terça-feira, 30 de junho de 2015

'Sozinho com o universo inteiro'


Álvaro de Campos

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, 
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro andar...
Não oiço já passos no segundo andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir...

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! —
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me...
O som de um portão que se fecha brusco dóí-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma... 
Qualquer coisa. 

Drama grego


Por Clovis Rossi

O medo de que a Grécia se veja obrigada a abandonar o euro, o que jogaria a Europa em território desconhecido, levou lideranças europeias a entrar de peito aberto na campanha para o plebiscito de domingo, 5, em que os gregos decidirão se aceitam o pacote proposto pelos credores.
"Um voto 'não' significaria que a Grécia está dizendo não à Europa", decretou, por exemplo, Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, o braço executivo do conglomerado europeu.
Por que a Europa teme a saída da Grécia, se representa só 2% da economia europeia?
Primeiro, porque seria entrar "em território desconhecido", como disse ao "Financial Times" o analista Huw Pill, da Goldman Sachs.
Segundo: as consequências político-institucionais de levar a Grécia à quebra seriam potencialmente tão dramáticas quanto as econômicas.
Diz, por exemplo, Dimitar Bechev, pesquisador visitante do Instituto Europeu da London School of Economics: "A saída da Grécia provaria que a integração europeia é reversível e não conduz à convergência em prosperidade e padrões de governança".

FRONTEIRA SENSÍVEL
Emenda Thanos Dokos, da Fundação Helênica para Política Europeia e Externa: "A Grécia tem uma das fronteiras externas mais sensíveis da UE, no contexto da imigração [a outra grande tragédia contemporânea para a Europa]. O gerenciamento da fronteira estaria além da capacidade de um país em bancarrota".
Por isso, a liderança europeia pede o voto "sim" ao pacote por ela apresentado aos gregos, que impõe austeridade adicional em troca de socorro financeiro, sem o qual os bancos gregos quebram.
O eleitorado terá que decidir, no domingo, se dói mais a navegação por território desconhecido ou a austeridade, cujos resultados, estes sim, são conhecidos.
A OCDE, o clubão dos países mais industrializados, em seu relatório de meio de ano, informa que o PIB grego em 2014 (sem austeridade adicional) só crescerá 0,1% (detalhe: a avaliadora de risco S&P prevê queda de 3%); que a dívida pública ficará em 185% do PIB (estava, no fim de 2014, em 175%); e que o desemprego continuará na escandalosa casa dos 25% (mais exatamente 25,7%).
É com base nesses números que o premiê Alexis Tsipras pede o "não", com o que aprofunda o confronto com os europeus. Mas ele também não sabe se, caso sua posição seja aprovada pelo eleitorado, os números não se tornarão ainda mais tenebrosos.
Chegou-se, pois, a uma situação na qual não haverá ganhadores claros, vença o "sim" ou o "não".

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/224504-medo-de-territorio-desconhecido-faz-ue-entrar-na-campanha-do-plebiscito.shtml

domingo, 28 de junho de 2015

Todas as coisas e surrealismo


Grécia, Syriza e o sentido de ter posições


Tenho acompanhado a conjuntura grega desde já há algum tempo, mas não tenho hipótese de, por agora, pelas vicissitudes de tempo, fazer a devida análise da situação que se esboça na Grécia. Há alguns anos, em conversa com o Prof.  Harris Athanasiades, em um evento no Chipre grego, percebi, a um só tempo, o tom de interesse no projeto da União Europeia, mas também as dúvidas. Os anos passaram, e as dúvidas disseram da sua razão de ser. A Grécia conheceu, de fato, a tragédia, com governos associados aos interesses do comissariado europeu. Imagine o que significa milhares e milhares de pessoas, de repente, não terem mais energia elétrica, porque não podem pagar as contas! Pois bem, foi o que se passou na Grécia. Denunciando essa situação, chegou ao poder o Syriza, comandado pelo jovem Aléxis Tsípras, liderança que emergiu nas manifestações estudantis e se revelou como um governante de posições e coerente. O que deseja Tsípras? Que os gregos não sejam ainda mais jogados na humilhação e no empobrecimento pelas políticas de "austeridade" da União Europeia, patrocinadas pela Alemanha e com o apoio francês e de outras nações. Deseja Tsípras uma (re)negociação, até onde for possível essa expressão, digna da dívida grega. A Europa bateu-lhe a porta - nem um plebiscito ao povo grego aceita sobre as condições da (re)negociação. O resultado: a crise no país tende a se aprofundar. Por que isso? Ora, o que está em causa, da parte dos mandatários de Bruxelas (onde está o comissariado europeu), não é a (re)negociação da dívida grega, mas o aniquilamento do próprio Syriza e de Tsípras, por sua ousadia. Com a ironia como arma da crítica, é de se dizer: que as bruxas de Bruxelas (veja-se a história sobre isso) façam alguma coisa! Ou então é esperar como reagirá o bloco Rússia-China - com alguma perspectiva de apoio para a Grécia - e a disposição de resistência do povo grego. Ou, por fim, esperar os desígnios dos deuses do Olimpo. 

