Faço uma "pausa no compasso de espera" do blog,
decorrente das atividades no estrangeiro por estes dias. Ou uma "pausa na pausa" das postagens. A razão é bastante objetiva. Um amigo português deu-me a
conhecer que o meu último texto sobre o surrealismo está a ser reproduzido
com denominações diferentes. Um colega espanhol, hoje (29/03), confirmou-me
isso, apresentando-me a sua publicação em castelhano com um título que
possivelmente não capta a natureza do texto.
Publiquei-o inicialmente, com o título atribuído por mim, sob a
denominação ‘La insumisión del arte: entre el romanticismo
y el surrealismo’. Contudo, o portal espanhol Contrainfo o tem publicado como ‘Subversión en el arte’. Não tem o
mesmo significado do sentido do título original que empreguei, e menos ainda
quando é traduzido para outras línguas. Bom, mas principalmente atualmente, em
tempos de sociedade em rede, os textos circulam independentemente dos seus
autores. Nada tenho a objetar sobre isso. Fica, no entanto, o meu registro quanto
à impropriedade do título. De toda forma, o portal espanhol Contrainfo o disponibiliza aqui: http://www.contrainfo.com/23749/subversion-en-el-arte-entre-el-romanticismo-y-el-surrealismo/.
O blog volta ao compasso de espera.
quarta-feira, 29 de março de 2017
sábado, 25 de março de 2017
Compasso de espera
Em decorrência de uma viagem ao exterior, faço uma pausa nas postagens. O blog entra em compasso de espera.
sexta-feira, 24 de março de 2017
O sentido de tudo isso: os fios que são tecidos
Moiras: na mitologia grega, três irmãs que teciam e interrompiam o fio da vida |
Por Susan Wolf
(Professora de Filosofia na University of North Carolina at Chapel Hill; texto
publicado em Routledge
Encyclopedia of Philosophy, ed. by
Edward Craig, Londres: Routledge, 1998)
1. O que significa “o sentido da vida”?
A
pergunta “qual é o sentido da vida?” é provavelmente a que causa, ao mesmo
tempo, mais desprezo e mais respeito entre os pensadores. Por um lado, é uma
pergunta notoriamente vaga e deu azo a muitos disparates pomposos. Por outro, a
necessidade de compreender o sentido da nossa existência é profunda e
universal, apontando qualidades da mente que são possivelmente centrais para a
existência humana.
Uma
dificuldade significativa que rodeia este tópico é a falta de clareza do
próprio tema, e as comparações que podemos fazer com outros contextos nos quais
procuramos encontrar um sentido tendem a aumentar a confusão. Quando procuramos
o sentido de palavras ou frases, tentamos averiguar a forma como normalmente
são usadas para comunicar. Porém, a vida não é um elemento num sistema de
comunicação. Nada indica que seja usada ou que sirva para representar alguma
coisa para além de si própria. Em certas circunstâncias, também falamos sobre o
sentido de elementos não-linguísticos: as pegadas indicam a presença de alguém;
as pintas vermelhas na pele de uma criança significam que tem sarampo. No
entanto, as analogias com estes usos da palavra “sentido” não nos ajudam a
responder à nossa pergunta.
As
preocupações centrais que subjazem a este tópico incluem questões sobre a
existência de um objectivo para a vida, sobre o valor da vida e sobre a
existência de uma razão para viver, independentemente das circunstâncias e
interesses individuais. Qualquer destas questões pode ser aplicada à vida,
normalmente à vida humana, mas também às vidas individuais, particularmente às
nossas próprias vidas. Podemos procurar motivações, razões e valores aceitáveis
a partir de pontos de vista que nos são exteriores, ou podemos restringir a
nossa atenção ao campo dos desejos e objectivos das nossas psiques ou das
nossas comunidades, indiferentes a possíveis perspectivas que possam existir
além da esfera humana. Embora a expressão “o sentido da vida” pareça pressupor
apenas um sentido para a vida, podemos ser levados a rejeitar este pressuposto
sem ser preciso concluirmos que a vida não tem sentido. Muitas vezes o próprio
objecto da pergunta vai-se transformando ao longo do próprio processo de lhe
dar uma resposta.
Portanto,
indagar sobre o sentido da vida é como envolvermo-nos numa busca em que só
estamos certos daquilo que procuramos quando o encontramos. Qualquer tentativa
de arranjar uma paráfrase inequívoca para a expressão “o sentido da vida” está
sujeita, tal como a própria expressão, a excluir certas opções e suprimir
caminhos de questionamento que não deveriam ser abandonados de antemão.
2. A relevância da morte
O
sentimento de que estamos perante um problema quando pomos a questão do sentido
da vida é frequentemente induzido pela contemplação da morte. Na verdade,
muitas vezes pensa-se — como Schopenhauer (1851) e Tolstoi (1886) — que a
questão emerge precisamente do facto de as nossas vidas acabarem com a morte.
No entanto, como alguns filósofos observaram, a ligação entre a nossa finitude
e o sentido da vida é desconcertante. Se o pressuposto de que todos morremos
faz a vida parecer sem sentido, de que maneira o pressuposto contrário — de que
viveremos eternamente — melhora a situação?
Uma
possível explicação para a ligação entre o pensamento da morte e o medo de que
a vida não tenha sentido é que quando enfrentamos a nossa própria mortalidade
destruímos os nossos ideais de felicidade. Se a felicidade plena fosse verossímil,
ou mesmo possível, poderíamos não sentir a necessidade de encontrar um sentido
— não precisamos de ter uma razão para viver enquanto a vida é agradável, e o
objectivo de atingir a felicidade plena, se esta fosse atingível, já seria
suficiente. No entanto, para alguns, a ideia de que um dia morrerão torna a
felicidade impossível. De uma maneira algo diferente, o reconhecimento da
inevitabilidade da morte da nossa cultura e da nossa espécie, tal como de nós
próprios, pode dar agora a ideia de que os interesses e os objectivos que
tínhamos são destituídos de valor ou vãos.
A
crença num Deus pode aliviar estas preocupações. A promessa de uma vida após a
morte, na qual pelo menos alguns atingem a felicidade eterna, renova a
possibilidade de procurar obter a felicidade plena. Por si só, a existência de
um ser eterno e superior que cuida de nós e através do qual pautamos as nossas
vidas alivia a preocupação com a insignificância dos nossos objectivos e da
nossa conduta.
3. Absurdo
Albert
Camus concentrou-se sobre o conflito entre a nossa exigência de que o mundo
seja razoável, ordeiro e atento a nós, e a realidade do mundo, isto é, o facto
de o mundo ser mudo, inexpressivo e indiferente. Thomas Nagel acentua a
discrepância entre a insignificância objectiva das nossas vidas e dos nossos
projectos e a seriedade e a energia que lhes dedicamos. Como devemos então
reagir?
Uma
vez que o reconhecimento da indiferença do universo pode ser uma experiência
aniquiladora, a ideia do suicídio emerge naturalmente. Se todos os nossos
objectivos forem baseados no pressuposto de que a nossa existência ou as nossas
acções dizem respeito a uma entidade ou processo mais abrangentes e menos
necessitados de validação do que nós próprios, então a descoberta da
inexistência de uma tal entidade deixa-nos sem qualquer direcção a seguir. E se,
além disso, pensarmos que qualquer direcção que tomarmos reintroduzirá
necessariamente o pressuposto que agora sabemos ser falso, então nessa altura
poderá parecer-nos que a única opção que evita a contradição é o suicídio. No
entanto, Camus (1955) pensava que há um modo de vida que não é contraditório.
