Na escuridão da cegueira, Jorge Luís Borges recorreu ao alemão
alles nahe werde fern (‘tudo que é
próximo se afasta’), de Goethe, para dizer que, ao entardecer, as coisas que nos
são mais próximas já se afastam dos nossos olhos. Vão-nos deixando. Por certo, soava
paradoxal e melancólico que o mundo visível se afastasse dos olhos de Borges
quando da manifestação crepuscular de uma existência que, pela sua produção espiritual,
negava o perecer e o sagrava pela consagração da sua obra. Na vista que
desaparecia, Borges conseguia, contudo, manter o equilíbrio de comportamento. Prova
de que, mesmo diante das intempéries da cegueira, o exercício da racionalidade
pode assegurar a permanência da razoabilidade. Pois bem, difícil mesmo é
testemunhar a cegueira da irracionalidade nos não cegos dos olhos, e num local em
que, de per si, é a casa da
racionalidade, isto é, a universidade. Imagine o que é um padrão de campanha de
eleição reitoral ter como marca o modus
operandi das torcidas de futebol, onde, além dos gritos, resolver as “diferenças”
no braço não é uma opção descartada. Imagine o que é se programar um debate
para o Campus de uma universidade, e
a comunidade local desse Campus (professores,
estudantes e servidores técnicos) ver-se constrangida por presenças exógenas.
Imagine o que é o debate ser suspenso porque a atmosfera que prevalece é a da
truculência, e não a do diálogo. Dessas
situações, a dedução logo se apresenta: chegou-se ao fundo do poço pelo
exercício da irracionalidade numa instituição que deve ser guardiã da razão e
exemplo de civilidade para a sociedade. Lamentável.
quinta-feira, 31 de março de 2016
quarta-feira, 30 de março de 2016
Para uma universidade nova
Seja nos debates em que tenho participado, seja em trabalhos escritos, seja na linha de pesquisa da pós-graduação sobre política e gestão da educação, seja nas discussões do Fórum Universitário do Mercosul, tenho vindo a assinalar o significativo contributo que o ex-Reitor da UFBA Naomar de Almeida Filho tem aportado - com base base prática - a respeito do futuro da universidade. O livro aí acima de sua autoria, em parceria com Boaventura de Sousa Santos, condensa importantes reflexões acerca da vida universitária e, de modo geral, da sua gestão. Leitura recomendada.
segunda-feira, 28 de março de 2016
Águas turvas: aviso aos navegantes
Por Laura Carvalho
(Profa. do Departamento de Economia da FEA – USP)
Em meio à tempestade, parece
ter sido construído um consenso entre alguns setores do empresariado, do
mercado financeiro e do Congresso de que a queda da presidente Dilma Rousseff é
o melhor caminho para chegarmos a águas mais calmas. Com Michel Temer na
Presidência, a tão desejada estabilidade criaria as bases para a resolução das
atuais crises política e econômica nos próximos anos.
As condições econômicas
favoráveis que caracterizaram a segunda metade dos anos 2000 permitiram ao
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva compatibilizar a manutenção da alta
parcela da renda destinada ao 1% mais rico da população com a elevação do nível
de emprego formal e dos salários e a redução da disparidade entre o salário
mínimo e o salário médio da economia.
O ganha-ganha garantiu ao
ex-presidente a sua base de sustentação política, abrindo espaço para que uma
parte maior do Orçamento público fosse destinada a programas sociais, aos
gastos com saúde e educação e aos investimentos em infraestrutura.
Desde 2011, a desaceleração
econômica trouxe de volta um acirramento dos conflitos distributivos sobre a
renda e o Orçamento público. A inflação de serviços, que crescia com os
salários de trabalha- dores menos qualificados, deixou de ser compensada pelo
menor custo dos produtos e insumos importados –que era fruto da valorização
cambial– e passou a causar maior descontentamento.
As sucessivas tentativas de
resolver tais conflitos priorizando o lado mais influente da barganha, ora pela
via da concessão cada vez mais ampla de desonerações fiscais aos empresários
entre 2012 e 2014, ora pela via da elevação do desemprego, redução de salários
e ameaça aos direitos constitucionais, desde 2015, mostraram-se fracassadas na
estabilização da economia e na construção de uma base de sustentação política
para o governo Dilma.
Ignorando tais evidências,
Temer apresentou no fim de outubro um esboço de seu programa de governo no
documento intitulado "Uma Ponte para o Futuro", que foi elaborado por
uma fundação do PMDB com a colaboração do ex-ministro Delfim Netto. O texto,
entre outros itens, afasta a hipótese da elevação de impostos como caminho para
o ajuste das contas públicas, sugerindo, ao contrário, acabar com vinculações
constitucionais para os gastos com saúde e educação e com a indexação de
benefícios previdenciários ao salário mínimo.
"Nossa crise é grave e
tem muitas causas. Para superá-la, será necessário um amplo esforço
legislativo, que remova distorções acumuladas e propicie as bases para um
funcionamento virtuoso do Estado. Isso significará enfrentar interesses
organizados e fortes, quase sempre bem representados na arena política",
propõe.
Pelo teor do programa, os
interesses organizados e fortes que serão enfrentados em um eventual governo
Temer não são os dos financiadores de campanhas eleitorais, que já capitaneiam
seu barco, mas sim os dos trabalhadores e movimentos sociais –apoiadores ou
críticos ao governo– que foram às ruas na sexta-feira (18).
Não há registro histórico de
um governo que, mesmo contando com a legitimidade conferida pelo voto, tenha
conseguido, em meio a condições econômicas tão desfavoráveis e agravadas por
essas escolhas, garantir a estabilidade e a paz social por essa via sem o uso
de repressão crescente. Esses navegantes parecem, entretanto, decididos a
pescar em águas turvas.
domingo, 27 de março de 2016
Eleições universitárias: rebaixamento do nível e debate acadêmico em risco
Por Ivonaldo Leite
Vamos ao básico procurando elevar o nível da
discussão, pois, em determinados momentos, as circunstâncias requerem que
(re)lembremos o elementar. Entendamo-nos.
Derivado do latim universitas, por sua
vez resultante do latim clássico universus, o substantivo
universidade designa a instituição que tem as funções educativas mais
abrangentes, isto é, em conformidade com a sua raiz etimológica, mais
universais. Funções educativas em dupla perspectiva: por um lado, formar
cognitiva e socialmente as pessoas que a frequentam; e por outro lado, como
espaço do ‘conhecimento esclarecido’ (científico), ser um exemplo de conduta
ética e cívica para o universo do lugar onde ela está situada.
Por isso, as eleições que ocorrem no interior da
universidade revestem-se de uma relevância decorrente de, pelo menos, três
razões.
A primeira razão refere-se ao fato de que, nas
contendas eleitorais universitárias, estão em causa disputas em torno de
projetos político-administrativos que refletem concepções de universidade.
Assim sendo, está em questão tanto a escolha da melhor forma de conduzir a
instituição como também, em última instância, o modo de se conceber a sua
relação com a esfera social e política mais geral.
A segunda razão concerne ao significado que a
realização de eleições universitárias tem para a construção da cultura
democrática. Para servidores docentes e técnicos, é um momento ímpar para
exercitar o diálogo e a convivência com a diversidade, expressa entre posições
contrárias (é uma ocasião, assim, inclusive, no caso docente, para que seja
praticado o que geralmente é difundido de maneira teórica). Para os
estudantes, além do exercício da convivência com a diversidade, as eleições
universitárias são também um momento de aprendizagem que, pelo processo de
formação em que eles se encontram, transcende o ambiente acadêmico momentâneo
(da disputa) e tem incidência sobre a sua compreensão de vida
cidadã.
Last but
not least, a terceira razão. Ela
diz respeito ao potencial exemplo, para a sociedade, que as eleições na
universidade podem representar. Isto é, os pleitos universitários constituem
uma oportunidade para que seja evidenciado um padrão político-educativo
alternativo ao modus operandi da política partidária
tradicional, na qual geralmente as eleições são marcadas pela disputa entre
obscuras superestruturas financeiras, pela troca de favores, pela alienação de
consciências mediante a compra de votos, pela propaganda enganosa através de
propostas que não passam de peças de ficção, pelos discursos rasteiros que
resvalam para o terreno pessoal, pelo grito da intolerância para abafar a fala
do outro, pelas brigas entre eleitores a cabos eleitorais, pelo desrespeito
puro e simples, etc. Em hipótese alguma, parâmetros como esses devem balizar as
disputas das eleições na universidade, afinal esta ocupa o lugar de instância
máxima da educação formal na sociedade.
Contudo, infelizmente, nos últimos tempos, temos
presenciado o rebaixamento do nível nas eleições universitárias, degradando a
qualidade da interlocução entre candidatos e colocando em risco o próprio mister da
Educação Superior: o debate acadêmico. A título de ilustração empírica, tomemos
como amostra o presente processo eleitoral na Universidade Federal da Paraíba,
devendo ser assinalado, no entanto, que o caso não é apanágio da UFPB.
