terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O engano da superficialidade e o martírio de Evandro Cavalcanti

Estou sendo cobrado por, em alguns textos, ter feitos análises que, entende-se,  atingem criticamente alguns segmentos ditos “alternativos” e supostos setores “à esquerda” que, dentro e fora da universidade,  qualifico como populistas. Num dos textos que despertou a cobrança, sou autor junto com um amigo do Rio Grande do Sul, e está publicado num periódico espanhol, onde colocamos em realce equívocos analíticos de pretensos setores acadêmicos “avançados”, ao se apegarem em modismos na análise da relação entre Estado e políticas educativas (está aqui: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=219221).  A cobrança chega-me também com a atribuição de uma etiqueta de ‘contemporizador com uma postura socialdemocrata’. Vejo isso como "engraçado". Sobre o núcleo duro do texto, nenhuma palavra. Busca-se o contraponto através de uma variável externa, que não a questão enfocada no texto. Pois bem, se é por aí, aqui fica o meu registro. Combati o bom combate muito cedo. Guerreei num período em que, muitos, para dizer o que eram, não poucas vezes, tinham de assumir uma identidade que não era a sua. Há nomes e nomes. As armas do combate foram além dos discursos, e por isso se paga um preço. Contudo, não me atraem espumas de palavras, ocas, sopradas a quilo.  Elas enganam pela superficialidade.  Como disse certa feita o Cesar Benjamin,  não sinto simpatia por gente que anuncia muita coragem fora do tempo e lugar. 
De todo modo, a cobrança teve o “mérito” de despertar recordações históricas, e me fazer lembrar que estamos a viver, neste 2017, os trinta anos do assassinato do jovem advogado pernambucano Evandro Cavalcanti, na cidade de Surubim (agreste do estado), onde atuava junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Foi num mês de fevereiro, no dia 21. Morto por pistoleiros da Paraíba, a mando de proprietários rurais. Um jovenzito saindo da adolescência, e na contracorrente do que familiarmente se pensava politicamente, acompanhei o caso com atenção, sob os ecos insubmissos da movimentação estudantil secundarista.  Pessoa de sorriso fácil e acolhedor, as últimas palavras de Evandro, ao ser abordado por seus algozes, são lapidares: "Diga, companheiros". Alvejado, tombaria na frente da sua brava companheira Leta e da filha Andréa, ela também ferida a bala. Bem sei que, atualmente, as relações de lealdade são cada vez mais "tênues" e o sentido da palavra companheiro/a (aquele/aquela que faz companhia em bons e maus momentos) praticamente não é tido em conta na sua significação. É apenas repetida como jargão. No caso de Evandro, a palavra fazia todo o sentido. Lembrar a sua memória é uma forma de mantê-lo vivo, ao modo hegeliano. Mas, ao contrário do que muitos pensam, lembrar é também uma forma de nos libertarmos da tragédia. Uma vida sadia pressupõe intercalações entre lembrar e esquecer. Não lembrar significa viver sob o tormento do bloqueio da lembrança. O que poderá resultar, em último caso, em loucura. Por estas e outras razoes,  lembramos Evandro Cavalcanti. Sem o risco do engano da superficialidade. Segue aí abaixo um artigo do jornalista conterrâneo Vandeck Santiago sobre as três décadas do seu desaparecimento.


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Evandro Cavalcanti 


Por Vandeck Santiago

O radicalismo político e ideológico vivido pelo Brasil na segunda metade dos anos 1980 era muitas vezes resolvido não com agressões verbais, mas na bala – principalmente quando dizia respeito à luta pela terra. Eu era um repórter iniciante aqui no Diario quando ao chegar na redação, há 30 anos, o chefe de reportagem Manoel Barbosa me disse: “Vá agora mesmo para Surubim. Mataram um advogado defensor dos trabalhadores rurais. Vamos acompanhar de perto este caso”. Barbosa era um chefe extraordinário; formou jornalistas que depois saíram do Diario e foram trabalhar em diversas publicações nacionais. Um profissional sensível às questões sociais e incentivador do jornalismo que “vai lá, vê e conta a história”. 
O advogado assassinado chamava-se Evandro Cavalcanti, de 38 anos. Era vereador pelo PMDB em Surubim (120 km do Recife). Foi morto com oito tiros de revólver, no dia 21 de fevereiro de 1987, no meio da Avenida Oscar Loureiro, bairro da Cabeceira, zona urbana do município. Crime praticado por três homens, que se aproximaram em uma Brasília branca. Deixou viúva, Jucilete Cavalcanti, e quatro filhos menores. No momento do crime estava acompanhado da mulher e de uma das filhas, então com 9 anos; dirigia-se para uma reunião no sindicato dos trabalhadores rurais. Ao ser chamado por um dos pistoleiros, Evandro respondeu “Diga, companheiros”, e foi imediatamente atingido pelos disparos, segundo artigo do escritor e publicitário José Nivaldo Júnior, publicado no Blog do Magno (“Diga, companheiros”: Evandro Cavalcanti, presente). Um crime brutal, que chocou a cidade e repercutiu em todo o país. 
Não foi o primeiro nem o último, naquele período. Dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra) contabilizam 640 assassinatos entre 1985 e 1989, em conflitos pela terra. Desse total, 561 foram de trabalhadores rurais. Os demais eram religiosos, lideranças e advogados, como Evandro. Foi neste período, por exemplo, que ocorreu a morte do seringueiro Chico Mendes, no Acre, em 22 de dezembro de 1988, e do advogado Paulo Fontelles, no Pará, em 11 de junho de 1987. 
A violência nunca deixou de ser a característica principal da luta pela terra. Do golpe de 1964 até 1971, o Nordeste foi a região mais atingida, fruto da tentativa de conter eventuais influências das Ligas Camponesas (1955-1964). Em seguida, durante a década de 1970, foi a Amazônia, no rastro dos grandes projetos de colonização na região e da ascensão do movimento dos posseiros. Na década de 1980, a redemocratização criou condições para a ampliação da pressão dos movimentos na luta pela terra, mas antes disso os conflitos já se multiplicavam. No próprio ano de 1980, o lema da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) para a Campanha da Fraternidade foi “Terra de Deus, terra de irmãos”. 
A violência ocorrida em Surubim, naquele 21 de fevereiro de 1987, que fez tombar a tiros no meio da rua um cidadão acompanhado da mulher e da filha, não era um fato meramente local, mas nacional – o gemido de um país onde a luta pela justiça social deixa em seu rastro uma extensa lista de vítimas. 
O Diario acompanhou o caso de Evandro Cavalcanti até a elucidação do crime e a condenação dos responsáveis - dos autores (policiais militaras da Paraíba) e dos mandantes (proprietários de terra da região). O governador era Miguel Arraes, e o caso deu-se no início do seu mandato. A questão da terra fora um dos temas principais da campanha estadual, no ano anterior. Posteriormente acompanhamos a luta da viúva, Jucilete, conhecida como Leta, uma mulher que demonstrou sua fibra na tragédia. Criou os filhos e deu sequência à luta política do marido, chegando a eleger-se vereadora no município.
Em memória de Evandro Cavalcanti estava prevista para ontem a celebração de uma missa e um ato público na fazenda Tabu, que foi a primeira desapropriação de terras para a reforma agrária obtida em questão defendida por ele, no município. Os nomes dos seus algozes nós não guardamos, mas permanecem em nossa lembrança o nome de Evandro Cavalcanti e o exemplo que ele deixou. É assim que caminha a História.


