pelo divisor de águas que é a luta entre o partido da sociedade inclusiva e o partido da sociedade exclusiva.
A própria separação artificial entre mercado e Estado se deve a essa luta. Na verdade, mercado e Estado são inseparáveis. Sem a atividade de mercado, o Estado não arrecada; e, sem a infraestrutura estatal, o mercado perde dinamismo. Mercado e Estado formam um todo indissociável que se retroalimenta. Então por que dramatizar uma oposição que não existe?
Tatiana Stropp
Ora, como existe uma luta de classes silenciosa por acesso aos recursos escassos, a oposição mercado x Estado é a "semântica possível" dessa luta, tão reprimida entre nós como o medo da morte. Ela é reprimida posto que, de outro modo, a classe média poderia se descobrir sendo feita de "tola" por uma elite do dinheiro que a endivida com juros escorchantes e ainda lhe vende os piores e mais caros bens e serviços do mundo.

PAIXÃO
A classe média paga até os impostos para os ricos que compram boa parte da classe política –via financiamento privado– para que nenhuma lei de taxação da riqueza possa passar no Congresso (e fique tudo no lombo dessa mesma boa e velha classe média). A mesma classe média com a qual os ricos sempre podem contar para defendê-los na rua e nas urnas. De resto, ainda sonegam o dinheiro grande em paraísos fiscais em atividades que a classe média, de tão manipulada e apaixonada, não vê nem como corrupção nem como crime. Como se vê, é um caso de paixão cega e adolescente de nossa classe média pelos endinheirados. Esse amor não correspondido vale todos os sacrifícios.
Até há muito pouco tempo, aliás, o crime de corrupção era exclusivo do agente do Estado, como se não se cometesse corrupção no mercado. A sociedade exclusiva é para esse punhado de endinheirados que, inclusive, começa a morar fora do país de modo a externar para as classes que aqui ficam o custo social da rapina. É aqui que entra o liberalismo brasileiro e seu trabalho de travestir a rapina em princípio moral.
Em vários lugares do mundo o liberalismo fez parte de um longo processo de efetivo aprendizado moral. Daí a íntima relação desses princípios com o direito moderno. Foi o direito moderno que logrou institucionalizar os princípios liberais representando um ganho civilizacional de enormes proporções: ao invés apenas da força nua e crua, deve preponderar também o que é "justo".
Essa definição do que é "justo" também se enriqueceu historicamente. Ele começa com as garantias civis, se alonga nas garantias políticas e se aprofunda nas garantias sociais do indivíduo de modo a lhe garantir real igualdade de oportunidades.
A história do liberalismo é bela. Ela conta nosso afastamento da barbárie do "cada um por si" e concebe a ideia do progressivo aprendizado moral da experiência humana em sociedade. Afinal, moral não é "moralismo". Ao contrário, na moralidade as convenções sociais e os afetos são reconstruídos e modificados pela reflexão. Moralidade é, antes de tudo, a possibilidade de aprendizado, ou seja, a possibilidade de nos tornarmos melhores do que somos.
No seu sentido mais elevado de "interesse próprio bem compreendido", como em Tocqueville, o liberalismo nos ensina a ver que até o egoísmo pode ser inteligente, ao perceber que garantir vida digna a todos significa garantir vida digna para nós mesmos. Se todos têm uma chance real, então não preciso, por exemplo, andar de carro blindado como até a classe média brasileira está começando a fazer (como mostram resultados parciais de pesquisa em andamento).
Confesso, caro leitor, que me sinto um liberal desse último tipo: cioso de meu espaço individual, mas compreendendo que todos têm que ter uma chance real de vida digna. Franklin D. Roosevelt foi um liberal desse tipo também. E logrou, por conta disso, transformar os Estados Unidos, tornando-os um país muito menos desigual e injusto do que era. Até hoje, nos EUA, "liberal" é quem tem esse tipo de consciência social.
Se em outros países o liberalismo representou um processo de aprendizado "moral", no Brasil ele sempre foi "amoral", "pragmático" e "instrumental". Em português claro: ele só serviu para legitimar os interesses do dinheiro.
O exemplo de Marcus –poderia ser o de qualquer outro típico liberal brasileiro– é perfeito. A origem de todo mal para ele é o "Poder Executivo" que, supostamente, manda em tudo. Obviamente, quando o Poder Executivo vende a riqueza nacional a preço de banana, aceita moeda podre e ainda privatiza com dinheiro público do BNDES é liberal e bom. Mas ficou provado que a presidência no Brasil exige mais que dinheiro para ser conquistada. O Poder Executivo foi o que restou de acesso dos 70% de brasileiros não privilegiados ao poder. Daí o ataque do liberalismo tupiniquim a ele.