Não é razoável que os debates, onde concepções e
propostas sobre a universidade devem ser apresentadas (e se tenha ambiente para
discuti-las), sejam transformados num palco de enfrentamento entre torcidas,
onde os gritos e os insultos inviabilizam a argumentação e o exercício da
racionalidade (isso numa universidade!). Não é de bom tom que professores
apoiadores de uma chapa, aos olhos dos alunos, virem as costas em bloco
para a mesa do debate porque um candidato adversário vai falar - quanta
descortesia, desrespeito à diversidade e dificuldade de conviver com um aspecto
básico da democracia que é a divergência (isso numa universidade!). Não é
condizente com o contexto universitário praticamente não se poder concluir um
debate entre candidatos a reitor, com o último postulante a falar tendo a sua
intervenção prejudicada pelo tumulto formado no auditório. Ser ouvido e não
querer ouvir é uma expressão da rejeição ao diálogo e do autoritarismo (isso
numa universidade!).
E assim vai sendo perdida a oportunidade de se
discutir o futuro de uma instituição com a dimensão da UFPB e a sua relevância
para o estado da Paraíba: um orçamento de cerca de um bilhão e trezentos
milhões de reais (R$ 1.268.179.016,00); possuidora de 16 Centros de Ensino;
ofertando 138 cursos de graduação; registrando 44 mil alunos matriculados,
distribuídos na graduação presencial, a distância e na pós-graduação.
Temas urgentes passam ao largo da discussão. Alguns
deles: 1) A internacionalização e a busca da equalização entre o global e o
local, mediante os programas de intercâmbio/de mobilidade e os protocolos de
cooperação; 2) a relação universidade, sociedade e mercado, efetivada através
do ensino, da pesquisa e da extensão. De modo geral, nesse tema, é possível
vislumbrar posições como: a) defesa da completa subordinação da vida
universitária à ‘lógica input-output’ do mercado; b) defesa de uma
regulação mitigada da relação entre universidade e mercado; c) defesa de uma
regulação que conserve a autonomia da instituição. A depender da forma como se
enfrente essa questão, temos consequências diferentes, como, por exemplo, as
que recaem sobre a área de ciências humanas, ou soft sciences,
podendo estas serem ‘esvaziadas’, em função da ideia de utilidade valorizada
pela herança positivista das hard sciences. 3) O acesso e a
permanência discente na universidade, o que implica em discutir as modalidades
e a gestão da assistência estudantil; 4) os problemas de infraestrutura, sendo
necessário que se tenha uma posição concreta e sem tergiversações sobre as
obras paralisadas.
Essa diminuta amostra bem oferece uma visão dos desafios
que a UFPB tem diante de si. Não será balançando chocalho, batendo bumbo,
recorrendo às práticas da politicagem tradicional, utilizando um linguajar
incompatível com a instituição universitária e tumultuando os debates à eleição
reitoral, etc., que chegaremos aos procedimentos adequados
para enfrentar os referidos desafios. No máximo, apequenar-se-á o seu valor
perante a sociedade através da difusão da estupidez.
sábado, 26 de março de 2016
Os mortos que não acabam de morrer
Madres de Plaza de Mayo - Buenos Aires |
Por Nildo Ouriques
(Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade
Federal de Santa Catarina)
Não sou leitor disciplinado do Mário
Benedetti ainda que sempre cultivei pelo escritor uruguaio gratuita e precoce
simpatia. No entanto, gosto de seu ensaio, especialmente aqueles voltados para
entender a rebelde realidade da América Latina. Benedetti, quem foi
alfabetizado em alemão e conhece profundamente a cultura européia, carrega
magistralmente imensa originalidade latino-americana em tudo o que escreveu.
Ademais, nunca cultivou as convenientes ambiguidades de Jorge Luis Borges, para
ficar apenas no exemplo mais exuberante.
Foi no escrito Dos muertos que
no acaban de morir, título tomado da canção de Viglietti inspirado no poema
do peruano César Vallejo, onde Benedetti elucidou para a eternidade a relação
entre política e verdade quando nós, latino-americanos, nos defrontamos com os
presidentes estadunidenses e a política imperialista.
O texto foi lido em 1978 numa homenagem
a dois parlamentares uruguaios (Zulmar Michelini e Héctor Gutierrez Ruiz)
sequestrados e assassinados em Buenos Aires dois anos antes e apareceu num
livro quase esquecido, intitulado El recurso del supremo patriarca.
O genial escritor uruguaio elucida os
"ciclos da CIA", especialmente útil para todos aqueles que defendem a
democracia e rechaçam, ainda que de maneira cosmética, a violência na política.
É também muito importante para verificar como, de fato, funciona o sistema
democrático estadunidense e especialmente válido para entender o terrorismo de
estado, a modalidade terrorista mais letal que a Humanidade já conheceu.
Nesta semana o presidente dos Estados
Unidos, Barak Obama, visitou Cuba e Argentina. Aqui no país vizinho, Obama
confessou o "apoio dos Estados Unidos" à sangrenta ditadura
(1976-1983), período onde desapareceram e foram assassinados milhares de
argentinos (talvez mais de 30 mil). A assessora de segurança e política externa
do presidente estadunidense, Susan Rice, disse ao jornal espanhol El
País que, "para expressar nosso comprometimento com os direitos
humanos, o presidente visitará o Parque da Memória, a fim de homenagear a
memória das vítimas da guerra suja da Argentina. Além dos 4.000 documentos
sobre esse período obscuro que os EUA já liberaram, o presidente Obama, a
pedido do Governo argentino, anunciará um esforço para abrir documentos
adicionais, incluindo, pela primeira vez, documentos militares e de
inteligência. Acreditamos - disse a funcionária gringa - que essa viagem será
uma demonstração histórica da aproximação entre nação e a América Latina".
A "generosidade" de Obama me
recordou Benedetti e os "ciclos da CIA".
Abaixo, sem talento literário, traduzo
o trecho de Benedetti que dispensa comentário adicional.
"A história contemporânea ensina
que os porta-vozes oficiais norte-americanos nunca reconhecem de
imediato os excessos da CIA. Ainda mais: negam enfaticamente sua
própria intervenção, como se quisessem dar a entender que a CIA atua por sua
própria conta, sem consultar sequer a Casa Branca. Com frequência, transcorrem
vários anos antes que algum sagaz jornalista do Washington Post ou
do New York Times publique a previsível e sensacional série de
artigos, denunciando a participação da Agencia Central de Inteligência em tal
ou qual atentado (exitoso ou falido) ou em tal ou qual golpe de estado
(geralmente exitoso). Somente então aparecem os menos previsíveis senadores da
oposição (democratas, se o governo é republicano; republicanos, se o
governo é democrata) que, ecoando as denuncias jornalísticas, promovem
exaustiva investigação que, obviamente, vai demonstrar com pelos e sinais, e
também com gravações e fotografias, a culpabilidade da famosa Agencia. Uma vez
alcançado esse ponto de ebulição, é fácil concluir no horóscopo o capítulo
seguinte: aparecerão como por encanto comentaristas internacionais, jornalistas
de nota, locutores de radio e televisão, prêmios Nobel, escritores com bolsa,
ex-presidentes, ex-secretários da OEA, todos os quais lançaram sua voz para
elogiar até as lágrimas a vigência do direito no sistema democrático dos
Estados Unidos, capaz de detectar suas próprias transgressões, suas arapucas,
suas mentiras e crimes, e, como se fosse pouco, nomeando os culpados por seus
nomes e apelidos. Com semelhante toque final, e ainda que nenhuma dessas
esplendorosas virtudes sirva para que os assassinados ressuscitem, o terreno
fica pronto para começar a preparar a próxima eliminação de dirigentes de
esquerda, a próxima queda de um avião de passageiros, o próximo atentado às
embaixadas do Terceiro Mundo, e, assim sucessivamente. Como é lógico, quando
algum destes planificados novos golpes da CIA se produza, aparecerá o porta-voz
de sempre, ou seu substituto, para negar enfaticamente a
participação de seu governo, e somente três anos depois um jornalista hábil
descobrirá finalmente que foi a CIA a inspiradora do crime, e aparecerão
senadores da oposição, etc., etc. O ciclo se cumpre e feliz
páscoa."
quinta-feira, 24 de março de 2016
Refletir e evoluir
Por Ana Macarini
Não há nenhuma facilidade para quem se atreve a questionar o que pensa;
o que veste; o que fala; o que omite; o que consome; o que oferece. Refletir é,
por si só, um ato de coragem. Ir vivendo e tocando a vida, deixando a
correnteza fazer suas escolhas aleatórias é demasiado tentador. Sobretudo
porque, o simples ato de pensar tira de nós a anestesia tão bem-vinda nesse
mundo turbulento. Pensar é para quem tem coragem de cutucar com vara curta e
frágil a sedutora comodidade de não se comprometer.
Compromisso é o nome que se dá ao ato de assumir a responsabilidade
pelas escolhas feitas. E, é bom que tenhamos sempre em mente que, mesmo quando
não escolhemos (ou, principalmente quando não escolhemos), estamos firmando uma
posição. Afinal, o que pode ser mais arriscado que permitir a alguém ou a
qualquer circunstância que faça escolhas em nosso nome?
Verdade seja dita, é muito mais fácil e seguro pegar emprestadas
ideologias e discursos alheios; passar por sobre eles uma boa maquiagem;
remodelar a formatação e sair por aí defendendo ideias prontas que parecem ter
algum sentido ou vir ao encontro daquilo que nos parece familiar. Ouvir da boca
do outro, palavras que parecem fazer coro com nossas necessidades, fornecem uma
ilusão morna e acolhedora que nos faz relaxar por alguns instantes; que nos
tira do sobressalto da urgência de tomar uma atitude, qualquer atitude.