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O espetáculo, o vazio e Pascal: o superficial preenchimento de quem não pensa

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Por Michel Aires de Souza

(Universidade de São Paulo – USP)


A consciência é o melhor livro de moral, e o que menos se consulta
(Blaise Pascal)

Que sentido, que valor imprimimos a nossa ação? Somos seres incapazes de contemplar ou tomar conhecimento do que cotidianamente fazemos de nossas vidas. Por que fazemos o que fazemos?  Por que levamos a vida que levamos?  Ora queremos um novo emprego; ora queremos um novo amor; ora queremos um novo carro; ora queremos uma nova casa. Os seres humanos sempre estão em busca de dinheiro, poder, notoriedade ou divertimentos. Logo que realizam um desejo, surge outro desejo. Nunca estão satisfeitos. Passam a vida buscando bens materiais ou bens simbólicos. São eternamente inquietos. São governados por um querer cego e irracional.  Numa primeira análise, somos levados a crer que o único objetivo da vida humana é destruir a própria solidão. Eles não conseguem ficar sozinhos, precisam sempre de agitação. Estão sempre em busca de algo.  Envolvem-se em tarefas arriscadas e difíceis; envolvem-se em projetos, conflitos ou conquista que, muitas vezes, lhes trazem infelicidade. Não suportam o silêncio ou  estar consigo mesmos. Precisam do barulho, do ruído e da agitação. São incapazes de desligar a televisão ou o rádio quando estão sozinhos em casa. Fogem da solidão como ‘o diabo foge da cruz’. Pascal, no século XVII, já havia pensado sobre esse problema. Para ele, as pessoas são agitadas, pois não conseguem ficar consigo mesmas, são incapazes de refletirem sobre sua condição humana.
Como sugeriu Platão, o nosso espírito é uma caverna, o que falta ao homem é eternidade.  Os indivíduos são seres vazios. Vivem na busca de preencher seu mundo interior com algum entretenimento ou com algum objeto.  Todo o seu sentido interno se expressa pelo sensível e pelo concreto. Buscam preencher sua interioridade com todo tipo de banalidades.
O que falta ao homem é consciência de sua facticidade.  Estamos lançados no mundo como um barco sem rumo. A imanência nas coisas nos tira a consciência de nossa condição finita e nos condena a banalidade da vida cotidiana. É somente a consciência de nossa condição finita, é somente a consciência do Nada, que nos permite transcender e reavaliarmos nossa própria vida e comportamento, dando sentido e significados ela.
Vivemos numa época de incerteza, de insegurança e de superficialidade. Temos dificuldade em entender a nossa própria experiência social e não conseguimos nos dar conta da relação que há entre nossas vidas e as forças que nos subjugam. Não percebemos que nossos dramas, conflitos, medos, frustrações são, em grande parte, causados pelos valores de nossa sociedade ou pelas estruturas sociais que nos governam. Por causa disso, não temos uma experiência bem definida das nossas próprias necessidades, não sabemos o que sentimos ou o que verdadeiramente queremos.  Todos os dias os indivíduos acordam cedo, vão para o trabalho, almoçam com os mesmos colegas, compartilham as mesmas experiências. Quando voltam do trabalho para casa, conversam sobre os mesmos assuntos, fazem as mesmas atividades e assistem os mesmos programas de televisão. Aos finais de semana,  buscam as mesmas agitações e divertimentos.  Eles são incapazes de perceber que possuem uma vida fragmentada.  Estão sempre em movimento, em busca de um desejo insuflado pela sociedade. Apegam-se a verdades, valores ou regras externas que não escolheram conscientemente. Como se o mundo tivesse um sentido ou um significado dado a priori. São seres despersonalizados pela cultura. Vivem numa Matrix, incapazes de separar a consciência da realidade. São incapazes de contemplar o seu mundo interior. São incapazes de reconhecer o Nada e darem sentido a suas próprias vidas. Como diz Montaigne, “meditar sobre a finitude é meditar sobre a liberdade”.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O desencontro de si: segurança na alteridade, (auto)engano e ilusão


'Drawing Hands' (1948), M. C. Escher
Drawing Hands, de M. C. Escher 


Por Miguel Esteves Cardoso
(Doutor em Filosofia Política; escritor) 