Descreveu o “homem absurdo” como aquele que vive “sem apelo”, desafiando a
indiferença que o mundo lhe oferece. Uma pessoa assim abraça a vida o mais
plenamente possível, mas sem nunca esquecer ou negar a ausência de algum
fundamento racional para a mesma.
Nagel
dá-nos uma resposta mais suave (1971): o reconhecimento da nossa
insignificância é uma função da capacidade distintamente humana de adoptarmos
uma perspectiva externa sobre nós próprios; como tal, não há qualquer razão
para tentar negá-la ou para dela fugir. Ao mesmo tempo, se as nossas vidas são
cosmicamente insignificantes, também o é a maneira como respondemos a este
facto. À luz deste argumento, sugere Nagel, a atitude de desafio parece
excessivamente exagerada e dramática, sendo a ironia mais apropriada.
Richard
Taylor (1970) retira uma moral diferente do silêncio do universo: o
reconhecimento de que a vida seria, por assim dizer, objectivamente desprovida
de sentido, deveria convencer-nos a deslocar a nossa procura de sentido para o
interior. O tipo de sentido da vida que importa ter em consideração é um
sentido para nós. A vida tem sentido se pudermos ocupar-nos de actividades que
achamos serem significativas; de outro modo, não.
Todos
estes filósofos partilham a ideia de que se não há nada mais vasto e mais
intrinsecamente válido do que nós próprios, algo a que nos possamos ligar de
uma forma positiva, então a vida não tem sentido pelo menos numa acepção
importante. Nisto concordam com quem tem uma ideia positiva do sentido da vida
baseada na existência de um Deus benevolente. Uma vez que também acreditam que
a condição para o sentido não pode ser encontrada, e que ainda assim devemos
viver como se a vida tivesse sentido, concluem que a vida humana é absurda. No
entanto, e tal como Joel Feinberg (1992) assinala, há uma diferença entre uma
situação absurda e uma pessoa absurda. Ao tomarmos uma atitude face ao nosso
dilema, quer desafiante quer irónica, ou uma qualquer terceira alternativa,
pelo menos podemos livrar-nos de ser ridículos.
Porém,
em termos racionais, não é claro que tenhamos que fazer até esta concessão
relativamente não pessimista ao pensamento de que a vida humana é absurda. Tal
como vimos, esta concepção assenta na ideia de que há um conflito inelutável
entre o que exigimos ou que inevitavelmente pressupomos acerca do nosso lugar
no universo e a realidade da nossa situação. Todavia, a tendência para desejar
ou insistir na nossa importância cósmica pode ser menos profunda e inevitável
do que estes filósofos pensam. Enfrentar as dificuldades da vida e tentar
realizar projectos com energia e dedicação são práticas que não precisam de ser
baseadas numa megalomania. Não é pelo menos óbvio que, quando o atleta olímpico
se esforça até ao limite na tentativa de atingir um recorde mundial, ou quando
uma mãe põe de lado o seu sono e o seu conforto para alimentar a sua criança, o
façam com base na crença de que estes feitos terão um significado cósmico.
4. Sentido subjectivo e objectivo
Embora
as discussões sobre o sentido da vida estejam muitas vezes associadas a
considerações sobre o nosso lugar no universo, também há contextos em que a
inteligibilidade do contraste entre vidas com sentido e vidas sem sentido
parece ser totalmente independente da questão cósmica.
Já
mencionámos antes a ideia de que o tipo de sentido que importa ter em
consideração é o sentido objectivo. Alguns filósofos, como David Wiggins
(1976), pensam que uma explicação totalmente subjectiva sobre o sentido não
pode fazer justiça ao uso corrente do termo. Como Wiggins assinala, a ideia de
uma distinção entre uma vida com sentido e uma vida sem sentido não é
equivalente à diferença mais óbvia e incontroversa entre uma vida que é
subjectivamente satisfatória ou enriquecedora e outra que não o é. Quando
perguntamos se as nossas vidas têm sentido não estamos a fazer algo totalmente
introspectivo, e quando procuramos uma forma de dar sentido às nossas vidas,
não estamos à procura do comprimido da felicidade. A vida de Sísifo,
perpetuamente condenado a carregar um pedregulho por um monte acima que depois
caía outra vez, tem sido caracterizada, pelo menos desde os escritos de Camus,
como um paradigma da ausência de sentido. Se imaginarmos que Sísifo encontrava
uma perversa satisfação nesta actividade repetitiva e inútil, então não é claro
se pensamos que nesse caso a sua vida tem mais sentido, ou, se pelo contrário,
é mais miserável.
Todavia,
as explicações sobre o sentido da vida não têm de ser reduzidas a alternativas
puramente subjectivas e puramente objectivas. Os paradigmas mais naturais de
vidas com sentido são tanto subjectivamente bastante enriquecedores como dignos
de admiração e válidos se julgados de pontos de vista externos aos próprios
agentes. O tipo de vida que é mais confortavelmente descrita como tendo sentido
parece ser uma vida em que há uma ligação feliz entre os interesses reais de
uma pessoa e o conjunto de coisas que são dignas de interesse. O sentido parece
emergir quando a atracção subjectiva se interliga ao que é objectivamente
atraente.
Se
este tipo de existência de sentido está relacionado com a preocupação que mais
naturalmente parece requerer uma ligação a algum desígnio divino ou cósmico, e
como, são questões de difícil determinação. Além disso, a noção de algo
“objectivamente atraente” (ou de valia ou valor objectivo), à qual esta
concepção de existência de sentido faz referência, é notoriamente controversa.
Se, no limite, esta noção é inteligível, particularmente na ausência de uma
metafísica religiosa, é algo que constitui em si uma importante questão
filosófica. No entanto, não é surpreendente que a questão do sentido da vida
derive para outras questões filosóficas importantes e a elas se ligue. Trata-se,
afinal, de um dos tópicos mais profundos e fundamentais de todo o pensamento
humano.
O enigma da manhã que pulsa: as portas das palavras
De Herberto Helder, 'A manhã começa a bater no meu poema'.
O não futuro de uma lei sorrateira: o fim do emprego e o mascaramento da notícia
Por Vladimir Safatle
(Departamento de Filosofia
da USP)
Nunca na história da
República o Congresso Nacional votou uma lei tão
contrária aos interesses da maioria do povo brasileiro de forma tão sorrateira.
A terceirização irrestrita aprovada nesta semana cria uma situação geral de
achatamento dos salários e intensificação dos regimes de trabalho, isto em um
horizonte no qual, apenas neste ano, 3,6 milhões de pessoas voltarão à pobreza.
Estudos sobre o mercado de trabalho demonstram como
trabalhadores terceirizados ganham, em média, 24% menos do que trabalhadores
formais, mesmo trabalhando, em média, três horas a mais do que os últimos. Este
é o mundo que os políticos brasileiros desejam a seus eleitores.
Nenhum deputado, ao fazer campanha pela sua própria
eleição em 2014, defendeu reforma parecida. Ninguém prometeu a seus eleitores
que os levariam ao paraíso da flexibilização absoluta, onde as empresas poderão
usar trabalhadores de forma sazonal, sem nenhuma obrigatoriedade de contratação
por até 180 dias. Ou seja, esta lei é um puro e simples estelionato eleitoral
feito só em condições de sociedade autoritária como a brasileira atual.
Da lei aprovada nesta semana desaparece até mesmo a obrigação
da empresa contratante de trabalho terceirizado fiscalizar se a contratada está
cumprindo obrigações trabalhistas e previdenciárias. Em um país no qual
explodem casos de trabalho escravo, este é um convite aberto à intensificação
da espoliação e à insegurança econômica.