Atitude é aquela ação mais agressiva e bem menos protegida que exige de
nós que mostremos afinal a nossa cara; que coloquemos em cima da mesa apenas as
cartas que temos, mesmo que sejam cartas repetidas, sem valor para virar o
jogo. Atitude requer de nós a hombridade de só transformar em verbo o que
formos capazes de honrar em ações. Atitude é, também, admitir que não se sabe
tudo; que se tem mais perguntas que respostas; que estamos tão perplexos diante
do cenário que se apresenta, que será preciso algum tempo, até que nos tornemos
capazes de apresentar alguma alternativa, proposta ou sugestão. Ter atitude
exige de nós algo muito mais profundo e orgânico do que simplesmente criticar.
O mundo é esse lugar aqui, não é lá fora, nem lá longe. O mundo é antes
desenhado dentro de cada um de nós. Parte das nossas mais recolhidas esperanças
e desejos é a sua manifestação. O mundo, é esse chão que você pisa. E que
muitas vezes, nem é o chão que se projeta sob os seus pés; é o corpo, a alma e
a vida de um irmão; que, de tão esquecido e invisível, misturou-se com a poeira
que você carrega debaixo do seu sapato. O mundo é esse ar que nos envolve e que
nos falta, na hora do medo; na hora da dor e na hora do prazer. O mundo é a
minha, a sua, a nossa cara de paisagem diante das inúmeras contradições que nos
assolam a cada instante.
O mundo é a montanha que virou buraco e a cidade que virou lama em Minas
Gerais. O mundo é a incongruência de ter de admitir que, sem a indústria que
explora e destrói, a cidade destruída não consegue se reerguer. Porque a mesma
mão que alimenta e sustenta, bate com força na cara daqueles que não têm a
moeda do poder. O mundo é essa maravilhosa discrepância graças à qual ainda há
milhares de nós que não se conformam, não ficam lambendo os próprios umbigos e
arregaçam as mangas para agir segundo um pensamento tão inusitado quanto
lógico: assumir que errar é coisa de todo dia; acertar é só para quem se
arrisca e o risco só vale à pena se não for apenas uma manobra de vaidade e
exposição.
É a nossa insignificante existência e pequenez diante do universo que há
de nos colocar de joelhos diante da nossa imensa falta de integridade; e há de
nos colocar de pé, diante da audaciosa decisão de romper o ciclo. É a nossa
consciência há tanto adormecida que há de nos despertar e de nos fazer gritar,
mais com paixão do que com barulho um sonoro “BASTA”! Basta de fazer de conta
que não somos sustentados por um modelo ultrapassado de consumo predatório.
Basta de fechar os olhos às “pequenas irregularidades” que nos favorecem porque
“não é isso que vai mudar o mundo”. Basta de clamar pelo fim da impunidade e
parar o carro na fila dupla, torcendo para não ser pego pelo agente de
trânsito. Basta de aceitar como fatalidade as consequências de modelos
administrativos historicamente corruptos. Basta de assumir a simples e patética
postura de se embrulhar numa bandeira e achar que isso vai resolver alguma
coisa. O mundo é como é e está como está porque nós estamos muito mal-acostumados
a abrir os olhos apenas para aquilo que nos interessa, nos dá notoriedade ou
afeta diretamente. O fato é que corremos o risco de uma hora dessas abrirmos os
olhos e não termos mais absolutamente nada para ver.
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Fonte: http://www.contioutra.com/. Título original: 'É impossível evoluir com os olhos vendados'.
segunda-feira, 21 de março de 2016
Brasil à beira do caos e os perigos da desordem jurídica
Por
Boaventura de Sousa Santos
(Universidade de Coimbra - Portugal)
Quando,
há quase trinta anos, iniciei os estudos sobre o sistema judicial em vários
países, a administração da justiça era a dimensão institucional do Estado com
menos visibilidade pública. A grande exceção eram os EUA devido ao papel
fulcral do Tribunal Supremo na definição das mais decisivas políticas públicas.
Sendo o único órgão de soberania não eleito, tendo um carácter reativo (não
podendo, em geral, mobilizar-se por iniciativa própria) e dependendo de outras
instituições do Estado para fazer aplicar as suas decisões (serviços
prisionais, administração pública), os tribunais tinham uma função
relativamente modesta na vida orgânica da separação de poderes instaurada pelo
liberalismo político moderno, e tanto assim que a função judicial era
considerada apolítica. Contribuía também para isso o facto de os tribunais só
se ocuparem de conflitos individuais e não coletivos e estarem desenhados para
não interferir com as elites e classes dirigentes, já que estas estavam
protegidas por imunidades e outros privilégios. Pouco se sabia como
funcionava o sistema judicial, as características dos cidadãos que a ele
recorriam e para que objetivos o faziam. Tudo mudou desde então até aos nossos
dias. Contribuíram para isso, entre outros fatores, a crise da representação
política que atingiu os órgãos de soberania eleitos, a maior consciência dos
direitos por parte dos cidadãos e o facto de as elites políticas, confrontadas
com alguns impasses políticos em temas controversos, terem começado a ver o
recurso seletivo aos tribunais como uma forma de descarregarem o peso político
de certas decisões. Foi ainda importante o facto de o neoconstitucionalismo
emergente da segunda guerra mundial ter dado um peso muito forte ao controlo da
constitucionalidade por parte dos tribunais constitucionais. Esta inovação teve
duas leituras opostas. Segundo uma das leituras, tratava-se de submeter a
legislação ordinária a um controlo que impedisse a sua fácil instrumentalização
por forças políticas interessadas em fazer tábua rasa dos preceitos
constitucionais, como acontecera, de maneira extrema, nos regimes ditatoriais
nazis e fascistas. Segundo a outra leitura, o controlo da constitucionalidade
era o instrumento de que se serviam as classes políticas dominantes para se
defenderem de possíveis ameaças aos seus interesses decorrentes das
vicissitudes da política democrática e da “tirania das maiorias”. Como quer que
seja, por todas estas razões surgiu um novo tipo de ativismo judiciário que
ficou conhecido por judicialização da política e que inevitavelmente conduziu à
politização da justiça.
A
grande visibilidade pública dos tribunais nas últimas décadas resultou, em boa
medida, dos casos judiciais que envolveram membros das elites políticas e
económicas. O grande divisor de águas foi o conjunto de processos criminais que
atingiu quase toda a classe política e boa parte da elite económica da Itália
conhecido por Operação Mãos Limpas. Iniciado em Milão em abril de 1992,
consistiu em investigações e prisões de ministros, dirigentes partidários,
membros do parlamento (em certo momento estavam a ser investigados cerca de um
terço dos deputados), empresários, funcionários públicos, jornalistas, membros
dos serviços secretos acusados de crimes de suborno, corrupção, abuso de poder,
fraude, falência fraudulenta, contabilidade falsa, financiamento político
ilícito. Dois anos mais tarde tinham sido presas 633 pessoas em Nápoles,
623 em Milão e 444 em Roma. Por ter atingido toda a classe política com
responsabilidades de governação no passado recente, o processo Mãos Limpas
abalou os fundamentos do regime político italiano e esteve na origem da
emergência, anos mais tarde, do “fenómeno” Berlusconi. Ao longo dos anos, por
estas e por outras razões, os tribunais têm adquirido grande notoriedade
pública em muitos países. O caso mais recente e talvez o mais dramático de
todos os que conheço é a Operação Lava Jato no Brasil.
Iniciada
em março de 2014, esta operação judicial e policial de combate à corrupção, em
que estão envolvidos mais de uma centena de políticos, empresários e gestores,
tem-se vindo a transformar a pouco e pouco no centro da vida política
brasileira. Ao entrar na sua 24ª fase, com a implicação do ex-presidente Lula
da Silva e com o modo como foi executada, está a provocar uma crise política de
proporções semelhantes à que antecedeu o golpe de Estado que em 1964 instaurou
a uma odiosa ditadura militar que duraria até 1985. O sistema judicial,
que tem a seu cargo a defesa e garantia da ordem jurídica, está transformado
num perigoso fator de desordem jurídica. Medidas judiciais flagrantemente
ilegais e inconstitucionais, a seletividade grosseira do zelo persecutório,
a promiscuidade aberrante com a mídia ao serviço das elites políticas
conservadoras, o hiper-ativismo judicial aparentemente anárquico, traduzido,
por exemplo, em 27 liminares visando o mesmo ato político, tudo isto conforma
uma situação de caos judicial que acentua a insegurança jurídica, aprofunda a
polarização social e política e põe a própria democracia brasileira à beira do
caos. Com a ordem jurídica transformada em desordem jurídica, com a democracia
sequestrada pelo órgão de soberania que não é eleito, a vida política e social
transforma-se num potencial campo de despojos à mercê de aventureiros e abutres
políticos. Chegados aqui, várias perguntas se impõem. Como se chegou a este
ponto? A quem aproveita esta situação? O que deve ser feito para salvar a
democracia brasileira e as instituições que a sustentam, nomeadamente os
tribunais? Como atacar esta hidra de muitas cabeças de modo a que de cada
cabeça cortada não cresçam mais cabeças? Procuro identificar neste texto algumas
pistas de resposta.
Como chegámos a
este ponto?