Cérebro, emoções e sentimentos

Vai aí mais uma instigante entrevista do consagrado neurocientista António Damásio, da University of Southern Califórnia, em Los Angeles/EUA. Faz um balanço da sua investigação, com correções em parte de suas perspectivas, e foca na discussão sobre a especificidade das relações entre cérebro, emoções e sentimentos, sem deixar de ter em conta os condicionamentos sociais. Qual o modo adequado de decidirmos algo? Como pensamos melhor? Seguindo o embalo da permanente movimentação? Calma, recomenda Damásio, pois a euforia e, depreende-se, o afobamento embaralham o pensamento. Segue a entrevista. 

António Damásio: busca de equilíbrio para o  raciocínio

Na introdução de seu último livro, O Cérebro criou o Homem, o senhor diz que acabou se desapontando com algumas de suas abordagens ao longo do tempo e decidiu começar seu trabalho de novo. Quais foram as descobertas que o levaram a repensar sua pesquisa? Ao longo desses anos todos, o estudo sobre a estrutura do cérebro avançou muito e ajudou a entender melhor certas operações, como a memória e a consciência. Além disso, por meio das minhas pesquisas pude perceber a importância das emoções e dos sentimentos na construção do nosso raciocínio. Para ter o que chamamos de consciência básica é preciso ter sentimentos. Isto é, é preciso que o cérebro seja capaz de representar aquilo que se passa no corpo e fora dele de uma forma muito detalhada. É daí que nasce a rocha sobre a qual a mente forma sua base e se edifica.
O que é a mente? Ela é uma sucessão de representações criadas através de sistemas visuais, auditivos, táteis e, muito frequentemente, das informações fornecidas pelo próprio corpo sobre o que está acontecendo com ele - quais músculos estão se contraindo, em que ritmo o coração está batendo e assim por diante. Em resumo: a mente é um filme sobre o que se passa no corpo e no mundo a sua volta.
Qual a diferença entre emoção e sentimento? A emoção é um conjunto de todas as respostas motoras que o cérebro faz aparecer no corpo em resposta a algum evento. É um programa de movimentos como a aceleração ou desaceleração do batimento do coração, tensão ou relaxamento dos músculos e assim por diante. Existe um programa para o medo, um para a raiva, outro para a compaixão etc. Já o sentimento é a forma como a mente vai interpretar todo esse conjunto de movimentos. Ele é a experiência mental daquilo tudo. Alguns sentimentos não têm a ver com a emoção, mas sempre têm a ver os movimentos do corpo. Por exemplo, quando você sente fome, isso é uma interpretação da mente de que o nível de glicose no sangue está baixando e você precisa se alimentar.
O senhor diz que as emoções desempenham um papel muito importante no desenvolvimento do raciocínio e na tomada de decisões. Que papel é esse? Há certas decisões que são evidentemente feitas pela própria emoção. Quando há uma situação de medo, ele aconselha um entre dois tipos de decisão: correr para longe do perigo ou permanecer quieto para não ser notado. Há também decisões muito mais complexas, como, por exemplo, aceitar ou não um convite para jantar. Nesse caso, a emoção tem um papel de primeiro conselheiro, um primeiro indicador do que se deve fazer. Você pode querer ir, mas ao mesmo tempo há qualquer coisa no comportamento da pessoa que o faz desconfiar de que ela pode não ser sincera. E o que é isto? É uma reação emotiva, a emoção participando da sua decisão.
Então é a emoção que nos fornece o que chamamos popularmente de instinto ou sexto sentido?Instinto é uma palavra que deve ser reservada para certas coisas muito fundamentais, como o instinto sexual ou de alimentação. Eu diria que a emoção fornece incentivos. As emoções, quer as positivas quer as negativas, podem ter uma enorme influência naquilo que nós pensamos. Mesmo as pessoas que se dizem muito racionais não podem separar as duas coisas. Por exemplo: imaginemos que um chefe esteja entrevistando uma pessoa para uma vaga. O currículo da pessoa é ótimo e as referências também, mas algo diz que ela não vai dar certo na empresa. Esse 'algo me diz' é a emoção falando. Algo no comportamento dessa pessoa evoca uma emoção negativa que leva o chefe a ficar com um pé atrás.
O que pode causar essa desconfiança? O ser humano avalia uma outra pessoa principalmente pela voz e pela expressão facial dela. Assim, a forma como a pessoa olha para você pode parecer insolente; ou um jeito de mexer a boca faz parecer que ela não é sincera.