Ao menos, ninguém pode dizer que não entendeu a lógica da
ação. Em uma situação na qual a economia brasileira está em queda livre,
retirar direitos trabalhistas e diminuir os salários é usar a crise como
chantagem para fortalecer o patronato e seu processo de acumulação. Isto não
tem nada a ver com ações que visem o crescimento da economia. Como é possível
uma economia crescer se a população está a empobrecer e a limitar seu consumo?
Na verdade, a função desta lei é acabar com a sociedade
do emprego. Um fim do emprego feito não por meio do fortalecimento de laços
associativos de trabalhadores detentores de sua própria produção, objetivo
maior dos que procuram uma sociedade emancipada. Um fim do emprego por meio da
precarização absoluta dos trabalhos em um ambiente no qual não há mais
garantias estatais de defesa mínima das condições de vida. O Brasil será um
país no qual ninguém conseguirá se aposentar integralmente, ninguém será
contratado, ninguém irá tirar férias. O engraçado é lembrar que a isto alguns
chamam "modernização".
De fato, há sempre aqueles dispostos à velha
identificação com o agressor. Sempre há uma claque a aplaudir as decisões mais
absurdas, ainda mais quando falamos de uma parcela da classe média que agora
flerta abertamente com o fascismo. Eles dirão que a flexibilização irrestrita
aumentará a competitividade, que as pessoas precisarão ser realmente boas no
que fazem, que os inovadores e competentes terão seu lugar ao sol. Em suma, que
tudo ficará lindo se deixarmos livre a divina mão invisível do mercado.
O detalhe é que, no mundo dessas sumidades, não existe
monopólio, não existe cartel, não existem empresas que constroem monopólios
para depois te fazer consumir carne adulterada e cerveja de milho, não existe
concentração de renda, rentismo, pessoas que nunca precisarão de fato trabalhar
por saberem que receberão herança e patrimônio, aumento da desigualdade. Ou
seja, o mundo destas pessoas é uma peça de ficção sem nenhuma relação com a
realidade.
Mas nada seria possível se setores da imprensa não
tivesse, de vez, abandonado toda ideia elementar de jornalismo.
Por exemplo, na semana passada o Brasil foi sacudido por
enormes manifestações contra a reforma da previdência. Em qualquer país do
mundo, não haveria veículo de mídia, por mais conservador que fosse, a não dar
destaque a centenas de milhares de pessoas nas ruas contra o governo. A não ser
no Brasil, onde não foram poucos os jornais e televisões que simplesmente
agiram como se nada, absolutamente nada, houvesse acontecido. No que eles
repetem uma prática de que se serviram nos idos de 1984, quando escondiam as
mobilizações populares por Diretas Já!. O que é uma forma muito clara de
demonstrar claramente de que lado sempre estiveram. Certamente, não estão do
lado do jornalismo.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle. Título original: 'O Fim do Emprego'.
quinta-feira, 23 de março de 2017
A insistência numa ilusão desfeita
Quando o paraibano Celso Furtado deixou a cidade de Pombal e partiu para o mundo, não imaginava que chegaria tão longe. É o que consta da sua trilogia autobiográfica: A Fantasia Organizada, A Fantasia Desfeita e Os Ares do Mundo. No primeiro volume, ele relembra o Rio de Janeiro dos anos 1940 e o ambiente intelectual que o cativou e motivou; depois, a vida em Paris para o doutoramento em economia; em seguida, os anos em países da América Latina, designadamente no Chile, como funcionário da CEPAL em Santiago. No segundo volume, trata dos seis anos em que esteve no Brasil trabalhando nos governos de Juscelino Kubitschek, Jânio e João Goulart, esforçando-se para construir um projeto de Brasil desenvolvido e autônomo, sendo a SUDENE, em Recife, da qual foi o seu primeiro diretor, um símbolo nesse sentido. Punido e expulso do país pela ditadura militar instalada pelo golpe de 1964, Furtado partiu para o exílio. É do que trata o terceiro volume: a sua atividade acadêmica no estrangeiro e as viagens por uma variedade de países, incluindo, além dos Estados Unidos e nações europeias, incursões por África e Ásia. A intensa atividade intelectual nas universidades de Paris, Yale, Cambridge e Columbia. No seu caminho, personagens como Jean-Paul Sartre, Amartya Sen e Lévi-Strauss. Com esse percurso, um aspecto a notar na trajetória de Furtado é a lucidez. E isto está bem refletido no segundo volume da trilogia - A Fantasia Desfeita. Estive lembrando da leitura desse livro e da lucidez de Furtado ao ver/ler como determinados "setores progressistas" têm tratado a 'Operação Carne Fraca' e os seus desdobramentos (mas não só). Uma coisa é questionar o modo impróprio como a PF se pautou no caso, como de resto qualquer espetáculo jurídico-policial, outra coisa, muito diferente, é querer, a partir do episódio, carregar tintas num tipo de nacionalismo com atores que têm degradado a ideia de um projeto nacional progressista, levando-o mesmo a uma enrascada, conforme os fatos da atual conjuntura brasileira bem demonstram. Será que, por exemplo, não se tirou nenhuma lição dos excessos/equívocos em torno da política de desonerações? Não enxergar o que a conjuntura está fazendo saltar aos olhos significa insistir numa ilusão desfeita. De resto, é uma postura que insiste em continuar fechando os olhos para o que a boa tradição da ciência social latino-americana, há tempos, realçou e continua a realçar em esferas como a da Teoria da Dependência. A esse respeito, vai aí abaixo um trabalho que publiquei num periódico português, na época em que esse nacionalismo deformado andava a braços com os atores econômicos que, atualmente, se transformaram em algozes dos que empunhavam a bandeira daquele. Quem não aprende nada com a história está fadado a cometer os mesmos erros.
A TEORIA DA DEPENDÊNCIA E A AMÉRICA LATINA:
DA RETROSPECTIVA ÀS NOVAS PERSPECTIVAS
Por Ivonaldo Leite
Sobrevivência da Escola da Dependência
Houve uma altura em
que era inimaginável analisar a conjuntura político-económica e social
latino-americana sem recorrer ao quadro teórico da Escola da Dependência. Mesmo
os que a rejeitavam, viam-se obrigados a referir o seu aporte. Todavia, com a
chegada dos anos neoliberais, a situação mudou de configuração.
Por um lado, o background dependentista
foi posto de parte pela “inteligentzia” do laissez-farie, laissez-passer que, hegemónica na região, qualificava
as abordagens da dependência como ultrapassadas e resultantes de mera
ideologia. Por outro lado, houve “o caso Fernando Henrique Cardoso”. Ainda que,
considerando as teses da versão da Teoria da Dependência formulada por FHC, não
deva ser visto com surpresa o rumo que ele adoptou à frente do governo brasileiro
(1), não deixou de ser impactante – no seio
e no entorno de tal Escola - as opções políticas que ele abonou. Contudo, a
história é sempre mais dinâmica do que algumas mentes supostamente “iluminadas”
imaginam (a ponto de proclamarem o seu fim). Eis, portanto, a questão: não só a
Escola da Dependência não desapareceu como hoje se tem presenciado um regresso
de estudos baseados em suas elaborações, no que se tem constituído na sua
renovação/continuidade por outras vias.
É oportuno, portanto,
passar em revista, em forma de retrospectiva, as elaborações primárias da TD,
no contexto latino-americano, como forma de apreender o mapa teórico a partir
do qual as novas perspectivas acerca da dependência se têm desenvolvido.