Por
que razão a Operação Lava Jato está a ultrapassar todos os limites da polémica
que normalmente suscita qualquer caso mais saliente de ativismo judicial?
Note-se que a semelhança com os processos Mãos Limpas na Itália tem sido
frequentemente invocada para justificar a notoriedade e o desassossego públicos
causado pelo ativismo judicial. Mas as semelhanças são mais aparentes do que
reais. Há, pelo contrário, duas diferenças decisivas entre as duas operações.
Por um lado, os magistrados italianos mantiveram um escrupuloso respeito pelo
processo penal e, quando muito, limitaram-se a aplicar normas que tinham sido
estrategicamente esquecidas por um sistema judicial conformista e conivente com
os privilégios das elites políticas dominantes na vida política italiana do
pós-guerra. Por outro lado, procuraram investigar com igual zelo os crimes de
dirigentes políticos de diferentes partidos políticos com responsabilidades
governativas. Assumiram uma posição politicamente neutra precisamente para
defender o sistema judicial dos ataques que certamente lhe seriam desferidos
pelos visados das suas investigações e acusações. Tudo isto está nos antípodas
do triste espetáculo que um setor do sistema judicial brasileiro está a dar ao
mundo. O impacto do ativismo dos magistrados italianos chegou a ser designado
por República dos Juízes. No caso do ativismo do setor judicial lava-jatista,
podemos falar, quando muito, de República judicial das bananas.
Porquê?
Pelo
impulso externo que com toda a evidência está por detrás desta específica
instância de ativismo judicial brasileiro e que esteve em grande medida ausente
no caso italiano. Esse impulso dita a escancarada seletividade do zelo
investigativo e acusatório. Embora estejam envolvidos dirigentes de vários
partidos, a Operação Lava Jato, com a conivência da mídia, tem-se esmerado na
implicação de líderes do PT com o objetivo, hoje indisfarçável, de
suscitar o assassinato político da Presidente Dilma Roussef e do ex-Presidente
Lula da Silva.
Pela
importância do impulso externo e pela seletividade da ação judicial que ele
tende a provocar, a Operação Lava Jato tem mais semelhanças com uma outra
operação judicial ocorrida na Alemanha, na República de Weimar, depois do
fracasso da revolução alemã de 1918. A partir desse ano e num contexto de
violência política provinda, tanto da extrema esquerda como da extrema
direita, os tribunais alemães revelaram um dualidade chocante de
critérios, punindo severamente a violência da extrema esquerda e tratando
com grande benevolência a violência da extrema direita, a mesma que anos
mais tarde iria a levar Hitler ao poder.
No
caso brasileiro, o impulso externo são as elites económicas e as forças
políticas ao seu serviço que não se conformaram com a perda das eleições
em 2014 e que, num contexto global de crise da acumulação do capital, se
sentiram fortemente ameaçadas por mais quatro anos sem controlar a parte
dos recursos do país diretamente vinculada ao Estado em que sempre
assentou o seu poder. Essa ameaça atingiu o paroxismo com a perspectiva de
Lula da Silva, considerado o melhor Presidente do Brasil desde 1988 e que
saiu do governo com uma taxa de aprovação de 80%, vir a postular-se como
candidato presidencial em 2018. A partir desse momento, a democracia
brasileira deixou de ser funcional para este bloco político conservador e
a desestabilização política começou. O sinal mais evidente da pulsão
anti-democrática foi o movimento pelo impeachment da Presidente Dilma
poucos meses depois da sua tomada de posse, algo, senão inédito, pelo
menos muito invulgar na história democrática das três últimas décadas.
Bloqueados na sua luta pelo poder por via da regra democrática das
maiorias (a “tirania das maiorias”), procuraram pôr ao seu serviço o órgão
de soberania menos dependente do jogo democrático e especificamente
desenhado para proteger as minorias, isto é, os tribunais. A Operação Lava
Jato, em si mesma uma operação extremamente meritória, foi o instrumento
utilizado. Contando com a cultura jurídica conservadora dominante no
sistema judicial, nas Faculdades de Direito e no país em geral, e com uma
arma mediática de alta potência e precisão, o bloco conservador tudo fez
para desvirtuar a Operação Lava Jata, desviando-a dos seus objetivos
judiciais, em si mesmos fundamentais para o aprofundamento democrático, e
convertendo-a numa operação de extermínio político. O desvirtuamento
consistiu em manter a fachada institucional da Operação Lava Jato mas
alterando profundamente a estrutura funcional que a animava por via da
sobreposição da lógica política à lógica judicial. Enquanto a lógica
judicial assenta na coerência entre meios e fins ditada pelas regras
processuais e as garantias constitucionais, a lógica política, quando
animada pela pulsão antidemocrática, subordina os fins aos meios, e é pelo
grau dessa subordinação que define a sua eficácia.
Em
todo este processo, três grandes fatores jogam a favor dos desígnios do
bloco conservador. O primeiro resultou da dramática descaracterização do
PT enquanto partido democrático de esquerda. Uma vez no poder, o PT
decidiu governar à moda antiga (isto é, oligárquica) para fins novos e
inovadores. Ignorante da lição da República de Weimar, acreditou que as
“irregularidades” que cometesse seriam tratadas com a mesma benevolência
com que eram tradicionalmente tratadas as irregularidades das elites e
classes políticas conservadoras que tinham dominado o país desde a
independência. Ignorante da lição marxista que dizia ter incorporado, não
foi capaz de ver que o capital só confia nos seus para o governar e que
nunca é grato a quem, não sendo seu, lhes faz favores. Aproveitando um
contexto internacional de excecional valorização dos produtos primários,
provocado pelo desenvolvimento da China,
incentivou os ricos a enriquecerem como condição para dispor dos
recursos necessários para levar a cabo as extraordinárias políticas de
redistribuição social que fizeram do Brasil um país substancialmente menos
injusto ao libertarem mais de 45 milhões de brasileiros da jugo endémico
da pobreza. Findo o contexto internacional favorável, só uma política “à
moda nova” poderia dar sustentação à redistribuição social, ou seja, uma
política que, entre muitas outras vertentes, assentasse na reforma
política para neutralizar a promiscuidade entre o poder político e o poder
económico, na reforma fiscal para poder tributar os ricos de modo a
financiar a
redistribuição social depois do fim do boom das commodities, e na reforma da mídia, não para censurar, mas
para garantir a diversidade da opinião publicada. Era, no entanto,
demasiado tarde para tanta coisa que só poderia ter sido feita em seu
tempo e fora do contexto de crise.
O segundo fator, relacionado com este, é a crise económica global e
o férreo controlo que tem sobre ela quem a causa, o capital
financeiro, entregue à sua voragem autodestrutiva, destruindo riqueza sob
o pretexto de criar riqueza, transformando o dinheiro, de meio de troca,
em mercadoria por excelência do negócio da especulação. A hipertrofia
dos mercados financeiros não permite crescimento económico e, pelo contrário, exige
políticas de austeridade por via dos quais os pobres são investidos
do dever de ajudar os ricos a manterem a sua riqueza e, se possível, a
serem mais ricos. Nestas condições, as precárias classes médias criadas no
período anterior ficam à beira do abismo de pobreza abrupta.
Intoxicadas pela mídia conservadora, facilmente convertem os governos
responsáveis pelo que são hoje em responsáveis pelo que lhes pode
acontecer amanhã. E isto é tanto mais provável quanto a sua viagem da
senzala para os pátios exteriores da Casa Grande foi realizada com o bilhete do
consumo e não com o bilhete da cidadania.
O
terceiro fator a favor do bloco conservador é o fato de o imperialismo
norte-americano estar de volta ao continente depois das suas aventuras
pelo Médio Oriente. Há cinquenta anos, os interesses imperialistas não
conheciam outro meio senão as ditaduras militares para fazer alinhar os
países do continente pelos seus interesses. Hoje, dispõem de outros meios
que consistem basicamente em financiar projetos de desenvolvimento local,
organizações não governamentais em que a defesa da democracia é a fachada
para atacar de forma agressiva e provocadora os governos progressistas
(“fora o comunismo”, “fora o marxismo”, “fora Paulo Freire”, “não somos a
Venezuela”, etc, etc.). Em tempos em que a ditadura pode ser dispensada se
a democracia servir os interesses económicos dominantes, e em que os
militares, ainda traumatizados pelas experiências anteriores, parecem
indisponíveis para novas aventuras autoritárias, estas formas de desestabilização
são consideradas mais eficazes porque permitem substituir governos
progressistas por governos conservadores mantendo a fachada democrática.
Os financiamentos que hoje circulam abundantemente no Brasil provêm de uma
multiplicidade de fundos (a nova natureza de um imperialismo mais difuso),
desde as tradicionais organizações vinculadas à CIA até aos irmãos Koch,
que nos
EUA financiam a política mais conservadora e que têm interesses sobretudo
no sector do petróleo, e às organizações evangélicas norteamericanas.
Como salvar a
democracia brasileira?