Se toda a nossa percepção do mundo é afetada pela emoção, como podemos confiar nos nossos julgamentos? As emoções foram extremamente bem sucedidas, ao longo da evolução, em nos manter vivos. O medo fez com que nos expuséssemos menos ao perigo e tivéssemos mais chance de sobreviver. A alegria nos deu incentivo para fazer o que precisamos para prosperar: exercitar a mente, inventar soluções para problemas, comer, nos reproduzir. Emoções como a compaixão, a culpa e a vergonha são importantes porque orientam nosso comportamento moral. Se você fizer qualquer coisa que não está correta em relação a outra pessoa, vai se sentir envergonhado e terá um sentimento de culpa. Isso é muito importante porque vai ajudar a manter a sua conduta de acordo com a convivência em sociedade. Uma coisa que falta aos psicopatas é exatamente esse sentimento de culpa, de vergonha. Os sentimentos são, portanto, fundamentais para organizar a sociedade e foram fundamentais para a formação dos sistemas moral e judicial. Mas as emoções por si só têm limites. Para vivermos em sociedade no século XXI, precisamos muitas vezes ser capazes de criticar as nossas próprias emoções e dizer não a elas. E a única maneira de ultrapassar as emoções é o conhecimento: saber analisar as situações com grande pormenor, ser capaz de raciocinar sobre elas e decidir quando uma emoção não é vantajosa. Há um nível básico em que as emoções ajudam, e se você não tem esse nível você é um psicopata. Mas há um nível mais elevado em que as emoções têm de ser não as conselheiras, mas as aconselhadas.
As emoções são condicionadas pela vivência em sociedade? As emoções são em grande parte inatas, mas nos primeiros anos de vida são condicionadas e sintonizadas com a sociedade. Alguns mamíferos têm emoções mais elevadas, como a compaixão, especialmente na relação entre mães e filhos. As mães de cães e lobos tratam seus filhotes com um carinho que é emocional e é totalmente inato, ninguém as ensinou. Há elefantes que quando perdem um companheiro ficam não só tristes como deixam de brincar e são capazes até de fazer uma espécie de luto. Claro que nada disso foi ensinado, é tudo inato. O que acontece com os seres humanos é que esses programas inatos têm sido, através de milhares de anos, refinados e melhorados por aspectos sócio-culturais. Hoje em dia, evidentemente, nossa estrutura moral não é inata. Ela tem sido condicionada pela história da nossa sociedade com elementos que têm a ver com a religião, a justiça e a economia, estruturas que são resultado da vida humana em sociedades complexas.
Se as emoções podem moldar o raciocínio, o oposto pode acontecer? Isto é, o raciocínio pode alterar nossas emoções? Claro, e é aí que está a grande beleza e a grande complicação dos seres humanos. É aí que você vai encontrar todos os grandes dramas da história, aquilo que Sófocles ou Shakespeare captaram em suas peças. Os grandes dramas de reis e rainhas, príncipes e plebeus, é o constante conflito entre aquilo que são os conselhos da emoção e do instinto, por um lado, e a influência que vem do raciocínio, do conhecimento e da reflexão. Essa é a grande base da tragédia grega ou shakespeariana. Nós, na medida em que as sociedades evoluem, estamos caminhando para uma maior harmonia entre o lado emocional e instintivo e o lado racional e de reflexão. Essa harmonia ainda não se estabeleceu e não vai acontecer nem na minha geração nem na sua. É um trabalho por se concluir. Mas um dia, a convivência em sociedade, que exige que se ponha razão e emoção na balança o tempo inteiro, vai conseguir equilibrar os dois lados.
E como ocorre esse condicionamento das emoções? É nos primeiros anos de vida que podemos inculcar valores e formas de raciocínio através da repetição de exemplos. Eles são o alicerce da construção da nossa moral. Do ponto de vista do cérebro isso é muito curioso porque é quase uma negociação entre suas partes. Há partes muito antigas em termos de evolução, como o tronco cerebral, e muito mais recentes, como o córtex cerebral. No córtex cerebral estão as grandes representações que constroem a mente: visão, audição, tato. Todas essas representações se constroem ali, e da ligação entre elas se dá o raciocínio. Mas o córtex cerebral precisa negociar com regiões do cérebro que estão no tronco cerebral e são as responsáveis pelos impulsos e as reações rápidas. É dessa negociação que surge o conceito de que algo é permitido ou não. Você repete, repete, repete até que as duas partes entrem em consenso.
É possível recondicionar os sentimentos já na vida adulta? É possível, porém é muito mais difícil e nem sempre é um trabalho bem sucedido. Se você tem uma pessoa que começou a vida como um sociopata, é extraordinariamente difícil tornar essa pessoa um ser normal em relação a comportamento social. Isto porque seria necessário fazer todo o processo que se faz numa criança, mas o paciente já tem autonomia para não aceitá-lo.
Como raciocinamos melhor? Felizes ou tristes? A felicidade está ligada a certas moléculas químicas e a tristeza a outras. Quando estamos felizes as imagens se sucedem com mais rapidez e se associam mais facilmente. Na tristeza as imagens passam muito mais devagar e ficam como que impressas ali por um tempo. O ponto ideal para a efetividade do raciocínio é a felicidade com uma ponta de tristeza - porque na euforia, o pensamento se embaralha.
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Fonte: http://www.fronteiras.com/