É impossível para alguém ser enganado que não seja por ele próprio
(Ralph Waldo Emerson) 

A confiança é um bem tão etéreo que não pode ser recuperado. Só pode ser conquistada e perdida. A confiança leva tempo a conquistar porque o coração que confia é um coração aberto, sem defesas, que pode ser destruído num instante.
O nosso tempo não é de confianças, porque é um tempo egocêntrico e sensacionalista em que cada um só fala de si e das coisas que sente. Ouço dizer que A ama B, que A está apaixonada por B, que A acha que o amor dela é correspondido. Mas A confia em B? A diz que não. E ri-se, ainda por cima.
Confiar em alguém e saber que essa pessoa confia em nós, poder contar com ela e saber que ela, com razão, pode contar conosco, está para a amizade e para o amor como a segurança está para a paz. Não há quem não saiba conquistar a confiança de alguém. É muito fácil. Basta ser verdadeiro, ser leal e ser inabalável. Basta ter a coragem de admitir o que toda a gente sabe: que ninguém é perfeito e que a única perfeição que está ao nosso alcance é a consistência.
Não há nenhuma grande entrega. Uma pessoa apenas tem de se dar a conhecer. Tem de ser com honestidade. Não somos obrigados a confessar os nossos defeitos, mas quando somos apanhados a mostrar um deles temos de sorrir e pedir desculpa por ser assim. A pessoa que engana é a pessoa que deixa de querer a confiança de quem enganou. E é essa indiferença que mais magoa a pessoa enganada.

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Fonte: https://www.publico.pt/2016/12/05/sociedade. Título original: 'Confiar'. 


Consciência da autenticidade

Por Vergílo Ferreira 

A consciência que te acompanha no que vais sendo é o puro registro disso que vais sendo para o poderes ler, se quiseres, depois de já ter sido. Mas no instante de seres o que és, o que és é apenas, por uma decisão anterior ao decidires. O que és é-lo onde a tua realidade profunda em profundeza obscura se realizou. O que és é-lo no absoluto de ti. A consciência testifica-nos apenas como o ser privilegiado que sabe o que é por aquilo que vai sendo e pode assim reconverter-se à posse iluminada disso que vai sendo. A consciência constata mas não interfere senão para se não ser mais o que se foi, ou mais rigorosamente, para se não querer ser o que se é - o que é ser-se ainda, embora de outra maneira. 
Porque se neste instante me sobreponho, ao que sou, outra maneira de ser - a consciência que me altera o primeiro modo de ser é a paralela iluminação do modo de ser segundo. Decidi ainda antes de decidir, quando decidi não ser o que primeiramente decidira. Assim no torvelinho dos atos que me presentificam e da consciência desses atos, sempre o insondável de nós se abre para lá do que podemos sondar. Sempre a realidade de nós é a realidade original que nas origens se gera. Sempre a autenticidade de nós está a uma distância infinita das razões que a justificam. 

(In 'Invocação ao Meu Corpo') 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Era pós-verdade como espelho da mentira: pilares do fundo do poço

Por Laura Carvalho
(Faculdade de Economia da USP)

O governo anunciou na semana passada um pacote de medidas que atrairia um total de R$ 371,2 bilhões de investimentos privados nos próximos dez anos.
Segundo Marcos Ferrari, do Ministério do Planejamento, "a ideia é destravar investimentos sem que a União gaste um centavo".
O pacote chegou a ser chamado por Ferrari de "o quarto pilar para a retomada" do crescimento -os três primeiros sendo a contenção da inflação, o controle de gastos e a reforma da Previdência. Na era da pós-verdade, a política de juros altos e cortes de investimentos públicos, que vem levando à escalada do desemprego, ao aprofundamento da recessão e à deterioração do quadro fiscal desde 2015, é encarada, veja você, como motor de retomada.
Soma-se a isso uma nova aposta em concessões e incentivos diversos ao capital privado. Essa vem sendo, de fato, a estratégia escolhida desde o início da desaceleração econômica, em 2011: o abandono do investimento público como pilar de crescimento e a insistência nos incentivos a um setor privado altamente endividado.
Essa estratégia, que conflita com uma capacidade ociosa cada vez maior da indústria, não foi capaz de dinamizar a economia.
A ideia de que o investimento das empresas pode funcionar como motor de retomada em meio à recessão e ao alto endividamento vem sendo questionada em diversos países.
Os vários estudos econométricos que examinam a relação de causalidade entre os diversos componentes do PIB parecem sugerir que os investimentos das empresas respondem aos componentes autônomos do gasto, quais sejam, os que dependem pouco do próprio nível de atividade econômica –exportações, investimentos residenciais e investimentos públicos, por exemplo.
Em outras palavras, firmas que operam com capacidade ociosa não encontram razões para ampliar sua capacidade além da existente. Uma retomada dos investimentos tem de ser antecedida por um aumento das vendas, que por sua vez depende de algum fator autônomo de injeção de demanda.
É sobretudo por essa razão que desonerações fiscais e subsídios diversos aos lucros dos empresários não foram capazes de elevar investimentos privados desde a implementação da Agenda Fiesp pela presidente Dilma. Ao contrário, serviram como políticas de transferência de renda para os mais ricos e contribuíram para deteriorar as contas públicas.
O governo Temer vai na mesma direção. Agora tenta também atrair mais capital estrangeiro, facilitando a venda de terras e limitando as exigências de conteúdo local na exploração do pré-sal. Mesmo que haja interesse, o resultado final pode não ser tão favorável para a economia.
No pacote agora anunciado, as únicas ações que vão no sentido –correto– de estimular componentes autônomos da demanda apenas reforçam o velho caráter concentrador de renda do Estado brasileiro.
É o caso dos estímulos ao investimento residencial, via aumento na faixa máxima do programa Minha Casa, Minha Vida para R$ 9.000 e autorização do uso do FGTS para compra de imóveis de até R$ 1,5 milhão.
As projeções indicam que vamos parar de cavar o fundo do poço em 2017. Isso não quer dizer, ao contrário do que sugere o discurso otimista proferido por Henrique Meirelles, que sairemos dele no ritmo sonhado pelos 12 milhões de desempregados que sofrem país afora.
Para isso, além de medidas mais imediatas com impacto na demanda, como é o caso do acesso às contas inativas do FGTS, seriam necessários autênticos pilares, como investimentos públicos em infraestrutura física e social, reforma tributária progressiva e política industrial estratégica. 