ILIBERALISMO
Um Congresso, por sua vez, que possa ser parcialmente comprado pelo dinheiro e que reflita os interesses de quem pagou a eleição já está curado do mal do "iliberalismo". A recusa de taxação dos mais ricos torna-se a pauta "liberal" que afronta o Executivo supostamente todo-poderoso e que manda em tudo.
Ora, se mandasse em tudo não seria tão pressionado pelos lobbies organizados. É que a estratégia aqui, leitor, é tornar invisível o poder econômico dos oligopólios e sua contraparte no Congresso e na mídia. O nosso liberalismo pragmático tem que esconder a verdadeira fonte de poder entre nós de modo a bater no espantalho de sempre: a "corrupção seletiva".
Minha tese inclusive é a de que não interessa a esses grupos econômicos e seus pares no Congresso e na mídia nem acabar nem mitigar a corrupção no Brasil, mas, ao contrário, sempre tê-la à mão para combater o verdadeiro inimigo: o partido da sociedade inclusiva.
Vamos refletir juntos, leitor. Como Marcus lembra bem em seu texto, as mudanças efetivas são sempre institucionais. Somente novas práticas institucionais podem mudar as pessoas. Afinal, ninguém é infalível. Não é, então, muitíssimo estranho que se fale tão pouco em uma reforma política profunda que torne a relação entre a economia e a política mais transparente –que é o que importa no combate à corrupção– e se fale tão somente em "pessoas" e "partidos" específicos?
É que a "fulanização" da corrupção só serve à sua continuidade. Se o foco se deslocar para uma reforma política profunda, os endinheirados e seus amigos da mídia conservadora perdem seu filão. Pense comigo: e se depois de Getúlio, Jango, Lula e Dilma –os alvos da "corrupção seletiva" no passado e no presente– vier outro representante da sociedade inclusiva? Como a rapinagem econômica e seu braço midiático vão destruir o adversário? Como iriam legitimar de outro modo a drenagem dos recursos de todos – via mercado e Estado – para seus bolsos?
O combate à "corrupção seletiva" –que como sabemos blinda alguns políticos e persegue outros arbitrariamente– confere à rapinagem a "aparência" de luta por algo importante para todos. É nisso que somos feitos de tolos. Nesse contexto, leitor e leitora, confie em mim quando lhe digo que um debate sério no Brasil sobre a corrupção dificilmente existirá. A manipulação do tema da corrupção é o verdadeiro núcleo da legitimação do poder no Brasil.
O nosso liberalismo instrumental é a "tropa de choque" intelectual desse esquema. Por conta disso é fácil desmontá-lo. Basta mostrar a distância entre o dito e a realidade. A defesa dos direitos e garantias individuais é a base do liberalismo, como Marcus reconhece. Assim como o liberalismo, o direito passou por profunda evolução. No começo era o direito "material" do passado, decidido por circunstâncias políticas de ocasião. Nesse caso, não há "justiça" e não há "direito" posto que o que decide o julgado é a "força" maior ou menor dos contendores. Dois mil anos de aprendizado histórico levaram ao "direito formal", no qual o procedimento, as garantias legais e o contraditório devem evitar que a "força" e as oscilações de ocasião predominem.
TIRO
Com Getúlio tivemos uma "república do Galeão" com uma turma de militares mandando e desmandando em tudo até provocar o tiro no coração do presidente eleito. A legalidade e as garantias foram suspensas em nome do combate "sempre seletivo" da corrupção. No caso, ficaria provado mais tarde que Getúlio não havia enriquecido ilicitamente.
Hoje temos nova "república do Galeão" que logrou suspender –com a pressão da mesma mídia de antes– garantias básicas do direito moderno. Prende-se por meses a fio sem culpa formada, e o habeas corpus –historicamente o fundamento da ordem jurídica moderna– foi, na prática, suspenso. É aí que entra o "liberal brasileiro". Como o liberal brasileiro é um "pragmático" que se lixa para princípios, vale, inclusive, acabar com os princípios liberais se eles são do inimigo.
Se defendi no meu livro "A Tolice da Inteligência Brasileira" que somos todos feitos de tolos por um punhado de endinheirados e seus aliados na política e na mídia, posto que acreditamos no "complexo de vira-latas" que nos venderam – que somos um povo de corruptos enquanto outros seriam honestos –, sou forçado a reconhecer que nosso liberalismo não tem nenhum complexo. Ele "é" vira-lata.