A
primeira e mais urgente tarefa é salvar o judiciário brasileiro do abismo
em que está a entrar. Para isso, o sector íntegro do sistema judicial, que
certamente é maioritário, deve assumir a tarefa de repor a ordem, a serenidade
e a contenção no interior do sistema. O princípio orientador é simples de
formular: a independência dos tribunais no Estado de direito visa permitir aos
tribunais cumprir a sua quota parte de responsabilidade na consolidação da
ordem e convivência democráticas. Para isso, não podem pôr a sua independência,
nem ao serviço de interesses corporativos, nem de interesses políticos
setoriais, por mais poderosos que sejam. O princípio é fácil de formular mas
muito difícil de aplicar. A responsabilidade maior na sua aplicação reside
agora em duas instâncias. O STF (Supremo Tribunal Federal) deve assumir o seu
papel de máximo garante da ordem jurídica e pôr termo à anarquia jurídica que
se está a instaurar. Muitas decisões importantes recairão sobre o STF nos
próximos tempos e elas devem ser acatadas por todos qualquer que seja o seu
teor. O STF é neste momento a única instituição que pode travar a dinâmica de
estado de exceção que está instalada. Por sua vez, o CNJ (Conselho Nacional de
Justiça), a quem compete o poder de disciplinar sobre os magistrados, deve
instaurar de imediato processos disciplinares por reiterada prevaricação e
abuso processual, não só ao juiz Sérgio Moro como a todos os outros que têm
seguido o mesmo tipo de atuação. Sem medidas disciplinares exemplares, o
judiciário brasileiro corre o risco de perder todo o peso institucional que
granjeou nas últimas décadas, um peso que, como sabemos, não foi sequer usado
para favorecer forças ou políticas de esquerda. Apenas foi conquistado mantendo
a coerência e a isonomia entre meios e fins.
Se
esta primeira tarefa for realizada com êxito, a separação de poderes será
garantida e o processo político democrático seguirá o seu curso. O governo
Dilma decidiu acolher Lula da Silva entre os seus ministros. Está no seu
direito de o fazer e não compete a nenhuma instituição, e muito menos ao
judiciário, impedi-lo. Não se trata de fuga à justiça por parte de um político
que nunca fugiu à luta, dado que será julgado (se esse for o caso) por quem
sempre o julgaria em última instância, o STF. Seria uma aberração jurídica
aplicar neste caso a teoria do “juiz natural da causa”. Pode, isso sim,
discordar-se do acerto da decisão política tomada. Lula da Silva e Dilma
Rousseff sabem que fazem uma jogada arriscada. Tanto mais arriscada se a
presença de Lula não significar uma mudança de rumo que tire às forças
conservadoras o controle sobre o grau e o ritmo de desgaste que exercem sobre o
governo. No fundo, só eleições presidenciais antecipadas permitiriam repor a
normalidade. Se a decisão de Lula-Dilma correr mal, a carreira de ambos terá
chegado ao fim, e a um fim indigno, e particularmente indigno para um político
que tanta dignidade devolveu a tantos milhões de brasileiros. Além disso, o PT
levará muitos anos até voltar a ganhar credibilidade entre a maioria da
população brasileira, e para isso terá de passar por um processo de profunda
transformação. Se correr bem, o novo governo terá de mudar urgentemente de
política para não frustrar a confianças dos milhões de brasileiros que estão a
vir para a rua contra os golpistas. Se o governo brasileiro quer ser ajudado
por tantos manifestantes, tem que os ajudar a terem razões para o ajudar. Ou
seja, quer na oposição, quer no governo, o PT está condenado a reinventar-se. E
sabemos que no governo esta tarefa será muito mais difícil.
A
terceira tarefa é ainda mais complexa, porque, nos próximos tempos, a
democracia brasileira vai ter de ser defendida tanto nas instituições como nas
ruas. Como nas ruas não se faz formulação política, as instituições terão a
prioridade devida mesmo em tempos de pulsão autoritária e de exceção
antidemocrática As manobras de desestabilização vão continuar e serão tanto
mais agressivas quanto mais visível for a fraqueza do governo e das forças que
o apoiam. Haverá infiltrações de provocadores tanto nas organizações e
movimentos populares como nos protestos pacíficos que realizarem. A vigilância
terá de ser total já que este tipo de provocação está hoje a ser utilizado em
muitos contextos para criminalizar o protesto social, fortalecer a repressão
estatal e criar estados de exceção, mesmo se com fachada de normalidade
democrática. De algum modo, como tem defendido Tarso Genro, o estado de exceção
está já instalado, de modo que a bandeira “Não vai ter golpe” tem de ser
entendida como denunciando o golpe político-judicial que já está em curso, um
golpe de tipo novo que é necessário neutralizar.
Finalmente,
a democracia brasileira pode beneficiar da experiência recente de alguns
países vizinhos.O modo como as políticas progressistas foram realizadas no
continente não permitiram deslocar para esquerda o centro político a
partir do qual se definem as posições de esquerda e de direita. Por isso,
quando os governos progressistas são derrotados, a direita chega ao poder
possuída por uma virulência inaudita apostada em destruir em pouco tempo
tudo o que foi construído a favor das classes populares no período
anterior. A direita vem então com um ânimo revanchista destinado a cortar
pela raiz a possibilidade de voltar a surgir um governo progressista no
futuro. E consegue a cumplicidade do capital financeiro internacional para
inculcar nas classes populares e nos excluídos a ideia de que
a austeridade não é uma política com que se possam defrontar; é um
destino a que têm de se acomodar. O governo de Macri na Argentina é um
caso exemplar a este respeito.
A
guerra não está perdida, mas não será ganha se apenas se acumularem
batalhas perdidas, o que sucederá se se insistir nos erros do passado.
domingo, 20 de março de 2016
Avistar árvores, mas não enxergar a floresta
Chega a ser um equívoco primário dissociar a atual crise brasileira de dois aspectos fundamentais: a questão geopolítica na América Latina e o debate econômico. No primeiro caso, já tivemos oportunidade aqui, mais de uma vez, de tratar do assunto. No segundo caso, trata-se de perceber que a sofrível versão de 'novo desenvolvimentismo' tentada pelos governos petistas foi 'emparedada' pela ortodoxia econômica neoclássica, servindo isso, como decorrência, de combustível para se empreender a liquidação do governo. Costumam repisar alguns historiadores econômicos, tendo em referência Hegel, que um dos problemas da ortodoxia neoclássica é 'avistar as árvores sem, contudo, enxergar a floresta'. Pois bem, entender a natureza do debate econômico, em conjunto com outras variáveis, é uma condição sine qua non para se compreender dimensões não explicitadas da atual crise brasileira. Nesse sentido, Gonzaga Belluzzo e Zahluth Bastos oferecem, aí abaixo, um pertinente contributo. O artigo é uma resposta a um texto dos economistas neoclássicos Carlos Eduardo Gonçalves e Marcos de Barros Lisboa.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo e
Pedro Paulo Zahluth Bastos
(Instituto de Economia da Unicamp)
Em novembro de 2008, a
rainha Elizabeth 2ª ousou fazer a pergunta que os sábios da London School of
Economics não queriam ouvir: por que nenhum previu a crise financeira de 2008?
A pergunta perturbava a ortodoxia neoclássica, e a comissão formada ofereceu à
rainha uma resposta singela: houve uma falha coletiva de "imaginação"
de economistas que viam árvores, mas não a floresta.
Mais
singela foi a resposta do presidente do Banco Central dos EUA entre 1987 e
2006, Alan Greenspan. Em depoimento à comissão do Senado para investigar a
crise, Greenspan admitiu que havia uma falha na "ideologia" e no
"modelo" que usava para interpretar o mundo. Nada mal para quem se
dedicara por anos à desmontagem dos controles à livre movimentação financeira
alegando que os "agentes racionais" do mercado usavam os modelos
econômicos corretos e asseguravam o melhor equilíbrio possível na determinação
dos preços e na alocação dos recursos.
Não
faltou imaginação à resposta do patrono da revolução neoclássica desde os anos
1970, Robert Lucas. Embora há anos defendesse que, se os agentes fossem
racionais, usariam as teorias dele (Lucas) para entender a estrutura da
economia e prever o futuro da melhor maneira possível, o patrono das
"expectativas racionais" escreveu em artigo na revista "The
Economist" em 2009: "A crise não foi prevista porque a teoria
econômica prevê que estes eventos não podem ser previstos". Ou seja, por
axioma (ou ideologia), os indivíduos são racionais, suas interações nos
mercados são eficientes e, portanto, a crise que aconteceu não poderia ser
prevista.
O
argumento que a probabilidade do que ocorreu, como calculou o Goldman Sachs,
era igual a de ganhar 22 vezes seguidas na loteria cobria de retórica
cientificista o fracasso em prever, ao menos, o movimento do sistema no sentido
da instabilidade e da crise. Não era por falta de experiência histórica: desde
1980, a desregulamentação financeira avançou e, com ela, a frequência e a
intensidade de crises que supostamente ocorreriam apenas três vezes na vida do
universo.
A
cada crise, os economistas neoclássicos não jogaram fora modelos teóricos sobre
os quais construíram tanto reputação acadêmica quanto laços rentáveis, bem
documentados, com instituições financeiras e "think tanks"
neoliberais. Eles simplesmente culparam alguns "desvios" da realidade
em relação ao modelo (desvios esses, aliás, "descobertos" ex-post). O
inferno é a realidade, não o modelo simplório.
Pior
para os economistas neoclássicos é que, além das personagens simpáticas do
filme "A Grande Aposta", não foram poucos os economistas heterodoxos
que previram a crise financeira, embora nenhum super-homem o tenha feito com o
nível de exatidão do agente representativo que povoa os modelos neoclássicos de
equilíbrio geral. O que explica o fracasso da ortodoxia em ver a floresta?