sábado, 27 de junho de 2015

Nocturne


A consciência de si, a montanha e a sabedoria



Por Leont Etiel
 Entre o deserto de quem tem como companhia a palavra não dita e a imensidão das montanhas, Ravi Sharma foi tomado por um cansaço visionário. Levantava-se um dia coberto de frio. Do alto, ele avistava uma cidade submersa em branco e sentia um sopro gélido que atravessava o firmamento. Introspecto com a cena que a imagem gerava, de si para si, deliberou o que fazer lançando mão das palavras de Hojo: “No lago crescem inumeráveis lótus/os pinhões me oferecem alimento ilimitado/o mundo descobriu o meu refúgio/então, devo fixar a minha morada/no ponto mais recôndito da montanha.”
Dizendo assim, Ravi pronunciou kesa, do sânscrito kassaya, para arrumar o manto, feito no sul da Índia e símbolo da transmissão do conhecimento do mestre ao discípulo, entendido o mesmo como mergulho em si e a (auto)consciência que ele proporciona. Ravi mirou o topo da montanha e ensaiou passos, ao mesmo tempo em que, em seu cerne, acionava o desterro sancionado pelo silêncio sob a indução voluntária da solidão.
Pensou, não é mais tempo de bonnos, do que não tem profundidade, é aparente, falso e engana o discernimento; é tempo, imaginou Ravi, de mushotoku, da ação sem outras intenções e sem espera de recompensas. Concluindo isso, acostou-se em palavras várias vezes repisadas por discípulos de Lao Tsé: “O autêntico sábio/é um homem inteligente/reúne, junta e mescla/todas e cada uma das existências/realizando a fusão do todo/consegue criar o Eu/o espírito genuíno de cada coisa/funde todas as existências/segundo o seu espírito.”
No caminho ao topo da montanha, viu como, na profundidade dos bosques, árvores envelhecem intactas. E como que um impulso que lhe fez apressar os passos, lembrou que as flores, apesar do seu perfume, são machucadas por mãos bárbaras. Ravi já havia andado muito, e o dia  começava a se despedir. Do crepúsculo, exibindo e ocultando os sinais do dia, para fazer a transição ao noturno, emanavam luz e mistério como uma espécie de convite ao porvir.
Com mais alguns passos, Ravi deu-se conta de que havia chegado ao cume da montanha. Teve a sensação de transvivenciação. Apertou a kesa e, apreciando a elevação de pensamento, experimentou a fusão dos sentimentos de vida e de morte numa única realidade que tornava a sua existência desprovida de dor e sofrimento. Paz. Evasão do egocentrismo. Realização da sabedoria.