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/02/1740875-o-partido-da-sociedade-para-poucos-jesse-souza-rebate-marcus-melo.shtml. Título original: 'O Partido da Sociedade para Poucos: Jessé Souza rebate Marcus Melo'. 


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Educação, formação profissional e professores

Extratos de uma lúcida entrevista com José Carlos Libâneo, uma das principais referências brasileiras na área da Pedagogia, concedida à Revista Pensar a Prática. 



Professor Libâneo, num momento em que se fala muito em crise de paradigmas científicos, morais, éticos e na própria crise da educação, que papel a escola deve desempenhar no mundo contemporâneo? 

Libâneo: Meu ponto de vista é o de que o mundo contemporâneo pede uma participação ainda maior da escola. Se valorizávamos a escola num momento em que tínhamos mais certezas em relação aos seus objetivos pedagógicos e políticos, especialmente na luta contra as desigualdades e a marginalização social, hoje ela aumenta de importância. O mundo de hoje passa por transformações profundas nas esferas da economia, da política, da cultura, da ciência. Do lado econômico conjugam-se os avanços científicos e tecnológicos na microeletrônica, bioenergia, informática e meios de comunicação, com a globalização da economia que é, na verdade, a mundialização do capitalismo. Essa associação entre ciência e técnica acabaram por propiciar mudanças drásticas nos processos de produção e transformações nas condições de vida e de trabalho em todos os setores da atividade humana.
Essas mudanças mexem diretamente com a escola. Mudanças na produção afetam a organização do trabalho e o perfil de trabalhador. Com as transformações técnicas (informatização, sistemas de comunicação, maior automação), modificam-se as profissões, reduz-se o trabalho manual, aumenta-se a necessidade de trabalhadores com mais conhecimento e melhor preparo técnico, de um trabalhador com mais cultura, mais polivalente, mais flexível. É evidente que tudo isso implica em valorizar a educação geral, propiciar novas habilidades cognitivas e competências sociais e pessoais. É esse tipo de escola que o capitalismo está precisando, uma escola com objetivos mais compatíveis com os interesses do mercado. No meu entender, os trabalhadores também precisam de novas bases para o ensino, inclusive levando em conta essas mudanças de que estou falando, mas de um ensino orientado por uma pedagogia da emancipação.
A vida contemporânea afeta as práticas de convivência humana, as pessoas estão mais isoladas e mais egoístas, há muito mais violência, as crianças estão mais impacientes e mais dispersivas na sala de aula. Outra coisa: hoje estamos cercados de informação via meios de comunicação, por causa dela compramos certas coisas e não outras, ligamos determinado programa de televisão, compramos certas marcas de tênis, de roupa, apoiamos o candidato que tem mensagens mais convincentes sejam elas verdadeiras ou não. Ela desperta nas pessoas necessidades e desejos que muitas vezes nem podem ser satisfeitos e isso pode gerar revolta, frustração.
Estou dizendo essas coisas para insistir nessa ideia de que a informação é uma força poderosa que nos domina e domina especialmente a grande maioria das pessoas que está afastada do conhecimento. Porque informação e conhecimento não são a mesma coisa. O conhecimento é o que possibilita a liberdade intelectual e política para as pessoas darem significado à informação, isto é, julgá-la criticamente e tomar decisões mais livres e mais acertadas.

Você, então, continua valorizando a escola, mesmo neste momento de crise da educação. Que prioridades precisam ser atendidas pela escola dentro de uma proposta de educação? 