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/. Título original: 'Governo aposta em pilares errados para o crescimento'. 


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

As trombetas da História na 'rua de sentido único'

Xilogravura de Camilo Thomé

Diante da estupidez e da decadência que avistava, Walter Benjamin, na sua introspecta polidez, fez vir a lume - não sem sofrimento, talvez - páginas atiladas em rua de sentido único. Anotou a existência de um 'estranho paradoxo' e outras decorrências, ao afirmar: 
"as pessoas, quando agem, têm em mente [muitas vezes] o interesse privado mais mesquinho, mas, ao mesmo tempo, no seu comportamento,  são mais do que nunca determinadas pelo instinto  massificado.  E mais do que nunca,  o instinto massificado tornou-se errado. O obscuro instinto do animal - como inúmeros episódios o comprovam - encontra a saída para o perigo iminente,  mas ainda invisível.  Em contrapartida, esta sociedade, onde cada um tem apenas em vista o seu próprio interesse mesquinho, sucumbe como uma massa cega, com estupidez animal - mas sem a “sabedoria” dos animais - a todo o perigo, ainda que muito próximo.  Muitas vezes se tem demonstrado que é tão rígida a sua fixação à vida habitual, mas de há muito perdida, que acaba por não se verificar a aplicação efetivamente humana do intelecto, a previdência, até mesmo ante o perigo iminente.  Assim a imagem da estupidez completa-se nela: insegurança, ou mesmo degradação dos instintos vitais, e desfalecimento ou até decadência do intelecto."
A estupidez que Benjamin avistava resultou, com o nazi-fascismo, em uma das maiores tragédias da história, com repercussões inclusive no Brasil. Atualmente, não é preciso fazer muito esforço para demonstrar que a mesma estupidez salta de determinadas cabeças e começa a acelerar o galope. Trombetas da História em 'rua de sentido único'. Que as pessoas de bem e os 'democratas em substância' - mesmo tendo divergências entre si - se deem conta da situação. É o que deles se espera. A propósito, a revista Brazzil publicou uma nova versão de um texto que escrevi sobre a encruzilhada que estamos a viver. Pode ser lido aqui: http://brazzil.com/a-few-examples-of-how-societal-fascism-is-alive-and-well-in-brazil/

Venturas e desventuras das lições do tempo e do que a vida ensina

É geralmente atribuído a William Shakespeare, mas, na verdade, a autoria pertence ao talento de Veronica A. Shoffstall, conforme aqui já assinalado. Escreveu-o quando tinha apenas 19 anos - After a While. Segue dito, por Patrick Wanis, e escrito em tradução portuguesa. 




Veronica A. Shoffstall

Depois de algum tempo, você aprende a diferença, a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma. E você aprende que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança. E começa a aprender que beijos não são contratos e presentes não são promessas. E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança. 

E aprende a construir todas as suas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão. Depois de um tempo, você aprende que o sol queima se ficar exposto por muito tempo. E aprende que não importa o quanto você cuide, algumas pessoas simplesmente não se importam... E aprende que elas lhe serão injustas e vão lhe ferir. 
Aprende que falar pode aliviar dores da alma.

Descobre que se levam anos para se construir confiança e apenas segundos para destruí-la, e que você pode fazer coisas em um instante das quais se arrependerá pelo resto da vida. Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias. E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida. E que bons amigos são a família que nos permitimos escolher. Aprende que não temos que mudar de amigos se compreendemos que os amigos mudam, percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos. 
Descobre que pessoas com as quais  você se importa partem da vida (às vezes muito cedo), por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos. Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos. Começa a aprender que não se deve comparar com os outros, mas com o melhor que pode ser. Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto. Aprende que não importa onde já chegou, mas onde está indo, porém, se você não sabe para onde está indo, pode não chegar a lugar nenhum.  Aprende que, ou você controla seus atos ou eles o controlarão, e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem dois lados. 

Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as consequências. Aprende que paciência requer muita prática. Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se. 

Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas do que com quantos aniversários você celebrou. Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha. Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso. 

Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel. Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame, não significa que esse alguém não goste de você, pois existem pessoas que nos amam, mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.

Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo. Aprende que, com a mesma severidade com que julga, você será, em algum momento, julgado. Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não pára para que você o conserte. 
Portanto... plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores. E você aprende que realmente pode suportar... que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais. E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida!


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

E por vezes

De David Mourão-Ferreira, dito por Malfada Jara. 