AXIOMA
O
principal elemento definidor da ortodoxia neoclássica é o axioma de indivíduos
racionais e maximizadores de utilidade, que interagem em livre concorrência
para alcançar um equilíbrio estável na circulação de bens e serviços. Embora
este indivíduo seja um axioma teórico não observado na realidade, é com base na
suposição de sua existência que os "desvios" observados na realidade
podem atrasar o equilíbrio geral ou gerar equilíbrios sub-ótimos: não há
imperfeição na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo teórico.
A
metafísica e a epistemologia da corrente dominante ocultam uma ontologia do
econômico que postula certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e
das conexões da "economia de mercado". Para este paradigma, a
"sociedade" onde se desenvolve a ação econômica é constituída pela
mera agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não
necessários ou estruturados pela sociedade.
Essa
visão se inspirou no paradigma da física clássica. Explicamos melhor este ponto
com a ajuda de Roy Bhaskar: se a concepção é atomística, então todas as causas
devem ser extrínsecas. E se os sistemas não dispõem de uma estrutura intrínseca
(isto é, esgotam-se nas propriedades atribuídas aos indivíduos que os compõem),
toda ação deve se desenvolver pelo contato. Os indivíduos
"atomizados" não são afetados pela ação e, portanto, ela deve se
resumir à comunicação das propriedades a eles atribuídas.
Assim,
os indivíduos maximizadores são partículas que jamais alteram suas propriedades
na interação com as outras partículas carregadas de "racionalidade".
Os fundamentos da teoria econômica dominante definem coerentemente o mercado
como um ambiente comunicativo cuja função é a de promover de modo mais
eficiente possível a circulação da informação relevante.
Essa
ontologia tem uma expressão metafísica e outra epistemológica. A metafísica
reivindica o caráter passivo e inerte da matéria e a causação é vista como um
processo linear e unidirecional, externo e inconsistente com a geração do novo,
ou seja, com a emergência que caracteriza a dinâmica dos sistemas complexos.
Na
versão epistemológica, reduto preferido do positivismo, os fenômenos são
apresentados como qualidades simples e independentes, apreendidas através da
experiência sensível. Nesse caso, a causalidade é vista como a concomitância
regular de eventos, que se expressa sob a forma de leis naturais, depois de
processada pelo sujeito do conhecimento capaz, então, de prever efeitos no
futuro.
Curioso
é que, inspirada na física clássica, a ortodoxia neoclássica parou no tempo e
não acompanhou a teoria dos sistemas complexos (ou do caos). A teoria da
complexidade foi anunciada no final do século 19 por Henri Poincaré ao estudar
a formação das órbitas dos planetas no Sistema Solar, mas foi redescoberta pelo
meteorologista e matemático Edward Lorenz em 1960.
Lorenz
descobriu que, com variações mínimas das condições iniciais (nunca capturadas
precisamente pelos modelos), o tempo evoluiria de modo a tornar qualquer
previsão inicial de pouco valor. Os erros e incertezas interagem, se
multiplicam e formam processos cumulativos. A complexidade do sistema exigiria,
mais do que uma previsão exata a partir de supostos iniciais irreais, que se
proceda com base em um escrutínio profundo das condições iniciais e do modo
como a estrutura do sistema vai se modificando, chegando por aproximações
sucessivas aos cenários possíveis da evolução a partir de um arco inicial de
trajetórias potenciais.
A
irreversibilidade do tempo histórico e a dependência do sistema em relação à
sua trajetória são elementos centrais da física do século 20. Em "Entre le
Temps et l'Eternité" (entre o tempo e a eternidade), Ilya Prigogine e
Isabelle Stengers mostram que as fenomenologias descritas pela termodinâmica,
pela física das partículas e pela teoria da relatividade "não só afirmam a
seta do tempo, mas também nos conduzem a compreender um mundo em evolução, um
mundo onde a 'emergência do novo' reveste um significado irreversível (...) O
ideal da razão suficiente supunha a possibilidade de definir a causa e o
efeito, entre os quais uma lei de evolução estabeleceria uma equivalência reversível".
Ao
manter o paradigma atomista, a ortodoxia neoclássica perde capacidade de
explicar e, portanto, prever comportamentos emergentes de um sistema complexo
como a economia capitalista. Em "Decoding Complexity" (decodificando
a complexidade), James Glattfelder escreve com rigor: "A característica
dos sistemas complexos é que o todo exibe propriedades que não podem ser
deduzidas das partes individuais. Em suma, a teoria da complexidade trata de
investigar como o comportamento macro decorre da interação entre os elementos
do sistema".
Ao
encontrar problemas de agregação insolúveis na tentativa de reduzir
propriedades do sistema a propriedades dos indivíduos, a macroeconomia
neoclássica reage não para incorporar a complexidade da realidade, mas para
simplificar axiomas fundamentais ainda mais. Quando se demonstrou
matematicamente que, dada a heterogeneidade dos indivíduos, não é possível
prever o formato da função de demanda agregada e, muito menos, gerar uma função
de demanda agregada com o formato propício para o equilíbrio maximizador, os
neoclássicos preferiram a simplificação absurda: que o sistema pode ser
modelado como se tivesse um único agente representativo que compra, vende,
trabalha, contrata, consome e poupa, empresta e toma emprestado, que tem um
único modelo sobre como a realidade funciona e que conhece a distribuição de
probabilidade de todas as contingências futuras.
Inconsistências
de agregação semelhantes para a teoria do capital ou para a curva de oferta
agregada foram simplesmente desconsideradas. O método não trata da abstração da
complexidade para reter seus aspectos essenciais, mas da eliminação da
complexidade para manter a ficção reducionista e simplória do equilíbrio entre
indivíduos maximizadores.
JUÍZOS
DE VALOR
Tamanho
apego da teoria neoclássica ao reducionismo da física clássica e ao axioma do
indivíduo atomizado é impregnado por juízos de valor. Herda a previsão feita
por Adam Smith e radicalizada pelo modelo de equilíbrio geral que, mantidos
livres em sua interação, os indivíduos alcançariam um equilíbrio estável e
maximizador, orientados pelo sistema de preços para alocar recursos escassos.
O
indivíduo maximizador é tomado como um elemento natural e eterno cujas
preferências mudam exogenamente ao sistema de interações. As interações têm
sempre o mesmo modelo e não são afetadas pela irreversibilidade da história e
por mudanças estruturais que caracterizam a complexidade social.
Tal
complexidade é o principal elemento unificador das heterodoxias econômicas. Ao
invés de reduzir a ação a um indivíduo representativo, os indivíduos são
classificados e posicionados em uma estrutura que os divide como sujeitos
sociais cuja harmonia não pode ser pressuposta: trabalhadores e capitalistas,
empresários, banqueiros e rentistas. A estrutura é assimétrica pois certos
indivíduos controlam a riqueza, mas é mutável e interage com estratégias de
organizações empresariais, classes e grupos sociais, Estados e sistemas
econômicos nacionais que têm poder desigual e que não podem ser previstas.
Instituições
e convenções sociais podem conferir uma estabilidade transitória ao sistema,
mas processos de causação cumulativa (feedbacks positivos) o afastam do
equilíbrio e geram uma dinâmica instável, sujeita à irreversibilidade
histórica. Assim, problemas de coordenação em condições de incerteza impedem a
maximização no uso dos recursos ociosos e podem até mesmo provocar crises
duradouras.
Concordamos
com Marc Lavoie de que são pelo menos sete as falácias de composição que, como
propriedades emergentes do sistema capitalista, a ortodoxia não é capaz de
compreender e prever. O paradoxo da poupança é o mais conhecido: se todos os
agentes buscarem poupar ao mesmo tempo, a queda de suas receitas frustra seus
objetivos e pode provocar falências e até crises financeiras.
A
recente adesão neoclássica à doutrina da austeridade expansionista mostra que
pouco se aprendeu com a complexidade da crise financeira. No Brasil, a ideia de
que o aumento da poupança pública animaria o gasto privado e geraria
crescimento da arrecadação tributária estava na base da expectativa de mercado
que a economia cresceria 0,8% em 2015, depois que Joaquim Levy anunciou seu
programa. Já Levy previu que seu programa geraria uma "recessão de um
trimestre", antes de persistir em um esforço fiscal que foi o dobro do que
propusera, com resultados desastrosos.
Não
há receita simples para o economista do século 21, mas Keynes propunha combinar
os talentos complexos do "matemático, historiador, estadista e filósofo
(na medida certa). Deve entender os aspectos simbólicos e falar com palavras
correntes. Deve ser capaz de integrar o particular quando se refere ao geral e
tocar o abstrato e o concreto com o mesmo voo do pensamento. Deve estudar o
presente à luz do passado e tendo em vista o futuro. Nenhuma parte da natureza
do homem deve ficar fora da sua análise. Deve ser simultaneamente
desinteressado e pragmático: estar fora da realidade e ser incorruptível como
um artista, estando embora, noutras ocasiões, tão perto da terra como um
político".
Talvez
seja uma receita para o economista do século 21, avessa aos que insistem em
imitar os cientistas naturais dos séculos 17 a 19.