Libâneo: Eu venho propondo quatro objetivos para a escola de hoje. Vou nomeá-los em seqüência, mas eles formam uma unidade, a realização de um depende da realização dos outros. O primeiro deles é o de preparar os alunos para o processo produtivo e para a vida numa sociedade tecno-científica-informacional. Significa preparar para o trabalho e também para as formas alternativas do trabalho. Para isso, é preciso investir na formação geral, isto é, no domínio de instrumentos básicos da cultura e da ciência e das competências tecnológicas e habilidades técnicas requeridas pelos novos processos sociais e cognitivos. Na prática, refiro-me a conteúdos (conhecimentos, conceitos, habilidades, valores, atitudes) que propiciem uma visão de conjunto das coisas, capacidade de tomar decisões, de fazer análises globalizantes de interpretar informações, de trabalhar em equipes interdisciplinares etc.
Em segundo lugar, proponho o objetivo de proporcionar meios de desenvolvimento de capacidades cognitivas e operativas, ou seja, ajudar os alunos nas competências do pensar autônomo, crítico e criativo. Este é o ponto central do ensino atual, que deve ser considerado em estreita relação com os conteúdos, pois é pela via dos conteúdos que os alunos desenvolvem a capacidade de aprender, de desenvolver os próprios meios de pensamento, de buscar informações.
O terceiro objetivo é a formação para a cidadania crítica e participativa. As escolas precisam criar espaços de participação dos alunos dentro e fora da sala de aula em que exercitem a cidadania crítica. É preciso retomar iniciativas de organização dos alunos dentro da escola, inclusive para uma ação fora da escola, na comunidade. Insisto na ideia de uma coisa organizada, orientada pela escola, em que os alunos possam praticar democracia, iniciativa, liderança, responsabilidade.
O quarto objetivo é a formação ética. É urgente que os diretores, coordenadores e professores entendam que a educação moral é uma necessidade premente da escola atual. Não estou pregando o moralismo, a doutrinação. Estou falando de uma prática de gestão, de um projeto pedagógico, de um planejamento curricular, que programe o ensino do pensar sobre valores. Minha proposta é a formulação intencional, coletiva, de estratégias dirigidas ao ensino das competências do pensar no âmbito da educação moral, da tomada de decisões. Penso que um bom começo seria retomar nas escolas uma prática muito comum: orientadores educacionais trabalham com grupos de dez/quinze alunos nas chamadas “sessões de orientação em grupo” onde se debatiam questões morais: relacionamento com os colegas, sexo e namoro, justiça, honestidade etc. É importante que eu diga que competências éticas, de valorar, decidir, agir, têm a ver radicalmente com a prática. Você aprende a ser justo não apenas ouvindo alguém dizer o que é justiça mas praticando justiça no cotidiano, em cada momento e lugar. Por isso, é fundamental o projeto pedagógico, porque ele expressa as intenções da direção e dos professores, quer dizer, os propósitos educativos da equipe em relação aos objetivos comuns, à organização da escola, à disciplina e também aos objetivos e práticas no campo ético: a solidariedade, o respeito às diferenças e à diversidade cultural, a justiça, a honestidade, a preservação ambiental, a paz, a busca da qualidade da vida.
São algumas pistas, muito simples, mas que, na minha opinião, são pontos mínimos de um programa assertivo. Em resumo, eu proponho investir na capacitação efetiva para empregos reais e na formação do sujeito político socialmente responsável. 


Você parece um tanto contrariado com os rumos do construtivismo. Qual é sua opinião a esse respeito? E a teoria da inteligência emocional tem futuro entre os educadores? 

Libâneo: Não sou contra o construtivismo, mas contra sua oficialização e sua banalização. O construtivismo é uma concepção psicológica de desenvolvimento e aprendizagem que acentua a construção do conhecimento pelo aluno, a relação ativa entre o aluno e o objeto de conhecimento, a importância da construção das estruturas cognitivas. É uma teoria importante e sem dúvida muito útil aos professores. O problema é achar que o construtivismo resolve todos os males pedagógicos da escola. A professora Marilia Miranda, da UFG, tem estudado os exageros e os riscos da adoção do construtivismo no Brasil. Uma de suas críticas principais é que uma versão atual do construtivismo transforma uma concepção psicológica de inteligência em princípio educativo, ou seja, estaria de volta o “psicologismo” em educação. 
A difusão dessa concepção é tão grande que alguns Estados oficializaram o construtivismo. Em muitos lugares fala-se aos professores para jogar fora tudo o que ele sabe e faz, porque agora chegou o construtivismo. Os professores passam a entender que o método agora é trabalhar com sucata, que não é o professor que ensina, é o aluno que constrói seu conhecimento, que agora não é mais necessário livro didático porque o que importa é o saber da vida da criança etc. Eu não acho isso certo. Sei que há muitos intelectuais sérios que têm influenciado os professores com seus livros e palestras, mas é preciso que prestem atenção no que os professores fazem, com o que dizem e com o mundo cultural da escola e do professor. Por exemplo, quando se diz que a criança aprende fazendo, que ela é que constrói seu conhecimento, o professor tem uma boa justificativa para livrar-se do peso de seu despreparo teórico e profissional. Agora não precisa mais preocupar-se com conteúdo, o professor não precisa mais ter autoridade na sala porque o que ele deve fazer é só orientar os alunos. Acho que não é assim que se faz uma escola e um ensino de qualidade.
Quanto à teoria da inteligência emocional, é uma teoria recente difundida largamente por um autor chamado Daniel Goleman. O título do livro diz assim: Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o que é ser inteligente. Ele diz que os nossos sentimentos precisam ser considerados em complementaridade com a nossa inteligência. Isso não é novidade, Piaget já havia assinalado que afetividade e inteligência são duas faces da atividade cognitiva, embora uma não se reduza a outra. O problema que eu vejo é o modismo e o reducionismo, de achar que agora não precisa muito conteúdo, nem muita disciplina, o que precisa é que as crianças sejam felizes, que expressem seus sentimentos, que só vale o que dá prazer. De repente os professores começam a dar explicações fáceis ao insucesso escolar, às dificuldades dos alunos com a aprendizagem, achando que isso está ligado aos sentimentos, às emoções deixando de lado o papel do ensino, dos conteúdos, da escola. Isso eu não acho certo.