Verdades, mentiras e fofocas

Por Hélio Schwartsman
(Bacharel em Filosofia; autor de 'Pensando Bem') 

Por que acreditamos em "fake news", as notícias falsas que circulam na internet? O que os estudos no campo da psicologia da mentira ensinam é que a vantagem inicial é dos enganadores. Isso porque, humanos, tendemos a aceitar como corretas as informações que chegam até nós. O nome dessa predisposição é "viés de verdade".
Existem algumas explicações para seu surgimento. Em primeiro lugar, assumir como verdadeiro aquilo que nos é contado é, em termos heurísticos, o melhor chute que podemos dar, já que na vida diária recebemos mais informações corretas do que falsas de parentes, amigos, etc.
No mais, o dano social de acreditar falsamente que alguém é um mentiroso ou de exigir que todos provem tudo o que falam tende a ser maior do que o de acreditar eventualmente numa falsidade. Muito ceticismo não é bom para a vida social.
É claro que esse é só o início do jogo. Se alguém mente para nós repetidas vezes, começamos não só a desconfiar desse indivíduo como também a espalhar que ele é um embusteiro. A fofoca, e o prejuízo que ela causa à reputação, opera como contrapeso ao viés de verdade. É um controle "a posteriori", mas funciona bem, especialmente em grupos pequenos, onde todos se conhecem.
O problema é que hoje vivemos numa comunidade virtual de bilhões de pessoas, a internet, que permite que garotos na Macedônia criem notícias falsas sobre as eleições americanas e as espalhem sem temer dano reputacional. Para piorar, sistemas populares de distribuição de notícias, como o Google e o Facebook, se valem de algoritmos que consideram apenas a taxa de leitura, sem ligar para a veracidade dos dados.
O que precisaríamos fazer seria introduzir na rede um análogo da fofoca, que distinga entre fontes confiáveis e mentirosas. Não é fácil, já que estamos falando de um ambiente cujos pontos altos são justamente a plena liberdade e o quase anonimato. 

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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 21/02/2017. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A desfaçatez como método de governo e a nova banalização do mal



Por Aldo Fornazieri
(Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo)

Desfaçatez é a qualidade de um disfarçado, daquele que não sente nem constrangimento e nem vergonha pelos seus atos condenáveis, publicamente assumidos. Trata-se daquele que, no senso comum, é conhecido como um cara de pau. Pois bem: Temer e, de certa forma, boa parte das autoridades que ocupam cargos superiores nos altos escalões dessa República destroçada, assumiram a desfaçatez como método de conduta e de governo.
Não se trata mais de esconder a verdade, de enganar, de fazer um jogo ardiloso das aparências. Trata-se de assumir a corrupção e o crime como predicados normais de quem governa. Ser acusado, denunciado, processado é como que uma exigência curricular para se tornar ministro, ocupar os altos cargos de comissões no Congresso, ser presidente da Câmara e do Senado, assumir um posto de  conselheiro ou ministro de Tribunais de Constas, se tornar juiz do Supremo Tribunal Federal. Estes requisitos curriculares estão se espalhando nos estados e nos municípios e nos três poderes da República. 
O descaramento e a imprudência com que se manifestam autoridades, senadores, deputados e ministros chega a ser espantosa. Em democracias desenvolvidas, suspeitas e denúncias são suficientes para que uma autoridade pública se afaste do cargo ou renuncie ao mandato. Aqui, Temer avisa que denunciados e delatados permanecem no cargo. Veja-se o caso exemplar de Eliseu Padilha, hoje o ministro mais poderoso do governo. Além de denúncias relativas à Lava Jato, teve milhões de reais bloqueados por um juiz do Mato Grosso, sob a acusação de ter cometido crimes ambientais. No Rio Grande do Sul e no STJ, já foi condenado em definitivo a pagar um montante de R$ 393,76 a um corretor e vem protelando o pagamento. Naquele mesmo estado é acusado de grilagem de terras e é réu em processo por ter beneficiado uma universidade privada - a Ulbra (Universidade Luterana do Brasil) em troca de pagamentos milionários a duas empresas de consultoria do ministro, a Rubi e a Fonte. Padilha já ultrapassou o próprio critério inescrupuloso estabelecido por Temer e, mesmo assim, continua sendo o ministro mais poderoso da Esplanada, proclamando, com desfaçatez, que o governo usa como método transformar desqualificados e despreparados em "notáveis" ministros, como foi o caso do ministro da Saúde, outro acusado de ter cometido irregularidades no Paraná.  
A desfaçatez política e a corrupção estão destruindo o conteúdo moral das instituições e da sociedade. A falta de escrúpulos, de vergonha e de decorro transformou as instituições públicas num escombro de obscenidades. A honradez, a dignidade e a moralidade foram sacrificadas na corrida em busca do foro privilegiado, esse instrumento abjeto que se tornou abrigo de criminosos num Supremo Tribunal Federal que é um cemitério de processos contra corruptos. Hoje não restam dúvidas de que uma das maiores cobiças do núcleo duro dos partidos que fazem parte do condomínio governamental era colocar-se ao abrigo do foro privilegiado.