_____________________________
Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 20/03/2016.
quinta-feira, 17 de março de 2016
'Tudo que é solido desmancha no ar'
O texto aí abaixo foi publicado como parte de um trabalho que apresentei na Universidade de Paris X - Sorbonne. Incursiona pela dialética das venturas e desventuras do ser social, tendo no horizonte a ontologia do trabalho e a busca por um cotidiano cheio de sentido. Talvez, para muitos que hoje, no Brasil, estão estupefatos com a dimensão que a crise política atingiu, tenha faltado compreender exatamente essa perspectiva da dialética histórica: o movimento é uma dimensão central da história, as suas águas são agitadas, e não perceber isso significa expor-se à ação das suas quilhas.
Ivonaldo Leite
La notion de rapport salarial
est une composante de la base théorique elaborée par les auteurs de la théorie
de la régulation. Le rapport salarial est une des formes institutionnelles qui
peuvent induire un mode de régulation.
C’est-à-dire, les formes
institutionnelles sont un ensemble de principes qui permettent surmonter, par
quelque période, le conflit entre l’expansion des capacités de production et
l’obstruction de l’expansion de la consommation causée par la pression concorrencielle
sur les salaires. Donc elles sont dans la base des régularités qui assurent la
reproduction d’un régime d’ acumulation.
Par exemple, aprés la
Seconde Guerre, celles-ci ont rendu possible établir un mode de régulation, sous le fordisme, qui serait responsable par un
régime avec accumulation
intensive et consommation de masse. Donc une situation
différente quand comparée avec celle antérieur aux anées dix-neuf-cent
quarante, où la transformation des conditions de production étais en
contradiction avec la faible progression du revenu salarial et la réduite
intégration des travailleurs dans la reproduction de l’ensemble du système
économique. Alors on avait une situation caractérisée par un régime d’accumulation intensive sans consommation de masse, et donc on avait aussi des problèmes de
réalisation du capital. C’est l’origine de la crise des anées dix-neuf-cent
trente, qu’a été outrepassée par l’invention de nouvelles formes
institutionelles responsables surtout par une correspondance entre la croissance
de la production et l’expansion de la consommation. Celle-ci la base général
des trente glorieuses anées fordistes. Les formes institutionnelles sont cinq: les
formes de la concurrence; les formes de la contrainte monétaire;les formes de
l’État; les modalités d’adhésion au régime international; le rapport
salarial.
Comme notre intérêt, ici, est
le concept du rapport salarial, c’est important dire qu’il désigne le processus
de socialisation de l’activité de production, à savoir le salariat. Une forme
du rapport salarial se défine par l´ensemble des conditions juridiques et institutionnelles qui régissent l´usage du travail
salarié comme le monde d´existence des traveilleurs. D’autre part, la notion de relation salariale correspond à la projection de ce concept au niveau
et dans les catégories spécifiques. Donc cet approche s’oppose au psychologisme
individualiste. Elle ouvre un vaste champ d’étude, celui de la construction
historique et économique du social, de ses institutions et de ses acteurs
collectifs
Analytiquement, on peut
décrire, par exemple, les composantes suivantes du rapport salarial : L’organisation du procès de travail; les modalités
de mobilisation et de liaison des salariés au lieu de travail; la formation du
revenu salarial (direct et indirect); le type de moyens de production ; le
mode de vie salarié (mode de consommation).
Alors, pour avoir succès, un
rapport salarial demande une double validation. C’est une validation qui croise
reproduction économique et reproduction social, car il ne peut pas être réduit
à un rapport contractuel entre l’employeur et le salarié, ni à un simple
rapport de domination hiérarchique.
quarta-feira, 16 de março de 2016
A crise, os generais, os exércitos e os cenários
Por Alo Fornaziere
(Escola de Sociologia e Política de São Paulo)
Preâmbulo
Para usar uma analogia militar para
entender a crise atual, pode-se dizer
que o ex-presidente Lula é um general com parte do exército desorganizada e
parte em franca deserção. O principal problema dele é que não tem um Estado
Maior. Nenhum general vence guerras sem Estado Maior. No governo não há Estado
Maior. Há mais de um ano em crise, o governo nunca organizou um comitê de
crise. Os ministros da casa não contam. Podem dizer uma coisa ou outra e Dilma
faz o que quer. A desorganização é total. O PT não comanda mais nada. A
militância não acredita na direção. Também não há um comando estratégico no
partido para enfrentar a crise. Não há definições táticas, estratégicas,
defesas, forças de ataque, nada.
A oposição é constituída por um grupo
de generais e oficiais sem exércitos. Diante desta monumental crise, a
oposição nunca foi capaz de convocar um ato. Sempre foi a reboque de forças
alheias. Generais da oposição não são bem vistos pelas tropas que se mobilizam
nas ruas. No domingo expulsaram Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Marta Suplicy da
Avenida Paulista. Já os manifestantes nas ruas se comportam como tropas
anárquicas que não querem saber do comando de generais. Parecem querer um
ditador. De preferência, Sérgio Fernando Moro, um juiz de primeira instância alçado
à condição de juiz universal e salvador da pátria. Agora, acreditar que de
grupos como o MBL e assemelhados possa surgir líderes significativos significa
acreditar na inviabilidade eterna do Brasil.
O PMDB, por sua vez, se comporta como
uma frente de caudilhos mercenários desunidos, mas que só é capaz de se unir
para dar o bote final. Se une para o assalto da cidadela do Planalto. Feito o
assalto, os caudilhos voltarão às suas divisões tradicionais. O que interessa
são cargos, recursos, negociatas, poder. É a política como meio puro, sem
causas e sem fins.
As manifestações de domingo
complicaram uma saída para a crise. Se não serve Aécio, Temer serve menos
ainda. Se vier a assumir, sua cabeça será pedida, assim como a de Renan
Calheiros, de Cunha e de outros caciques. Se a Lava Jato parar ante a
possibilidade de um novo governo, será sua desmoralização, o fim do juiz herói.
A fúria devastadora das massas desordenadas quer uma limpeza completa. Se vier
uma eleição para presidente, a chance de um aventureiro ou de um outiser triunfar é muito grande. Essa crise tem sinais de que será
prolongada.
Os Cenários Insatisfatórios
Todos os cenários de solução da crise
parecem insatisfatórios. Se Dilma continuar, seu governo continuará se
arrastando até 2018. Aniquilaria qualquer chance do PT e de Lula. A entrada de
Lula, neste momento, no governo confere-lhe o risco de naufragar em definitivo
junto com o próprio governo. Um abraço de afogados. Para o PT, a única tábua de
salvação consiste em tentar salvar Lula para 2018. Mas como? Com a renúncia de
Dilma? Talvez. Dilma poderia construir uma boa peça política que justificasse a
renúncia. Para os prefeitos do PT que concorrem à reeleição e para os futuros
candidatos a prefeitos, a renúncia rápida seria a melhor saída. Dar-lhes-ia
tempo para se recomporem, o PT passaria à oposição enfrentando um governo
marcado pela ilegitimidade e com grave crise econômica e social para enfrentar.
As perspectivas do PT são difíceis e
ambíguas. Do ponto de vista das eleições de 2016, a solução mais plausível é a
renúncia de Dilma. Do ponto de vista da recomposição das forças sociais, o
melhor é enfrentar o processo de impeachment. Haveria lutas, aglutinação de
forças, munição para o combate. Mas o encavalamento de processo de impeachment com
eleições municipais pode ser devastador para os candidatos petistas.
A oposição não está em situação
melhor. Se Temer assumir, terá a marca da ilegitimidade, terá o PT e os
movimentos sociais como oposição e as massas pró-impeachement ser-lhes-ão
hostis. Terá que adotar medidas duríssimas, circunstância que desencadeará
protestos de todo tipo. Temer não é Itamar. Itamar tinha a complacência de
todos. Temer não terá a complacência de ninguém. Collor não tinha forças
sociais. O PT ainda exerce influência sobre as forças sociais mais organizadas
do país. A crise continuará.
Se vierem novas eleições, Aécio Neves
deverá ser o candidato do PSDB. Tem várias citações na Lava Jato. Foi chamado
de “oportunista” e corrupto na Avenida Paulista. O risco de vencer uma Marina
Silva, um Ciro Gomes ou um aventureiro qualquer é grande.
O semipresidencialismo de Renan
Calheiros é uma não solução. Que legitimidade teria um Congresso corrupto, com
Eduardo Cunha e Renan afundados até o pescoço nas denúncias, de indicar um
primeiro-ministro? Um Congresso que tem dezenas de deputados denunciados e 12
senadores investigados. Poderia ser implantado o semipresidencialismo ou
semiparlamentarismo sem um referendo popular? Sem um referendo seria visto como
um golpe, como uma remissão a 1961.
Uma Crise Complexa
A atual crise é como um jogo de
xadrez sendo jogado em quatro tabuleiros. Num dos tabuleiros só jogam o juiz
Moro, o Ministério Público, a Polícia Federal e o STF. Este é o jogo do
imponderável, do incontrolável. Esses jogadores têm o poder de desorganizar o
jogo de todos os outros tabuleiros. É um jogo que atormenta o sono do governo e
da oposição, de Lula e de Aécio Neves, de Dilma e de Eduardo Cunha, de Renan
Calheiro e de Temer.