Dialéctica
das antigas e novas dependências na América Latina
A tese central da TD
enfatiza que os países dependentes são explorados pelos países centrais,
primeiro, no período colonial, por via da apropriação violenta do excedente
gerado, depois, contemporaneamente, através do comércio, das relações de troca,
do capital financeiro, etc., engendrando o subdesenvolvimento.
Todavia, a teoria da
dependência não se caracteriza como uma construção homogênea. Grosso modo,
podem ser distinguidas duas versões: uma representada pelas formulações de
Fernando Henrique Cardoso, cujo trabalho de base foi escrito em parceria com
Enzo Faletto (2), e outra formulada pelas elaborações de
autores como Rui Mauro Marini e Theotonio dos Santos (3). Correndo por fora, além continente,
claro está, encontram-se, por exemplo, Samir Amin e André Gunder Frank.
A versão representada
por Cardoso relativiza a determinação externa da
dependência/subdesenvolvimento, sublinhando, por exemplo, na América Latina, a
ocorrência de uma situação de desenvolvimento dependente-associado, como
resultado do grau de ação dos agentes locais em conexão com forças econômicas
externas, o que, ao fim e ao cabo, levou Traspadini a descrevê-lo como teórico
da interdependência (4). Aliás, o próprio Cardoso, ao definir a
sua posição, afirmou que ela desloca o enfoque de um plano do condicionante
externo, substituindo assim um “estilo de análise baseado em determinações
gerais” (5).
A segunda versão
referida concede maior peso causal aos fatores externos na determinação das
situações de dependência/subdesenvolvimento. Neste sentido, Rui Mauro Marini
realça que “a dependência pode ser entendida como uma relação de subordinação
entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações de produção
das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução
ampliada da dependência” (6). Na mesma perspectiva, Theotonio dos
Santos apresentou uma tipologia das formas históricas da dependência,
periodizada em três momentos: a primeira corresponde à dependência colonial,
representada pela exportação de produtos in natura e onde o capital comercial e
financeiro – coligado com Estados colonialistas – domina as relações entre a
Europa e o mundo colonial; a segunda diz respeito à dependência
financeiro-industrial, consolidada em fins do século XIX, sendo
marcada pela ação do grande capital voltado às matérias-primas/produtos
agrícolas; e a terceira, erigida nos anos 1970, concerne à dependência
tecnológica-industrial, cuja característica básica consiste na
atuação das corporações multinacionais como investidoras no mercado interno dos
países subdesenvolvidos, obrigando estes, por exemplo, a importarem máquinas
para o desenvolvimento de suas industrias (7).
Em função da nova
divisão internacional do trabalho, como expressão empírica da realidade
latino-americana, tem sido categorizada – como continuidade da elaboração de
Theotonio dos Santos - uma quarta forma de dependência, tendo, entre as suas
características, a transferência de recursos e a valorização do capital
fictício (8). Trata-se de uma perspectiva que procura
mostrar as diferenças entre as fases anteriores do capitalismo e a atual,
assinalando que esta se distingue por ser fortemente marcada pela
financeirização da economia e assente no movimento de generalização
especulativa do capital.
Deste ponto de vista,
os dispositivos analíticos aportados pela mencionada categorização permitem
apreender as novas manifestações da dependência na América Latina. Neste
sentido, o programa político-econômico propagado é claro: rompimento total com
a idéia de desenvolvimento tributária do projeto de substituição das
importações; supressão dos mecanismos de regulação dos mercados, eliminando-se,
por exemplo, os dispositivos de proteção social no mercado de trabalho;
configuração do chamado Estado mínimo, etc.
Tendo como referência essas bases, Jaime Osório chamou tal programa de el nuevo patrón exportador
latinoamericano, quer dizer, “un nuevo patrón de
reproducción del capital, que en sus líneas generales puede caracterizarse como
un nuevo modelo exportador” (9). Ao fim e ao cabo, isto representa a
estruturação de uma nova economia para a região, centrada na especialização, ao
invés de na industrialização diversificada - levada a efeito no período
desenvolvimentista anterior. A tese básica aqui, embora às vezes disfarçada, é
que a industrialização/desenvolvimento da América Latina pode ter curso, até de
modo mais eficiente, desde que apoiado na vocação primário-exportadora de suas economias,
sintonizando-se assim com as tradicionais elaborações teóricas das vantagens
comparativas do comércio internacional.
Desta forma,
revigora-se a noção de intercâmbio desigual, conforme foi formulada por Rui
Mauro Marini, visto que a exportação de produtos de baixo valor agregado,
intensivos em força de trabalho e recursos naturais, e de mais baixos níveis de
produtividade – cujas indústrias são predominantes de países não-centrais –
ocorre vis-à-vis à necessária ampliação da importação de produtos de maior
valor agregado e de níveis de produtividade superiores (próprios de países
centrais), registrando-se assim a transferência do excedente produzido nos países
não-centrais para os centrais (provocando desequilíbrios na balança comercial e
de serviços) e o decorrente imperativo da
atração de capitais que possam fazer frente a estes desequilíbrios.
A atração de tais
capitais pode ocorrer, por exemplo, através de investimento direto estrangeiro
(IDE) e de empréstimos, por via do lançamento de títulos de dívida e de
propriedade. Seja como for, os riscos não são poucos. A propósito, no primeiro
caso, embora o IDE faça aumentar a capacidade produtiva nacional, por outro
lado, ele também enfraquece a acumulação interna de capital, na medida em que
torna crescente a remessa de excedente para o exterior (a repatriação dos
lucros) – o que termina por colocar, mais adiante, o problema das contas
externas. No segundo caso, os referidos empréstimos tendem a adquirir caráter
especulativo, em função da baixa credibilidade e dos riscos de aplicação nos
países não-centrais, e são emitidos como papéis de curto prazo e de alta
rentabilidade, por conta das elevadas taxas de juros. Desta forma, é comum que,
na busca de valorização, se verifique uma intensa volatilidade de tais papéis,
com eles entrando e saindo rapidamente dos países, sem estabelecerem nenhum
vínculo mais duradouro, o que, conseqüentemente, pela fuga de capitais que
provocam, agrava os problemas das contas externas.
Os desdobramentos
dessas políticas, em perspectiva de futuro, não são alvissareiros. Forma-se um
círculo vicioso norteado pela atração de capitais externos de curto prazo para
fazer frente aos desequilíbrios no balanço de pagamentos, o que é levado a cabo
por via do aumento dos juros domésticos, tendo como decorrência, evidentemente,
o aumento da dívida interna, além do desestímulo aos investimentos produtivos e
ao próprio consumo – o que bloqueia o crescimento e a produção de valor.
São opções que
redundam na manutenção dos chamados superávits primários, voltados ao pagamento
de juros, o que também serve de sinalizador à entrada de mais recursos, na
medida em que tal sinalizador inspira “confiança” ao capital externo. Chega a
ser até quase desnecessário, pelo óbvio, repisar que isto significa subtração
de recursos públicos de determinadas áreas (principalmente as sociais) e, por
consequência, redução da capacidade de investimento do Estado, e não só no
setor social, mas também em áreas imprescindíveis ao desenvolvimento nacional,
como é o caso da infra-estrutura. No horizonte, portanto, cessada alguma
euforia imediata, o que se vislumbra é uma intensa perca de autonomia das
políticas nacionais, com o Estado se vendo refém da financeirização externa.
Assim, o resultado não pode ser outro: restringe-se o crescimento interno, em
virtude dos déficits em conta corrente e da necessidade de manter as taxas de
juros elevadas como forma de atrair o capital especulativo para cobri-los.