 A nova face do mal
O atual governo é a expressão de uma nova forma de banalização do mal, não daquela forma referida ao totalitarismo e à sua violência desmedida, estudada por Hannah Arendt. A banalização do mal promovida pelo atual governo é francamente grotesca e despudorada, é a violência contra as convenções morais e civilizatórias, é a cruzada para mostrar que ser honesto é uma frivolidade de ingênuos e de despreparados para o exercício do poder político, pois este exige profissionais da corrupção. Os outros que caíram em função de acusações de corrupção teriam caído por serem amadores. Somente os profissionais, identificados no atual grupo de poder, teriam capacidade para estabilizar a governança corrupta no país, mantendo-o prisioneiro do atraso, da injustiça, da desigualdade e da pobreza às custas da riqueza de poucos. Os poucos, os grandes, os ricos teriam como direito consuetudinário os faustos proporcionados pela corrupção, as suas vidas de vícios, de esbanjamentos que têm em Sérgio Cabral um espécime exemplar deste tipo de conduta.
Para esses banalizadores do mal, não importam as misérias do povo, o desemprego, nos novos milhões de pobres, a indústria, a tecnologia, a ciência, a pesquisa e a cultura sem futuro. Quanto mais longe da modernização o país se encontre, mais longo será o império da corrupção, mais tempo haverá para saquear os cofres da res publica e para orientar os recursos dos orçamentos públicos em benefício dos mais ricos.
Este novo mal radical não vem pelos tanques, pelas bombas e pelos bombardeios. Ele vem pelo desemprego, mata à míngua, asfixia a velhice, retira a potência da esperança dos jovens, renega os direitos das mulheres e dos negros, drena o sangue dos pobres para pagar juros aos bancos e refestelar as mesas e as extravagâncias dos ricos. Este mal radical sonega os remédios e os leitos hospitalares, fecha escolas, põe cancelas ao acesso à educação superior aos pobres e destrói os centros de pesquisa.
Esta nova banalização do mal acredita que não tem limites no movimento de tornar a república e a democracia em letra morta, em formas sem conteúdo, em domínio exclusivo do capital. Este mal cria campos de concentração e de extermínio mentais e vivenciais, torna as pessoas supérfluas, não só pelo desemprego, mas pelas vidas vazias, pelas angústias e pelos medos de vidas sem futuro.
Hannah Arentd tinha razão: o mal radical não vem de figuras mitológicas que têm projetos e poderes fabulosos. Ele vem de figuras banais, até mesmo medíocres. Este governo está eivando de figuras banais, desprovidas de qualquer senso se grandeza. Figuras como Temer, Jucá, o gato angorá, os Moraes, os Quadrilhas, e tantos outros, todos acompanhados por um grande séquito de deputados senadores que o mundo conheceu bem suas índoles no fatídico 17 de abril de 2016.
A questão desta nova banalidade do mal não é apenas moral sem deixar de ser moral. Ela é política e remete para a necessidade de compreender como o Estado brasileiro, ao longo dos tempos, produziu e vem produzindo uma elite política e uma elite econômica que, indubitavelmente, querem o mal do povo e o atraso do país. A resiliência desse atavismo perverso pode ser encontrada na genética maldosa das nossas elites que nunca se habilitaram para a grandeza e para a responsabilidade, mas que fizeram do assalto, da violência, da expropriação e do saque um método para governar para poucos.
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Fonte: http://jornalggn.com.br. Título original: 'A desfaçatez como método de governo'. 


domingo, 19 de fevereiro de 2017

Saudades de outro Brasil: lembrança de Darcy Ribeiro, seriedade na educação e o futuro que nos aguarda

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'Operários' (evidência da miscigenação do povo brasileiro), de Tarsila do Amaral


Corria o ano de 1982 quando o saudoso Professor e cientista social Darcy Ribeiro disse que, se não fossem construídas escolas, em vinte anos, faltaria dinheiro para construir presídios. Infelizmente, Darcy estava certo. E a crise carcerária que o país vive bem demonstra isso. Esse é um dos "dramas" do cientista social digno dessa designação: percebe para onde as coisas estão a caminhar, e sente-se numa situação de impotência para reverter o seu percurso, quando elas tomam 'mal caminho'. Atolamo-nos na tragédia, e hoje já há até quem defenda que se deve distribuir armas à população, ao invés de fornecer cadernos, lápis, computador, etc., à juventude. Garantir educação pública vinculada a um projeto nacional. Afirmações como essas dão também a exata noção de como Darcy estava certo ao dizer o que disse em 1982. De resto, multiplicam-se as manifestações do trágico: um plagiador indicado pelo Presidente da República para a mais alta corte de justiça do país, um Ministro da Educação que não sabe declinar o verbo haver, o Ministro da Cultura que não tem postura de Estado e (histérico e sem polidez para o cargo) agride um dos principais literatos do país numa solenidade em que este é o homenageado... Se vivo estivesse, Darcy estaria estarrecido com o que estamos a viver, e provavelmente se alarmaria com o grau de demagogia e de falta de seriedade que tem tomado conta dos processos educativos - desde as decisões governamentais, passando pela gestão, até determinados fotos/posturas em sala de aula. E o descalabro em torno da formação de professores. Em 1982, ele falava que, se a educação não fosse levada a sério, faltariam presídios no futuro. Hoje, se a tragédia que se abateu sobre o Brasil não for revertida, o que estará em risco será a própria sobrevivência do país, a sua unidade, a existência da ideia de povo brasileiro. Na última sexta-feira, foram contados os vinte anos do falecimento de Darcy. Nenhuma homenagem à sua memória, pouca ou nenhuma notícia a respeito - salvo um breve artigo do jornalista Bernardo Mello Franco. Sinal dos tempos. Segue aí abaixo a reprodução do artigo, precedido por um pequeno vídeo sobre a história desse incansável defensor da educação pública. 




Por Bernardo Mello Franco 

"Se os governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios". A frase de Darcy Ribeiro voltou a ser lembrada no mês passado, quando o país viveu uma onda de massacres nas cadeias. Foi profetizada em 1982, quando o antropólogo se elegeu vice-governador do Rio na chapa de Leonel Brizola.
Muitos políticos usam a educação para fazer demagogia barata. Não era o caso de Darcy. Ele idealizou e construiu centenas de Cieps, escolas públicas de tempo integral. Ergueu duas universidades, incluindo a de Brasília, da qual foi o primeiro reitor.
Não deixou de ser chamado de professor nem quando chefiou a Casa Civil, no governo João Goulart. Em 1964, tentou liderar uma resistência brancaleônica ao golpe. Deixou o Planalto quando os militares já ocupavam o gabinete presidencial, de onde só sairiam 21 anos depois. "Aquela era minha hora de chumbo. Hora que eu preferia estar morto a sofrê-la: a hora do derrotado", conta, em suas memórias.
Darcy dizia ver duas opções na vida: se resignar ou se indignar. Escolheu a segunda, e culpava a indiferença da elite pelo atraso do país. "O Brasil tem um bolsão de gente que vem da escravidão, oprimido, marginalizado. Enquanto não incorporar este bolsão, o Brasil não existirá como gente civilizada", avisava.
O professor não se conformou nem com a doença. No fim da vida, arranjou uma cadeira de rodas e fugiu do hospital onde tratava um câncer. Queria voltar para sua casa de praia e terminar "O povo brasileiro", um tratado ambicioso sobre a mistura de raças que formou o país.
Com falsa modéstia, ele dizia que sua aventura não deu certo. "Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu". Na sexta-feira (17), o Brasil completou 20 anos sem Darcy.