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Da (in)quietude do que se busca - para não mais se procurar

O jorro eleva-se e, caindo, enche
até a orla a taça de mármore,
que, cobrindo-se, transborda
para o fundo de uma segunda taça.
A segunda, ao acolher demais, dá,
ondulante, à terceira o seu fluxo,
e cada uma, ao mesmo tempo, dá e recebe
e flui e repousa.

(Conrad Ferdinand Meyer)

A Lira - Solidão no Oceano

Nova voz, nova interpretação - a mesma profundidade existencial, a mesma 'introspecção do 'em si e do para si'. Ou será que foi mais além do que a versão anterior? A conferir. Madredeus: A Lira - Solidão no Oceano. 



Relembrar e viver: um fio de afeto e esperança

Resultado de imagem para Salvador Allende e Pablo Neruda
Presidente chileno Salvador Allende e o poeta 
Pablo Neruda 

Dizia Hegel, como já escrevei aqui e alhures, que o indivíduo, ao morrer, regressa à indiferencialidade da natureza, cancelando-se a sua extensividade ativa e consciente. Cindindo-se o ser individual do agir no morto, ele torna-se uma singularidade vazia e passiva. Passa a ser lembrança de um nome carente de realidade. Este nome é somente nome para os outros que o lembram. Ele deixou de ser nome para si mesmo. Por isto, a maioria dos mortos permanece como uma lembrança quieta na sombra das famílias, e então assim pode-se dizer que esta visão sobre a morte constitui o lado morto do morto ou a morte do indivíduo propriamente natural. Pode-se então se estabelecer uma analogia em relação àquilo que a perspectiva hegeliana chamou de ruínas históricas. A morte as ruínas históricas evocam necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal, sobre o irrecorrível desaparecimento dos indivíduos e das coisas. Os sentimentos que experimentamos perante este tribunal do tempo nos provocam uma deprimente tristeza. Constatamos que uma vitalidade consciente, um indivíduo estimado e querido, teve de morrer e nos atormentamos no desconsolo das lembranças. Somente com o nosso retorno ao mundo activo da história dos seres humanos vivos, podemos nos  reconciliar com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida, que nos nega consolo, que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido. Contudo, não como desaparecido, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de sua atividade, que se apresenta como legado, e na significação exemplificativa de sua vida. Com este preâmbulo, quero trazer à memória a figura do ex-Presidente chileno Salvador Allende, que resistiu até a morte, de arma na mão, no palácio presidencial, ao Golpe de Estado patrocinado pelos Estados Unidos e conduzido pelos militares chilenos, em 11 setembro de 1973, e que instaurou no país uma das ditaduras mais cruéis da América Latina. Amigo do poeta Pablo Neruda, que também foi embaixador do Chile, o Companheiro-Presidente, como Allende era conhecido, constitui-se num exemplo raro de ombridade e coerência  que as novas gerações devem conhecer na tentativa de regenerar a política em países como o Brasil. Mas também para que se perceba que a trama golpista que contra ele foi armada continua presente nos dias atuais na América Latina. O poeta Pablo Neruda, que em condições ainda não totalmente esclarecidas faleceu pouco tempo depois da morte de Allende, indicou bem o horizonte a se ter em vista, considerando-se a história do Companheiro-Presidente: "E a minha voz nascerá de novo/talvez noutro tempo sem dores/sem os fios impuros que emendaram/negras vegetações ao meu canto/e nas alturas arderá de novo/o meu coração ardente e estrelado." Uma política diferente, com afeto, convicção e esperança. Aí abaixo, uma breve crônica, que foi escrita por Eduardo Galeano, sobre os referidos acontecimentos de setembro de 1973 no Chile. 