À guisa de conclusão
Se, primariamente, na
América Latina, tanto na versão da TD preconizada por FHC como na formulada por
Theotonio dos Santos e Rui Mauro Marini, manteve-se um forte foco numa parte do
“elo” internacional (a dependente), a renovação das abordagens dependentistas,
por sua vez, tem deslocado as análises para uma perspectiva que apanha o
sistema económico mundial em sua totalidade.
Segue-se assim,
portanto, uma indicação esboçada por André Gunder Frank ainda nos anos 1970,
como realça Theotônio dos Santos, assinalando este, por outro lado, que isso
promove o encontro dos dependentistas com a Escola do Sistema Mundo, conforme
ela é conceptualizada por Immanuel Wallerstein (10). Esta, digamos, ampliação dos
propósitos analíticos da TD tem um valor fundamental, principalmente quando
consideramos o carácter do capitalismo contemporâneo.
Desde as últimas
décadas do século passado, o sistema tem diversificado, em âmbito global, os mecanismos
de dependência, lançando mão de “sofistificadas” estratégias amparadas no par
inovação tecnológica-financeirização. Verifica-se que a super-exploração do
trabalho, até há algum tempo, própria dos países não-centrais, tem crescido nas
sociedades centrais, sendo de referir, neste sentido, o fim do pleno emprego e
a generalização da precarização laboral.
Poder-se-á dizer
então que tem acontecido com as abordagens primárias da TD o que é comum às
formulações científicas. Não há que se lhes escrever lápides. Elas modificam-se
e, trocando de pena como só acontece com idéias-força, continuam vivas noutros
contextos e, às vezes, com outras cores. Para desgosto dos (pós)modernos
coleccionadores de borboletas, que andam pelos corredores universitários a brandir
os discursos pseudo-eruditos em moda e a etiquetar a falência de teorias, é
preciso realçar que só os dogmáticos cerram o círculo do conhecimento e
produzem sistemas que criam a ilusão de que eles são como a velha esfinge que
dizia “decifra-me ou devoro-te”. É preciso ter senso, já nem digo de
proporções, mas do ridículo mesmo. A criatividade na ciência mede-se também
pelo apetite que uma teoria desperta em seus partidários para a reformular, sob
o estímulo tanto das lacunas existentes na sua versão primária como em
decorrência de ela não responder adequadamente às questões das novas
conjunturas.
Sempre me vem à mente
o diálogo relatado pelo economista Nildo Ouriques com o saudoso André Gunder
Frank. Ao deparar-se com Frank, sentado à beira da relva da Universidade
Autônoma do México, Ouriques o indagou se a dependência continuava a existir. A
resposta de Frank foi lapidar: apontou para o verde relvado e perguntou-lhe se
ele existia. Ao que o interlocutor accedeu positivamente, e então Frank retomou
a resposta: "tal como a relva, a dependência existe; a grande questão
segue sendo o que vamos fazer com ela”.
Ao dizer “o que fazer
com ela”, Frank, como um dos founding fathers da Escola da Dependência, sinalizou, e
bem, uma dimensão central da versão primária da mesma e que se mantém: ao modo
da 11ª tese de Marx sobre Feubarch, não basta apenas interpretar a realidade,
há que transformá-la. Contudo, para tanto, as abordagens interpretativas não
podem ser enviesadas. Só as análises objetivas, consistentemente construídas,
são dotadas de capacidade para mostrar que o sistema social produz forças
discordantes e cria problemas novos que fazem aparecer formas de conflito e
alternativas políticas que desmascaram um dos principais refrões das ideologias
dominantes: a perpetuidade do presente, a idéia de que mudanças não são
possíveis. A história é, basicamente, movimento e é ela, sob o impulso da
racionalidade, que transcende o mundo ideológico da pseudo-concreticidade, cuja
marca maior é apresentar a aparência dos fenômenos como sendo a sua essência.
__________________
NOTAS
(1) Muitas das críticas feitas a FHC, em nome
de uma suposta incoerência em relação ao que escreveu, parece decorrer mais do
desconhecimento do que ele efetivamente disse em seus trabalhos.
(2) CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo. Dependência
e Desenvolvimento na América Latina. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
(3) MARINI, Rui Mauro. Dialética
da Dependência. Petrópolis: Vozes, 2000; DOS SANTOS, Theotonio. A
Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
(4) TRASPADINI, Roberta. A
Teoria da (Inter)dependência de Fernando Henrique Cardoso. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1999.
(5) CARDOSO, Fernando Henrique. “Teoria da Dependência
ou Análise Concreta das Situações de Dependência”. In:
____________. O Modelo Político Brasileiro.
5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, p. 123-139.
(6) MARINI, Rui Mauro, op. cit., p. 109.
Procurando atribuir substância à distinção entre as duas versões, Cardoso
afirmou o seguinte: “(...) há duas modalidades polares de conceber-se o
processo de desenvolvimento capitalista: existem os que crêem que o ‘capitalismo
dependente’ baseia-se na superexploração do trabalho, é incapaz de ampliar o
mercado interno, gera incessantemente desemprego e marginalidade e apresenta
tendências à estagnação e a uma espécie de constante reprodução do
subdesenvolvimento (como Frank, Marini e, até certo, dos Santos); [e] existem
os que pensam que, pelo menos em alguns países da periferia, a penetração do
capital industrial–financeiro acelera a produção da mais-valia relativa,
intensifica as forças produtivas e, se gera desemprego nas fases de contração
económica, absorve mão-de-obra nos ciclos expansivos, produzindo, neste
aspecto, um efeito similar ao do capitalismo nas economias avançadas, onde
coexistem desemprego e absorção, riqueza e miséria. Pessoalmente, sustento que
a segunda explicação é mais consistente”. Cf. CARDOSO, Fernando Henrique. “O
Consumo da Teoria da Dependência nos Estados Unidos. In:____________. As
Idéias e seu Lugar: Ensaios sobre as Teorias do Desenvolvimento. 2ª
ed. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 143.
(7) A propósito, ver AMARAL, Marisa Silva. A
Investida Neoliberal na América Latina e as Novas Determinações da Dependência.
Uberlândia, 2006. Dissertação (Mestrado em Economia) – Instituto de Economia,
Universidade Federal de Uberlândia.
(8) Ibidem.
(9) OSÓRIO, Jaime. Crítica
de la Economía Vulgar – Reproducción del Capital y Dependencia.
México: Grupo
Editorial Miguel Angel Porrúa, julho, 2004.
(10) DOS SANTOS, Theotonio. O
Desenvolvimento Latino-Americano: Passado, Presente e Futuro. Texto
Policopiado – Universidade Federal Fluminense (UFF)/Faculdade de Economia/Grupo
de Estudo sobre Economia Mundial, Integração Regional & Mercado de Trabalho
(GREMIMT) – s/d.
quarta-feira, 22 de março de 2017
Sem vento e cheiro de uma nova estação
Quando escutamos músicas/relembramos shows de Belchior, como no registro feito aí abaixo, tem-se uma noção razoável do ponto ao qual chegamos, no Brasil, em relação à produção musical hegemônica. O desnível em termos qualitativos salta aos olhos. Mas não só isso. A questão é mais ampla. 'Como nossos pais', décadas depois, evidencia que o país fez uma grande marcha, para não sair do lugar. 'Apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos.' É de se pensar se esta não é uma das razões que levou o próprio Belchior a sumir sem deixar rastro de notícia.