Preâmbulo
Para usar uma analogia militar para
entender a crise atual, pode-se dizer
que o ex-presidente Lula é um general com parte do exército desorganizada e
parte em franca deserção. O principal problema dele é que não tem um Estado
Maior. Nenhum general vence guerras sem Estado Maior. No governo não há Estado
Maior. Há mais de um ano em crise, o governo nunca organizou um comitê de
crise. Os ministros da casa não contam. Podem dizer uma coisa ou outra e Dilma
faz o que quer. A desorganização é total. O PT não comanda mais nada. A
militância não acredita na direção. Também não há um comando estratégico no
partido para enfrentar a crise. Não há definições táticas, estratégicas,
defesas, forças de ataque, nada.
A oposição é constituída por um grupo
de generais e oficiais sem exércitos. Diante desta monumental crise, a
oposição nunca foi capaz de convocar um ato. Sempre foi a reboque de forças
alheias. Generais da oposição não são bem vistos pelas tropas que se mobilizam
nas ruas. No domingo expulsaram Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Marta Suplicy da
Avenida Paulista. Já os manifestantes nas ruas se comportam como tropas
anárquicas que não querem saber do comando de generais. Parecem querer um
ditador. De preferência, Sérgio Fernando Moro, um juiz de primeira instância alçado
à condição de juiz universal e salvador da pátria. Agora, acreditar que de
grupos como o MBL e assemelhados possa surgir líderes significativos significa
acreditar na inviabilidade eterna do Brasil.
O PMDB, por sua vez, se comporta como
uma frente de caudilhos mercenários desunidos, mas que só é capaz de se unir
para dar o bote final. Se une para o assalto da cidadela do Planalto. Feito o
assalto, os caudilhos voltarão às suas divisões tradicionais. O que interessa
são cargos, recursos, negociatas, poder. É a política como meio puro, sem
causas e sem fins.
As manifestações de domingo
complicaram uma saída para a crise. Se não serve Aécio, Temer serve menos
ainda. Se vier a assumir, sua cabeça será pedida, assim como a de Renan
Calheiros, de Cunha e de outros caciques. Se a Lava Jato parar ante a
possibilidade de um novo governo, será sua desmoralização, o fim do juiz herói.
A fúria devastadora das massas desordenadas quer uma limpeza completa. Se vier
uma eleição para presidente, a chance de um aventureiro ou de um outiser triunfar é muito grande. Essa crise tem sinais de que será
prolongada.
Os Cenários Insatisfatórios
Todos os cenários de solução da crise
parecem insatisfatórios. Se Dilma continuar, seu governo continuará se
arrastando até 2018. Aniquilaria qualquer chance do PT e de Lula. A entrada de
Lula, neste momento, no governo confere-lhe o risco de naufragar em definitivo
junto com o próprio governo. Um abraço de afogados. Para o PT, a única tábua de
salvação consiste em tentar salvar Lula para 2018. Mas como? Com a renúncia de
Dilma? Talvez. Dilma poderia construir uma boa peça política que justificasse a
renúncia. Para os prefeitos do PT que concorrem à reeleição e para os futuros
candidatos a prefeitos, a renúncia rápida seria a melhor saída. Dar-lhes-ia
tempo para se recomporem, o PT passaria à oposição enfrentando um governo
marcado pela ilegitimidade e com grave crise econômica e social para enfrentar.
As perspectivas do PT são difíceis e
ambíguas. Do ponto de vista das eleições de 2016, a solução mais plausível é a
renúncia de Dilma. Do ponto de vista da recomposição das forças sociais, o
melhor é enfrentar o processo de impeachment. Haveria lutas, aglutinação de
forças, munição para o combate. Mas o encavalamento de processo de impeachment com
eleições municipais pode ser devastador para os candidatos petistas.
A oposição não está em situação
melhor. Se Temer assumir, terá a marca da ilegitimidade, terá o PT e os
movimentos sociais como oposição e as massas pró-impeachement ser-lhes-ão
hostis. Terá que adotar medidas duríssimas, circunstância que desencadeará
protestos de todo tipo. Temer não é Itamar. Itamar tinha a complacência de
todos. Temer não terá a complacência de ninguém. Collor não tinha forças
sociais. O PT ainda exerce influência sobre as forças sociais mais organizadas
do país. A crise continuará.
Se vierem novas eleições, Aécio Neves
deverá ser o candidato do PSDB. Tem várias citações na Lava Jato. Foi chamado
de “oportunista” e corrupto na Avenida Paulista. O risco de vencer uma Marina
Silva, um Ciro Gomes ou um aventureiro qualquer é grande.
O semipresidencialismo de Renan
Calheiros é uma não solução. Que legitimidade teria um Congresso corrupto, com
Eduardo Cunha e Renan afundados até o pescoço nas denúncias, de indicar um
primeiro-ministro? Um Congresso que tem dezenas de deputados denunciados e 12
senadores investigados. Poderia ser implantado o semipresidencialismo ou
semiparlamentarismo sem um referendo popular? Sem um referendo seria visto como
um golpe, como uma remissão a 1961.
Uma Crise Complexa
A atual crise é como um jogo de
xadrez sendo jogado em quatro tabuleiros. Num dos tabuleiros só jogam o juiz
Moro, o Ministério Público, a Polícia Federal e o STF. Este é o jogo do
imponderável, do incontrolável. Esses jogadores têm o poder de desorganizar o
jogo de todos os outros tabuleiros. É um jogo que atormenta o sono do governo e
da oposição, de Lula e de Aécio Neves, de Dilma e de Eduardo Cunha, de Renan
Calheiro e de Temer.
O outro tabuleiro é o Congresso. Ali
se trava a batalha principal do impeachment. Seja qual for o resultado, o
desfecho será dramático. Deixará feridas sangrentas. Os ganhadores de hoje
podem ser os perdedores de amanhã. O terceiro tabuleiro é o governo. Quase
ninguém mais quer jogar nesse tabuleiro. O PMDB quer sair desse jogo. O PT
também. A rigor, o PT não apoia mais o governo. Apoiar um governo significa
dar-lhe sustentação no Congresso, apoiar suas políticas. O PT já não está
fazendo isto. Dilma é uma jogadora cada vez mais solitária.
O quarto tabuleiro está nas ruas, nos
ambientes de trabalho, nas redes sociais. O jogo é emocionante. Movido a
paixões e ódios. As massas enfurecidas do impeachment e do combate à corrupção
contam com o apoio de decisões politicamente orientadas da Lava Jato. As forças
de esquerda tendem a se aglutinar muito mais em torno de Lula do que do
governo. Olham mais para o futuro do que para o presente.
As massas, como diria o velho Hegel,
aqui sim, o filósofo alemão Hegel dos “Princípios da Filosofia do Direito”, as
massas são confusas. Nelas está a verdade e o erro infinito. Defendem o
essencial do bem comum, mas quando julgam podem produzir desastres. São
facilmente enganadas por demagogos. Podem escrever jornadas glorificantes ou
soluções cujos efeitos maléficos perdurem décadas.
Os políticos do governo e da
oposição, do PT e do PSDB, deveriam negociar uma saída olhando para o Brasil,
tendo como referência o que as massas querem. A saída terá que ser política. E
a política requer negociação. Produzir vitoriosos e derrotados neste momento
prolongará a crise. Há que se encontrar uma solução tampão para que a
democracia se depure no tempo, pelos seus mecanismos legítimos. Mas, neste
momento, faltam lideranças, falta bom senso e sobra oportunismo de um lado e
desespero de outro.
O outro tabuleiro é o Congresso. Ali
se trava a batalha principal do impeachment. Seja qual for o resultado, o
desfecho será dramático. Deixará feridas sangrentas. Os ganhadores de hoje
podem ser os perdedores de amanhã. O terceiro tabuleiro é o governo. Quase
ninguém mais quer jogar nesse tabuleiro. O PMDB quer sair desse jogo. O PT
também. A rigor, o PT não apoia mais o governo. Apoiar um governo significa
dar-lhe sustentação no Congresso, apoiar suas políticas. O PT já não está
fazendo isto. Dilma é uma jogadora cada vez mais solitária.
O quarto tabuleiro está nas ruas, nos
ambientes de trabalho, nas redes sociais. O jogo é emocionante. Movido a
paixões e ódios. As massas enfurecidas do impeachment e do combate à corrupção
contam com o apoio de decisões politicamente orientadas da Lava Jato. As forças
de esquerda tendem a se aglutinar muito mais em torno de Lula do que do
governo. Olham mais para o futuro do que para o presente.
As massas, como diria o velho Hegel,
aqui sim, o filósofo alemão Hegel dos “Princípios da Filosofia do Direito”, as
massas são confusas. Nelas está a verdade e o erro infinito. Defendem o
essencial do bem comum, mas quando julgam podem produzir desastres. São
facilmente enganadas por demagogos. Podem escrever jornadas glorificantes ou
soluções cujos efeitos maléficos perdurem décadas.
Os políticos do governo e da
oposição, do PT e do PSDB, deveriam negociar uma saída olhando para o Brasil,
tendo como referência o que as massas querem. A saída terá que ser política. E
a política requer negociação. Produzir vitoriosos e derrotados neste momento
prolongará a crise. Há que se encontrar uma solução tampão para que a
democracia se depure no tempo, pelos seus mecanismos legítimos. Mas, neste
momento, faltam lideranças, falta bom senso e sobra oportunismo de um lado e
desespero de outro.
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Fonte: http://jornalggn.com.br/