Presidente Salvador Allende, ao centro, resistindo ao
Golpe de Estado no Palácio de La Moneda 

Por Eduardo Galeano

Por valija diplomática llegan los verdes billetes que financian huelgas y sabotajes y cataratas de mentiras. Los empresarios paralizan a Chile y le niegan alimentos. No hay más mercado que el mercado negro. Largas colas hace la gente en busca de un paquete de cigarrillos o un kilo de azúcar; conseguir carne o aceite requiere un milagro de la Virgen María Santísima.

La Democracia Cristiana y el diario «El Mercurio» dicen pestes del gobierno y exigen a gritos el cuartelazo redentor, que ya es hora de acabar con esta tiranía roja; les hacen eco otros diarios y revistas y radios y canales de televisión. Al gobierno le cuesta moverse; jueces y parlamentarios le ponen palos en las ruedas, mientras conspiran en los cuarteles los jefes militares que Allende cree leales.
En estos tiempos difíciles, los trabajadores están descubriendo los secretos de la economía. Están aprendiendo que no es imposible producir sin patrones, ni abastecerse sin mercaderes. Pero la multitud obrera marcha sin armas, vacías las manos, por este camino de su libertad. Desde el horizonte vienen unos cuantos buques de guerra de los Estados Unidos, y se exhiben ante las costas chilenas. Y el golpe militar, tan anunciado, ocurre.

Allende
Varias veces ha dicho que no tiene pasta de apóstol ni condiciones para mártir. Pero también ha dicho que vale la pena morir por todo aquello sin lo cual no vale la pena vivir.
Los generales alzados le exigen la renuncia. Le ofrecen un avión para que se vaya de Chile. Le advierten que el palacio presidencial será bombardeado por tierra y aire. Junto a un puñado de hombres, Salvador Allende escucha las noticias. Los militares se han apoderado de todo el país. Allende se pone un casco y prepara su fusil. Resuena el estruendo de las primeras bombas. El presidente habla por radio, por última vez: —Yo no voy a renunciar...

La reconquista de Chile
Una gran nube negra se eleva desde el palacio en llamas. El presidente Allende muere en su sitio. Los militares matan de a miles por todo Chile. El Registro Civil no anota las defunciones, porque no caben en los libros, pero el general Tomás Opazo Santander afirma que las víctimas no suman más que el 0,01 por 100 de la población, lo que no es un alto costo social, y el director de la CIA, William Colby, explica en Washington que gracias a los fusilamientos Chile está evitando una guerra civil. La señora Pinochet declara que el llanto de las madres redimirá al país. Ocupa el poder, todo el poder, una Junta Militar de cuatro miembros, formados en la Escuela de las Américas en Panamá. Los encabeza el general Augusto Pinochet, profesor de Geopolítica. Suena música marcial sobre un fondo de explosiones y metralla: las radios emiten bandos y proclamas que prometen más sangre, mientras el precio del cobre se multiplica por tres, súbitamente, en el mercado mundial.
El poeta Pablo Neruda pide noticias del terror. De a ratos consigue dormir y dormido delira. La vigilia y el sueño son una única pesadilla. Desde que escuchó por radio las palabras de Salvador Allende, su digno adiós, el poeta ha entrado en agonía.

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Fonte: Da Triología Memoria del Fuego. 