Quando a plateia é tratada como cretina
Por
Josias de Souza
Na engrenagem aparelhada do
Estado brasileiro, sempre que um servidor público é pilhado em atos de
corrupção, deveria haver vergonha em pelo menos um gabinete de congressista ou
de autoridade, que teria de explicar por que apadrinhou a nomeação de um desqualificado.
Cada assalto feito no segundo ou no terceiro escalão tem sempre um cúmplice
disfarçado no primeiro escalão. Entretanto, acima de um certo nível de poder,
nenhuma cumplicidade justifica um rosto vermelhinho.
No escândalo da carne, o ministro Blairo Maggi obteve a
concordância de Michel Temer para afastar os 33 servidores da pasta da
Agricultura suspeitos de manter um relacionamento promíscuo com frigoríficos
que deveriam fiscalizar. Maggi fez mais: abriu contra os servidores processos
administrativos que podem resultar em demissão. O ministro fez pior: depois de
enviar os suspeitos para o patíbulo do Diário Oficial, exibiu suas cabeças na
vitrine da internet (veja a lista aqui).
O 7º nome da lista de execrados da Agricultura é o
ex-superintendente da pasta no Paraná, Daniel Gonçalves Filho, um personagem
que o ministro Osmar Serraglio (Justiça) chama de “grande
chefe”. O 14º nome da relação é Gil Bueno de Magalhães, que
substituiu Daniel Gonçalves na superintendência paranaense em 2016, sob o
apadrinhamento de deputados do PP — entre eles o agora ministro Ricardo Barros
(Saúde). Enquanto os afilhados são tratados na base do mata-e-esfola, os padrinhos fingem-se de mortos.
Em comunicado à
imprensa, a pasta da Agricultura anotou que os 33 servidores foram “afastados
em razão da investigação da Polícia Federal sobre supostas irregularidades em
frigoríficos”. Se os crimes são supostos, a culpa é presumida. Ainda assim,
optou-se pelo afastamento preventivo, acompanhado da abertura de processos
administrativos. Nada poderia ser mais respeitoso com o contribuinte do que
afastar a suspeição do exercício de funções públicas.
O acerto em relação aos suspeitos miúdos expõe o
desacerto no trato com os suspeitos graúdos. No modelo criado por Michel Temer
para proteger amigos em apuros, instituiu-se o afastamento em conta-gotas.
Ministros investigados não devem nada a ninguém, muito menos explicações.
Quando forem denunciados amargarão um afastamento temporário, conservando o
salário e o foro privilegiado. Só depois de convertidos em réus pelo Supremo
Tribunal Federal é que os ministros seriam enviados ao olho da rua.
Nos próximos dias, o ministro Edson Fachin, relator da
Lava Jato no Supremo, puxará o manto diáfano que esconde os podres da
colaboração da Odebrecht. Em condições normais, haveria escândalo em gabinetes
do Planalto e da Esplanada. Mas já está entendido que o cinismo é o mais
próximo que o governo conseguirá chegar da honestidade.
Se a pasta da Justiça pode ser gerida por alguém cuja voz
foi captada num grampo travando diálogo vadio com um sujeito que a PF chama de “líder
de uma organização criminosa”, tudo é permitido. Inclusive tratar a plateia
como cretina.
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Fonte: http://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/
terça-feira, 21 de março de 2017
Ignorância e sabedoria em torno da pergunta 'Por que isso acontece?'
Richard Feynman, Prêmio Nobel de Física, ou a natureza como um enorme jogo de xadrez entre forças desconhecidas, e que temos o privilégio de observar. O 'eu', um universo de átomos, um átomo no universo. Frente a isso, a ciência é aquilo que aprendemos a respeito de como não nos deixarmos enganar a nós mesmos.
Quando não se tem competência e argumentos, só restam os ataques pessoais
Por Wagner Moura
(Ator; protagonista de 'Trompa de Elite'; indicado ao Globo de Ouro pela Série 'Narcos' - Netflix)
Artistas são seres
políticos. Pergunte aos gregos, a Shakespeare, a Brecht, a Ibsen, a Shaw e
companhia -todos lhe dirão para não estranhar a participação de artistas na
política.
A natureza da arte é política pura. Numa democracia
saudável, artistas são parte fundamental de qualquer debate. No Brasil de
Michel Temer, são considerados vagabundos, vendidos, hipócritas, desprezíveis
ladrões da Lei Rouanet.
Diante de tamanha estupidez, fico pensando: por que esses
caras têm tanto medo de artistas, a ponto de ainda precisarem desqualificá-los
dessa maneira?
Faz um tempo, dei muita risada ao ver uma dessas pessoas,
que se referia com agressividade a um texto meu, dizer que todo bom ator é
sempre burro, pois sendo muito consciente de si próprio ele não conseguiria
"entrar no personagem".
Talvez essa extraordinária tese se aplicasse bem a Ronald
Reagan, rematado canastrão e deus maior da direita "let's make it great
again". De minha parte, digo que algumas das pessoas mais brilhantes que
conheci são artistas.
Esse medo manifestado pelo status quo já fez com que, ao
longo da história, artistas fossem censurados, torturados e assassinados. Os
gulags de Stálin estavam cheios de artistas; o macarthismo em Hollywood também
destruiu a vida de muitos outros. A galera incomoda.
Uma apresentadora de TV fez recentemente sua própria
lista de atores a serem proscritos. Usou uma frase atribuída a Kevin Spacey,
possivelmente dita no contexto de seu papel de presidente dos EUA na série
"House of Cards".
A frase era a seguinte: "a opinião de um artista não
vale merda nenhuma". Certo. Vale a opinião de quem mesmo? Invariavelmente
essas pessoas utilizam o chamado argumento "ad hominem" para
desqualificar os que discordam de suas opiniões.
É a clássica falácia sofista: eu não consigo destruir o
que você pensa, portanto tento destruir você pessoalmente. Um estratagema
ignóbil, mas muito eficaz, de fácil impacto retórico. Mais triste ainda tem
sido ver a criminalização da cultura e de seus mecanismos de fomento, cruciais
para o desenvolvimento do país.
Aliás, todos os projetos sérios de Brasil partiram de uma
perspectiva histórico-cultural, como os de Darcy Ribeiro, Caio Prado Jr.,
Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.
Ver o ministro da Cultura dando um ataque diante do
discurso de Raduan Nassar só faz pensar que há algo mesmo de podre no castelo
do conde Drácula. Mesmo acostumado a esse tipo de hostilidade, causou-me
espanto saber que o ataque, na semana passada, partiu de uma peça publicitária
oficial da Republica Federativa do Brasil.
Sempre estive em sintonia com a causa do MTST (Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto); fiz com eles um vídeo que tentava explicitar o
absurdo dessa proposta de reforma da Previdência.
O governo ficou incomodado e lançou outro vídeo, feito
com dinheiro público, no qual me chama de mentiroso e diz que eu fui
"contratado" - ou seja, que recebi dinheiro dos sem-teto brasileiros
para dar minha opinião.
O vídeo é tão sem noção que acabou suspenso, assim como toda a campanha
publicitária do governo em defesa da reforma da Previdência, pela Justiça do
Rio Grande do Sul.
Um governo atacar com mentiras um artista, em propaganda
oficial, é, até onde sei, inédito na história, considerando inclusive o período
da ditadura militar.
Mas o melhor é o seguinte: o vídeo do presidente não
conseguiu desmontar nenhum dos pontos levantados pelo MTST.
O ex-senador José Aníbal (PSDB) escreveu artigo em que me chama de fanfarrão e diz que a reforma só quer "combater privilégios". Devo entender, então, que o senhor e demais políticos serão também atingidos pela reforma e abrirão mão de seus muitos privilégios em prol desse combate? E o fanfarrão ainda sou eu?