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardomellofranco/. Título original: 'Vinte anos sem Darcy'


sábado, 18 de fevereiro de 2017

Do vindo ao porvir: o eterno, o retorno e a forma do que vai chegar


Foto: Elizeu dos Santos, túnel Serra das Russas/PE 

Eterno Retorno é um conceito desenvolvido pelo filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), considerado por ele próprio um dos seus pensamentos mais impactantes. Foi durante um passeio, em 1881, que Nietzsche refletiu sobre os sentidos das vivências em alternâncias que se “repetem”. Embora em várias de suas obras encontremos pistas do que seria o Eterno Retorno, é na sua obra A Gaia Ciência (1882), um dos mais belos livros antes de Nietzsche sofrer das baixas de sua saúde, que ele nos brinda com a ideia mais nítida do que seria esse conceito:

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!“ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? (aforismo 56). 

Parece que o Eterno Retorno defende a tese de que pólos se alternam nas vivências numa eterna repetição. Criação e destruição, alegria e tristeza, saúde e doença, bem e mal… tudo vai e tudo retorna. Porém, esses pólos não se opõem, mas são faces de uma mesma realidade, isto é, um complementa o outro, são contínuos de um jogo só. Alegria e tristeza são faces de uma única coisa experienciada com grau diferente.
A temporalidade não está presente no Eterno Retorno, a realidade para Nietzsche não tem uma finalidade nem um objetivo a cumprir, e por isso as alternâncias de prazer e desprazer se repetem durante a vida. – O Eterno Retorno não se reporta a uma demarcação temporal cíclica e exata, mas às nuances de vivências que se complementam e dão o colorido da vida.
O devir não ocorre de um modo exatamente igual, mas são variações de sentidos já vivenciados, faces de uma mesma realidade. A alegria e a tristeza que senti não serão iguais no amanhã, mas voltarei a experimentar esses estados em suas diferentes variações.
A indagação que Nietzsche nos faz através do aforismo acima não se trata de uma negação da vida, pelo contrário, nos remete a uma afirmação da vida. Não posso crescer se não experimento declínio e vice-versa, são faces de uma mesma moeda sem demarcação de tempo e exatidão, de tal modo, Nietzsche nos aponta que os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas, mas como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais”. Eis aqui uma bela resposta de Nietzsche ao “pessimismo” de Schopenhauer.
Se tudo retorna – o prazer e o desprazer, a dor e o deleite, a alegria e o sofrimento – queremos mesmo viver à eternidade onde nada de novo irá acontecer além de vivências com nuances variadas de uma mesma realidade?  Não é fácil dar uma resposta a indagação que o Eterno Retorno nos faz.  Mas apenas você pode respondê-la, e ninguém poderá fazer isso por você, uma resposta pronta e acabada não faz sentido, da mesma forma que [determinadas visões de] “verdade” e a “mentira” não encontram acomodação no pensamento de Nietzsche. Talvez decorra daí o sentido perturbador do conceito. 
Nietzsche nos dá o Eterno Retorno como uma saída, que consiste em buscar a criação na destruição; só nessa complementação [é] que podemos transcender e reafirmar a vida em detrimento dos valores que envenenaram a humanidade e negaram a [própria] vida.


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Informação autoral: Sítio 'Eterno Retorno' - http://www.eternoretorno.com/

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Como destruir um país e definir o destino do seu povo

Por Vladimir Safatle 
(Departamento de Filosofia da USP)