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Bolsas, PIBID, cortes: carta da SBPC e ABC

Em definitivo, estamos vivendo um período de manifestação das entidades científicas brasileiras, seja contra a escalada da agenda obscurantista que toma conta do país, seja contra a redução de recursos para os serviços públicos. Desta feita, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) dirigem carta ao Ministro da Educação e ao Presidente da CAPES, marcando posição contrária a um possível corte de verbas do PIBID, comprometendo, por exemplo, o programa de bolsas. Aí abaixo, a carta das duas entidades. 

Excelentíssimos Senhores
Ministro da Educação, RENATO JANINE RIBEIRO, e
Presidente da Capes, CARLOS AFONSO NOBRE
Prezados Senhores,
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) reconhecem a existência de uma grave situação econômica, que exige do governo federal a adoção de medidas capazes de promover os necessários ajustes das contas públicas. No entanto, o País também enfrenta outra situação grave, ainda mais aguda e de espectro mais amplo do que o econômico, que é o conjunto de deficiências do nosso sistema educacional, especialmente em seu nível básico.
Se a fragilidade das contas públicas aflige a economia, a fragilidade do sistema educacional provoca danos profundos e de longo prazo, que afetam a sociedade brasileira como um todo, mas especialmente as camadas de menor poder aquisitivo bem como a qualidade dos recursos humanos de toda a cadeia produtiva nacional. É consenso que o aumento da qualidade do sistema educacional está intrinsecamente ligado ao aperfeiçoamento e melhoria das condições de trabalho dos professores de todos os níveis, do ensino fundamental à pós-graduação.
Com estas constatações, ficamos alarmados com a notícia sobre o corte de verbas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), e do Pibid Diversidade. Esses programas resultaram da criação da Nova Capes, que além de coordenar o Sistema Nacional de Pós-Graduação, também assumiu a formação inicial e continuada de professores para a educação básica. Essa atribuição, que foi consolidada pelo Decreto nº 6755, de 29 de janeiro de 2009, instituiu a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica.
Esses marcos históricos para a Educação Brasileira, que aconteceram durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do então ministro da Educação, Fernando Haddad, vêm produzindo um cenário efetivo de valorização da formação de professores, de legitimação de sua atitude reflexiva, de estímulo ao comprometimento político dos futuros professores e da universidade com a escola pública. Um dos mecanismos concretos criados pelo Pibid foi a articulação entre as instituições de ensino superior e escolas de educação básica com o intuito de formar melhores professores e contribuir com a qualidade de ensino na rede pública.
Pela maneira como foi idealizado, estruturado e posto em funcionamento, e, principalmente, pelo ambiente profícuo que introduziu em nosso sistema de ensino, o Pibid representa uma daquelas medidas indispensáveis para que ocorram melhorias estruturais na educação brasileira. Sabemos todos: bons alunos advêm de bons professores e educação de qualidade exige educadores qualificados. É nessa direção que o Pibid caminha. Não se pode paralisá-lo, não se pode impedi-lo de atingir seus objetivos.
Quando o governo federal propôs a fazer sua parte nos objetivos de nos transformamos em uma Pátria Educadora, a SBPC, um sem número de instituições – ligadas ou não aos temas da educação – e certamente milhões de brasileiros, viram nesse slogan um fator de estímulo, crença e renovação de esperanças de que o Brasil estava dando um passo firme rumo à superação de seu déficit educacional. Se confirmado o corte de verbas do Pibid, o governo estará sinalizando à sociedade que o lema Pátria Educadora não passa de um slogan sem comprometimento efetivo do Estado com a Educação Nacional.
Portanto, solicitamos aos senhores que exerçam todo o empenho e força que tiverem disponíveis para garantir que os recursos previstos para a continuidade do Pibid sejam mantidos pelo governo federal, em prol do Brasil que todos almejamos.
Cordiais saudações,
HELENA B. NADER
Presidente da SBPC
JACOB PALIS
Presidente da ABC 

Inverno e 'tempestade com silêncio'


Mistério. Ocorrência de neblina cria um cenário único na serra fluminense, em Petrópolis


Por Pablo Neruda 

Truena sobre los pinos.
La nube espesa desgranó sus uvas, 
cayó el agua de todo el cielo vago, 
el viento dispersó su transparencia, 
se llenaron los árboles de anillos,
de collares de lágrimas errantes.