Se o governo enfrentasse a sonegação das empresas, as isenções tributárias descabidas e não fosse vassalo dos credores da dívida pública, poderíamos discutir melhor o que alardeiam como rombo da Previdência.
Mas eles não querem discutir nada, nem mesmo as mudanças demográficas, um debate válido. O governo quer é votar logo a reforma, acalmar os credores, passar a conta para o trabalhador e partir para a reforma trabalhista antes que o povo se dê conta.
Tenho uma má notícia: no último dia 15, havia mais de um milhão de pessoas nas ruas do país. Parece que não é só dos artistas que eles deverão ter medo.
O ex-senador José Aníbal (PSDB) escreveu artigo em que me chama de fanfarrão e diz que a reforma só quer "combater privilégios". Devo entender, então, que o senhor e demais políticos serão também atingidos pela reforma e abrirão mão de seus muitos privilégios em prol desse combate? E o fanfarrão ainda sou eu?
Se o governo enfrentasse a sonegação das empresas, as isenções tributárias descabidas e não fosse vassalo dos credores da dívida pública, poderíamos discutir melhor o que alardeiam como rombo da Previdência.
Mas eles não querem discutir nada, nem mesmo as mudanças demográficas, um debate válido. O governo quer é votar logo a reforma, acalmar os credores, passar a conta para o trabalhador e partir para a reforma trabalhista antes que o povo se dê conta.
Tenho uma má notícia: no último dia 15, havia mais de um milhão de pessoas nas ruas do país. Parece que não é só dos artistas que eles deverão ter medo.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/03/1868241-medo-de-artista.shtml. Título original: 'Quem tem medo de artista?'
segunda-feira, 20 de março de 2017
A carne é fraca ou o reino da desinteligência
A última operação da Polícia Federal, denominada Carne Fraca, despoletou uma divisão entre os analistas sociais independentes. Por um lado, os que enxergam na ação a influência de setores externos para desmantelar ainda mais a economia brasileira; por outro lado, os que 'dão de ombros' e se perguntam se agora têm que defender grandes empresas que ofertam carne imprópria ao consumo. A questão não pode ser posta nos termos dessa dicotomia. O texto aí abaixo, do Luis Nassif, penso, coloca o assunto em outro patamar, evidenciando uma variável que não tem sido referida no debate: a desinteligência, que, para além desse caso específico, tem permeado os "shows jurídico-policiais" no país nos últimos tempos. Uma questão de cérebro, como já tem dito o sociólogo Jessé de Souza. Nassif é mais hard, e o que aqui estou designando de desinteligência, ele chama de imbecilidade mesmo. Quando ficamos a reboque de fenômenos dessa "esfera", a situação torna-se muito preocupante. A propósito, a postagem é encerrada com um curto vídeo do linguista Noam Chamoky (em linha de continuidade com a postagem anterior) a respeito dos perigos e estragos da desinteligência na esfera pública/institucional nos Estados Unidos. Aplica-se inteiramente ao 'Brasil em transe' destes tempos que estamos a viver.
Por Luis
Nassif
A
Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, traz uma comprovação básica: o nível
de emburrecimento nacional é invencível. O senso comum definitivamente se impôs
nas discussões públicas. E não se trata apenas da atoarda que vem do Twitter e
das redes sociais. O assustador é que órgãos centrais da República – como o
Ministério Público, a Polícia Federal, o Judiciário – tornaram-se reféns do
primarismo analítico.
Como
é possível que concursos disputadíssimos tenham resultado em corporações tão
obtusamente desinformadas, a ponto de não ter a menor sensibilidade para o
chamado interesse nacional. Não estou julgando individualmente delegados ou
procuradores. Conheço alguns de alto nível. Me refiro ao comportamento dessas
forças enquanto corporação. Tome-se
o caso da Operação Carne Fraca.
A
denúncia chegou há dois anos na ABIN (Agência Brasileira de Inteligência). O
delator informou que a Secretaria de Vigilância Sanitária no Paraná tinha sido
loteada para o PMDB. Levantaram-se provas de ilícitos em alguns frigoríficos.
Por
outro lado, há uma guerra fitossanitária em nível global, em torno das
exportações de alimentos. Se os delegados da Carne Fraca não fossem tão obtusos,
avaliariam as consequências desse bate-bumbo e tratariam de atuar
reservadamente, desmantelando a quadrilha, prendendo os culpados.
Mas,
não. O bate-bumbo criou uma enorme vulnerabilidade para toda a carne exportada
pelo país. Os anos de esforços gerais para livrar o país da aftosa, conquistar
novos mercados, abrir espaço para as exportações ficaram comprometidos pelo
exibicionismo irresponsável desse pessoal.
Ou
seja, havia duas formas de se atingir os mesmos resultados:
1.
Uma investigação rápida, discreta e sigilosa.
2.
O bate-bumbo de criar a maior operação da história, afim de satisfazer os jogos
de poder interno da PF.
As
duas levariam ao mesmo resultado e a primeira impediria o país de ter prejuízos
gigantescos, que pudessem afetar a vida de milhares de fornecedores, o emprego
de milhares de trabalhadores, a receita fiscal dos impostos que deixarão de ser
pagos pela redução das vendas – e que garantem o salário do Brasil improdutivo,
de procuradores e delegados.
Qual
das duas estratégias seria mais benéfica para o país? A primeira,
evidentemente.
No
entanto, o pensamento monofásico que acomete o país, não apenas entre
palpiteiros de rede social, mas entre delegados de polícia, procuradores da
República, jornalistas imbecilizados é resumido na frase-padrão de Twitter: se
você está criticando a Carne Fraca, então você é a favor de vender carne podre.
Podre
se tornou a inteligência nacional quando perdeu o controle de duas corporações
de Estado – MPF e PF – permitindo que fossem subjugadas pelo senso comum mais
comezinho. E criou uma geração pusilânime de donos de veículos de mídia, incapazes
de trazer um mínimo de racionalidade a essa barafunda, permitindo o desmonte do
país pela incapacidade de afrontar o senso comum de seus leitores.
Veja
bem, não se está falando de capacidade analítica de entender os jogos
internacionais de poder, a geopolítica, o interesse nacional, as sutilezas dos
sistemas de apoio às empresas nacionais. A questão em jogo é muito mais
simples: é saber discernir entre uma operação discreta e outra que afeta a
imagem do Brasil no comércio mundial.
No
entanto, essa imbecilidade, de que a destruição das empresas brasileiras
contaminadas pela corrupção, permitirá que viceje uma economia mais saudável, é
recorrente nesse reino dos imbecis. E se descobre que a estultice da massa é
compartilhada até por altos funcionários públicos, regiamente remunerados, que
se vangloriam de cursos e mais cursos aqui e no exterior. O sujeito diz
asneiras desse naipe com ar de sábio, reflexivo. E é saudado por um zurrar
unânime da mídia.
Discuti
muito com uma antiga amiga, quando mostrava os impactos dessas ações nos
chamados interesses nacionais e via mão externa, e ela rebatia com conhecimento
de causa: não são conspiradores, são primários.
Imbecil
é o país que se desarma completamente, Judiciário, mídia, organizações que se
jactam de ter Escolas de Magistratura, de Ministério Público, de Polícia
Federal, permitindo mergulhar na mais completa ignorância institucional.