Ao analisar os conteúdos, as metodologias e as diretrizes didáticas sugeridas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, que avaliação o senhor faz do ponto de vista da didática? 

Libâneo: Eu falava que a profissionalização do professor é uma questão prioritária. Há uma fragilidade muito grande do sistema de formação. Minha impressão é que em todo o país os professores vêm recebendo uma formação profissional muito precária nas disciplinas que irão lecionar e no “saber ensinar”. A cultura geral do professorado é frágil. É claro que tudo isso tem a ver diretamente com a descaracterização da profissão, inclusive pelas condições de trabalho, salário, jornada, carreira. Então, minha primeira preocupação nem é avaliar os conteúdos e as metodologias sugeridos pelos PCNs, mas saber se os professores estão preparados para entender os PCNs e trabalhar com os PCNs. Então, antes ou junto com a implantação dos PCNs, eu penso que seria necessário um plano nacional de requalificação profissional de professores, decisões convincentes sobre piso salarial de professores, plano de carreira, sistema nacional de formação inicial e continuada, formas de acompanhamento do processo de implementação, alocação de recursos para ações de formação e requalificação.
Agora, em relação à didática, acho essa disciplina indispensável na formação do docente. Para mim, o domínio da didática é crucial, didática e prática de ensino junto. Não adianta apenas o professor ter consciência política, participar dos sindicatos. O professor precisa dominar e atualizar-se nos conceitos, noções, procedimentos ligados à matéria (ou matérias, no caso do professor das séries iniciais) e precisa “saber fazer”, ter capacidade operatória que é saber definir objetivos de aprendizagem, saber selecionar atividades adequadas às características da classe, saber variar situações de aprendizagem, saber avaliar aprendizagens nas várias disciplinas, saber analisar resultados e determinar causas do fracasso, saber participar de uma reunião, ter manejo de classe, saber usar autoridade, saber escutar, saber diagnosticar dificuldades dos alunos. Acho que as faculdades e cursos de licenciatura não estão ensinando essas coisas. Atualmente poucos professores dos futuros professores têm experiência de magistério com crianças e jovens e se perdem na hora de trabalhar o “saber fazer” docente.
Então, me parece que o desafio dos cursos de formação de professores é este: colocar na sala de aula professores inteligentes e práticos, isto é, capazes de dominar a situação de trabalho com boas soluções, com esperteza, com boas estratégias. Ser inteligente é você usar o conhecimento de maneira útil pertinente, ter soluções, ter ideias, ter senso prático... Mas para isso, é preciso uma boa formação. Os professores precisam aprender a buscar informação, adquirir ferramentas conceituais para compreender a realidade, ampliar sua cultura geral, aprender a lidar competentemente com as práticas de ensinar. São questões da didática. Isso precisa estar presente na formação inicial, feita nos cursos de formação, e na formação continuada, feita nas próprias escolas ou partir dos problemas apontados nas escolas.
Também acho necessário que os cursos de formação e as escolas planejem estratégias de mudança na mentalidade dos professores em relação às formas de trabalho. As transformações na ciência, na noção de conhecimento e do processo do conhecimento estão afetando muito os métodos e procedimentos de ensino. Essa mudança de mentalidade precisa começar na própria organização pedagógica e curricular, nas formas de gestão da escola, na elaboração do projeto pedagógico. Os professores mudarão sua maneira de ensinar à medida que vivenciarem novas maneiras de aprender. Por isso acho importante a formação continuada, na própria escola. Esse é um trabalho conjunto da escola, em que o coordenador pedagógico tem um papel crucial. Todas as escolas precisam ter um coordenador pedagógico muito bem formado para poder ajudar os professores a pensar sua prática, a estudar, tendo como objeto de estudo tanto as ações que já realiza quanto a relação existente entre esse objeto de conhecimento (o ensino) e seus próprios processos de aprendizagem. 

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Fonte: Revista Pensar a Prática - https://www.revistas.ufg.br