Há três formas de destruir um país. As duas primeiras são por meio da guerra e de catástrofes naturais. A terceira, a mais segura e certa de todas, é entregando seu país para economistas liberais amigos de operadores do sistema financeiro.
Em todos os países onde eles aplicaram suas receitas de "austeridade", a recompensa foi a pobreza, a desigualdade e a precarização.
Alguns países, como a Letônia, vendido por alguns como modelo de recuperação bem-sucedida, viu sua população diminuir em quase 10% em cinco anos, algo que apenas as guerras são capazes de fazer.
Ou seja, o preço para essa peculiar noção de sucesso foi expulsar quase 10% da população para refazer suas vidas em outros países.
No Brasil, não faltou economista a eleger, meses atrás, o Espírito Santo como um modelo de ajuste econômico e responsabilidade fiscal. O mesmo Espírito Santo que tem números piores do que média nacional (retração de 13,8% até o terceiro trimestre de 2016) e que há algumas semanas simplesmente entrou em colapso, virando uma zona de anomia em meio à greve de policiais. Não poderia ser diferente.
No mundo desses senhores não existe gente, não se levam em conta reações populares a medidas econômicas, muito menos experiências de sofrimento social e revoltas políticas contra processos de pauperização vendidos como "remédios amargos, porém necessários".
Outros tantos desses economistas encheram as páginas de jornais e tempo de televisão para levar a sociedade brasileira a acreditar que, conduzindo Michel Miguel à Presidência, a "confiança" dos mercados daria o ar de sua graça e, com ela, viria a estabilidade.
Bem, nos últimos dias, o Banco Mundial divulgou uma análise segundo a qual espera que, até o final do ano, 3,6 milhões de pessoas voltem à pobreza no Brasil. Para ser mais claro, 3,6 milhões de pessoas verão seus rendimentos caírem para menos de R$ 140 por mês.
Isso em um cenário no qual o Brasil tem a maior taxa de capacidade ociosa da indústria dos últimos 70 anos, já que não há mais compradores para seus produtos.
Se somarmos a isso a reforma da Previdência, a limitação de investimentos estatais para guardar dinheiro a fim de pagar os mais de R$ 400 bilhões em serviços da dívida pública, a proposta de terceirização irrestrita e o colapso do sistema brasileiro de serviços públicos teremos um cenário simples: o Brasil foi destruído pelas políticas implementadas desde a guinada neoliberal do governo Dilma. O próximo passo será a imigração em massa dos que puderem, normalmente os mais bem formados.
É claro que haverá aqueles que dirão que isso é "herança maldita" de políticas econômicas esquerdistas. Mas chamar governos que nunca foram capazes de propor a taxação progressiva de rendas e riquezas, a transferência paulatina da detenção dos meios de produção para as mãos dos trabalhadores e a limitação dos ganhos do sistema financeiro de esquerdista é algo da ordem do simples jogo de palavras.
Enquanto isso, uma parcela da população aplaude tudo, já que acredita ficar imune à degradação econômica nacional.
Essa mesma parcela julga-se hoje detentora de alguma forma de superioridade moral que faria calar os descontentes com este governo.
No entanto, que as coisas sejam ditas de forma clara: eles nunca estiveram nem estão, de fato, preocupados com julgamentos morais.
Os mesmos que gritam contra corruptos do antigo governo sempre votaram e continuaram votando em políticos notoriamente corruptos, continuaram calados diante de casos gritantes de corrupção neste governo, como ficaram calados quando, nesta semana, o STF publicou uma decisão inacreditável e criminosa para permitir o gato Angorá, vulgo Moreira Franco, com suas citações na Lava Jato, ocupar um ministério.
Nada estranho, já que o problema deles nunca foi a corrupção, e sim a luta contra políticos com os quais eles não se identificam. O discurso contra a corrupção era apenas uma grande farsa, senão produziria ações simétricas contra toda a classe política brasileira.
Julgamentos morais não aceitam usos estratégicos. Quem usa moral de forma estratégica é um "moralista da imoralidade". Na verdade, essas pessoas são atualmente cúmplices de um governo cuja única preocupação é se blindar e escapar da cadeia. Até porque, Michel Miguel e os seus não governam, eles têm coisas mais urgentes para fazer.
Enquanto tentam salvar a própria pele, terceirizaram o Brasil para gestores da catástrofe. 

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle. Título original: 'A receita para destruir um país'. 


Do flerte com o silêncio a um lugar ao sol: economia das condições de vida

Por Laura Carvalho 
(Faculdade de Economia - USP) 

Em entrevista à revista "Época" sobre o debate suscitado por seus textos sobre a alta taxa de juros brasileira, o economista André Lara Resende –um dos pais do Plano Real– nos alertou para o que chamou de conservadorismo intelectual histórico.
"Rudiger Dornbusch, meu professor do MIT, sempre questionou o que ele considerava minha insistência em dar atenção a argumentos não convencionais sobre inflação", contou.
Noves fora os interesses que permeiam o tema dos juros e a eventual patrulha apontada por Elio Gaspari, a natureza dos diversos processos inflacionários, além de ter causado grandes mudanças de paradigma, ainda parece ser um dos maiores entraves ao diálogo entre economistas.
A estagflação dos anos 1970 nos EUA, por exemplo, levou ao enfraquecimento temporário das teorias baseadas na chamada Curva de Phillips, que estabelecem uma relação negativa entre taxa de desemprego e de inflação. O monetarismo de Milton Friedman, que disse certa vez que "a inflação é sempre e em toda parte um fenômeno monetário", ganhou espaço naquele contexto.
Já em decadência há algumas décadas, o monetarismo em sua versão extrema vive hoje um recorde de baixa popularidade: a expansão monetária realizada pelos bancos centrais de países ricos após a crise de 2008, e as baixas taxas de inflação que ainda vigoram por lá, se encarregaram de enterrá-lo.
Na Teoria Fiscal do Nível de Preços resgatada por André Lara, a inflação responde não à quantidade de moeda em circulação, mas ao estoque de endividamento público. Se o governo gasta mais do que arrecada, a taxa de inflação sobe, de modo a manter a dívida pública constante em termos reais. Assim, uma elevação de juros que aumente a dívida pública poderia ter efeitos inflacionários.
A elegância da teoria e a conexão –sempre interessante– entre os efeitos das políticas fiscal e monetária não escondem a falta de evidência empírica em seu favor. Afinal, os mesmos países que expandiram muito o estoque de moeda no pós-crise sem nenhum efeito inflacionário passaram por um forte aumento da dívida pública.
Nem toda inflação é igual ou causada pelos mesmos fatores. Olhar para os dados e para as nossas particularidades é fundamental para arejar o debate.
Após um período de alta inflação de serviços, devido à queda do desemprego e ao crescimento acelerado dos salários –o custo mais relevante para esses setores–, evoluímos para uma inflação puxada sobretudo pelos preços administrados, que subiram mais de 18% em 2015. Sofremos também, em algumas ocasiões, outros choques de custos: por exemplo, altas do dólar, que encarecem insumos importados, e altas de preços de alimentos.
O traço comum é a forte inércia, que foi objeto nos anos 1980 de estudos do próprio André Lara e de demais economistas que ajudaram a formular o Plano Real. Em um país que nunca se livrou totalmente da alta memória inflacionária e da indexação de contratos, choques e elevações localizadas de preço tendem a contaminar os demais preços e a persistir no tempo.
O combate exclusivo via taxa de juros, que mesmo após o fim do câmbio fixo, em 1999, continuou atuando sobretudo pelo canal de câmbio, via atração de capital estrangeiro e valorização do real, parece de fato uma escolha demasiado custosa. Nesse debate, medidas de desindexação de contratos, de estímulo à produtividade e de redução da volatilidade no mercado cambial, por exemplo, merecem um lugar ao sol.


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Fonte:     Titulo original: 'http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/. Causas da inflação dão nó no debate econôico'.