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Fonte: http://jornalggn.com.br/noticia/a-carne-fraca-e-o-reino-dos-imbecis. Título original: 'A Carne é Fraca e o Reino dos Imbecis'.
domingo, 19 de março de 2017
Idiotia
Não tem jeito. Parece que
só assistindo o filme Is The Man Who Is Tall Happy?, documentário-conversa com Chomosky versando sobre o
funcionamento da mente humana e da linguagem, para se situar no Brasil de agora
e escapar da idiotia. Nassif escreveu que o “Brasil emburreceu”. Pois bem, observando-se
determinados comportamentos no contexto universitário, é de se reconhecer razão ao que assinalou recentemente o Aldo Fornazieri: “É bem
verdade que parcelas dos intelectuais se
tornaram idiotas” (evidentemente que a expressão intelectuais aí requer aspas). Quando se considera, por exemplo, o modo como os
ditos pós-doutorados têm sido referidos, é difícil, muito difícil, não enxergar
manifestações de idiotia. Como já assinalou Idelber Avelar, o Brasil é
provavelmente o único país na face da terra em que pós-doutorado, em
determinadas cabeças, é entendido como título. Ora, em princípio, o
pós-doutoramento é uma licença sabática de um pesquisador sênior. Mais recentemente, passou a ser uma modalidade
de ocupação profissional, mediante bolsa, para jovens que finalizam o doutorado e ainda
não têm emprego. O que não é mesmo é um título, visto que a titulação acadêmica
é concluída com o PhD. Dizia Saramago que a palavra escrita e os graus formáveis
impõem-se às pessoas colonizando as suas mentes. A demência de não pensar. O
subdesenvolvimento intelectual não brinca em serviço. Vai aí o trailer de The Man Who Is Tall Happy?
A vida que esconde e que revela: entre ilusão e o engano da superficialidade
'Enigmas' do mundo social na sociologia clássica: obra do sociólogo britânico Anthony Giddens |
Há um significativo consenso em torno da
compreensão que toma Marx, Durkheim e Weber como ‘três pais centrais’ da
sociologia. Este é a perspectiva, por exemplo, do britânico Anthony Giddens.
Por sua vez, Ralf Dahrendorf utilizou a expressão sociedade do trabalho para
descrever uma base comum entre esses três pensadores, no que pode ser tomado
também como um indicativo de dispositivo que evidencia a necessidade de
estabilidade/permanência tanto nas relações sociais como nas histórias
individuais, na medida em que o trabalho é concebido como fator de integração e
como elemento estruturador das vidas individuais, delineando identidades e
biografias. Ou seja, passando da reflexão lógica para a ontológica,
trata-se de entender que a vida requer constância, o que, por vezes, a ‘ilusão
do movimento’ não permite ver; assim como o enviesamento em torno da ideia de
liberdade, ao fim e ao cabo, pode levar à destruição do próprio princípio de
liberdade. E, diferente do que algumas interpretações infundadas sustentam,
isso não encontra abrigo no existencialismo sartreano. Nunca é
demais lembrar, voltando às lições da Antiguidade Clássica, que seres
vocacionados para a liberdade também o são para a (auto)destruição, em
decorrência das suas próprias ações. Da ausência de parâmetros de constância,
podem decorrer as dúvidas sobre ‘o que fazer com a liberdade’, advindo
comportamentos que vão do desatino e da instabilidade de posições/ações à queda
no vazio existencial.
Pois bem, se há em Marx, Durkheim e Weber um fio
que, do ponto de vista da integralização da sociabilidade, permite um
desdobramento analítico comum, o mesmo não poderá ser dito no que se refere à
economia. Aqui, contudo, temos uma cisão que divide até mesmo intérpretes da
teoria social de Marx, designadamente de obras como O Capital. Como
resultado dessa cisão, temos, por exemplo, o que se pode chamar de o ‘engano da
superficialidade’; dentre outras coisas, separando nível teórico e processo
histórico, assim como confundindo a base científica do legado marxiano
com “puro empirismo”. Em oposição a esse tipo de interpretação e em
divergência direta e aberta em debate com alguns interlocutores, escrevei um
pequeno texto que pode ser lido aqui:
sábado, 18 de março de 2017
sexta-feira, 17 de março de 2017
O futuro como retrovisor
Laura
Carvalho
(Faculdade
de Economia – USP)
A aprovação da PEC do
"teto de gastos" pode ter levado o governo a um erro de avaliação.
A grande mobilização desta quarta (15) em todo o país
revela que a população não está disposta a engolir a seco a reforma da
Previdência proposta, desmentindo a afirmação de Temer de que "quem
reclama é quem ganha mais".
Segundo estudo de 2015 do Ministério do Trabalho e da
Previdência Social, os benefícios previdenciários sozinhos são responsáveis por
reduzir o percentual de pobres no Brasil de 37,8% para 24,2% da população.
Defender que a diminuição drástica na cobertura e no valor das aposentadorias
não ampliará nossas desigualdades é passar longe da realidade das famílias
brasileiras.
É verdade que ajustes no sistema previdenciário sempre
serão necessários quando há melhora na expectativa de vida da população. E
sempre serão impopulares. Talvez por isso, muitos países tenham criado
mecanismos automáticos que vinculam as regras de aposentadoria à expectativa de
vida projetada. Mas há formas e formas de fazê-lo.
Além de não levar em conta nossas desigualdades
profundas, a reforma de Temer concentra todas as mudanças no lado das despesas,
sem nenhuma preocupação com a base de arrecadação do sistema.
A PEC do "teto de gastos" plantou a armadilha:
com o total de despesas federais congelado e a expectativa de vida crescente,
as despesas previdenciárias ocuparão parcela cada vez maior no Orçamento.
Como há piso para gastos com saúde e educação, as demais
rubricas (e.g. Bolsa Família, Cultura, Infraestrutura) tenderão a zero se não
houver uma redução dramática na cobertura previdenciária e no valor dos
benefícios. Agora virem-se, brasileiras, para escolher o cenário menos pior.
O problema é que, mesmo se reformado sucessivas vezes
para incorporar mudanças demográficas, um regime público de Previdência só será
sustentável se a razão entre ativos e inativos se mantiver elevada, o que
depende também do baixo desemprego e do alto grau de formalização do mercado de
trabalho.
Dado o quadro permanente de estagnação em que jogamos o
país, não surpreende que tais pressupostos não estejam no centro do modelo de
projeção atuarial do governo —sobre o qual quase nada sabemos.
Quanto aos efeitos da reforma proposta, seu impacto é
mesmo maior sobre quem começou a trabalhar mais cedo e nas piores condições.
Afinal, nos centros urbanos, a aposentadoria por idade já é de 63,1 anos em média,
um patamar próximo ao dos países desenvolvidos.
Entender a idade mínima exigida como uma simples
convergência para o padrão de países da OCDE é ignorar que na França, por
exemplo, onde a idade de aposentadoria já é de 65 anos, a expectativa de vida da
população supera os 82. No Brasil, a expectativa média é de 75 anos, e, nas
áreas rurais, muito menos.
Além disso, a expectativa de vida saudável no país é de
apenas 64 anos. Exigir 49 anos de contribuição para recebimento da
aposentadoria integral nada mais é do que uma forma de reduzir dramaticamente
valor real dos benefícios para a grande parcela da população que terá de
aposentar-se mais cedo.
Como se não bastasse, a reforma prevê também o aumento da
idade de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) de 65 para 70 anos e
desvincula o seu valor do salário mínimo, golpeando idosos e portadores de
deficiência cuja renda familiar per capita é inferior a um quarto de salário
mínimo.
Em vez de preparar-nos para o futuro, essa reforma parece
mesmo mirar o velho Brasil, campeão das desigualdades.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho. Título original: 'Reforma da Previdência mira o passado, não o futuro'.