Gota a gota
la lluvia se reúne
otra vez en la tierra.

Un solo trueno vuela
sobre el mar y los pinos,
un movimiento sordo:
un trueno opaco, oscuro,
son los muebles del cielo
que se arrastran.

De nube en nube caen
los pianos de la altura,
los armarios azules,
las sillas y las camas cristalinas.

Todo lo arrastra el viento.

Canta y cuenta la lluvia.

Las letras de agua caen
rompiendo las vocales
contra los techos. Todo
fue crónica perdida,
sonata dispersada gota a gota:
el corazón del agua y su escritura.
Terminó la tormenta.
Pero el silencio es otro.








Cortinas de fumaça do lulismo e o roteiro do golpismo

Ecoa por estes dias a fala do ex-Presidente Lula na qual, com uma só tacada, ele bateu forte em duas crias suas: o Governo Dilma e o próprio PT. Arredondando por baixo, para o primeiro, no mínimo, sobram adjetivos como 'inerte' e 'desastroso'; para o segundo, fazendo inferência direta do que foi dito pelo ex-Presidente, conclui-se que a preocupação dos petistas, agora, é apenas com os bolsos, pois, conforme brandiu o ex-mandatário, eles só pensam em ganhar eleições e manter cargos, quer dizer, o projeto é ganhar dinheiro. Ora bem, muitos aspectos chamam a atenção desse arroubo retórico, cabendo destacar dois: 1) a circunstância em que o ex-Presidente 'deitou essa falação', ou seja, em um convescote ao lado de Felipe González, ex-Premier espanhol, que tem sérias contas a acertar com a ética na política, embora hoje ande pela América Latina imiscuindo-se em questões internas dos seus países; 2) internamente no PT, foi o próprio Lula e o seu grupo quem conduziram a linha política que levou o partido a fazer todo tipo de alianças para ganhar eleições, sendo um exemplo paradigmático disso o acordo com Paulo Maluf em São Paulo, para eleger Fernando Haddad. Diante dos fatos, analistas fizeram correr tinta com teses sobre as motivações da nova postura lulista: uma nova estratégia política em função das eleições presidenciais de 2018? Quer enquadrar o PT? Romper com a Presidente Dilma? Embora com eventuais pontos de acerto aqui e acolá, as análises, com pouquíssimas exceções, erram o 'diagnóstico'. Ao que parece, o que o ex-Presidente busca é salvar a sua própria pele, prevendo os desdobramentos que a Operação Lava Jato pode ter e a possibilidade de uma decretação de prisão sua pelo juiz Sérgio Moro. Então cria uma cortina de fumaça. Instinto de sobrevivência é capaz de muita coisa. Resta saber se o do ex-Presidente chega ao ponto de rejeitar as suas próprias crias, para sair ileso, como até agora tem saído dos casos desabonadores dos anos petistas na Presidência da República. O cálculo dos riscos não é pequeno, porque, pelos últimos acontecimentos, parece provável que a oposição jogará pesado no segundo semestre, dando sequência ao roteiro do golpismo. A propósito, o cientista social André Singer (USP) conseguiu captar bem isso no artigo aí abaixo. 


Trabalho de Singer é pioneiro na investigação
das bases constituintes do lulismo



Por André Singer 

Ao pedir, pela primeira vez na história, explicações pessoais a um presidente da República sobre supostas irregularidades, o Tribunal de Contas da União (TCU) anunciou que haverá continuação da saga impeachment. O roteiro estava escrito quando o senador Aécio Neves (PSDB-MG) recuou do pedido de impedimento contra Dilma Rousseff, mas ainda não era seguro que seria filmado.
Na ocasião, o presidente do PSDB pediu à afoita bancada do partido na Câmara para que esperasse o julgamento das contas de 2014 pelo TCU. A depender do resultado, a película seria continuada. Com a inédita decisão de dar 30 dias de prazo para que a mandatária se explique, o TCU garantiu a continuação da trama que teve sucesso de público na estreia de março/ abril deste ano.
Pela hostilidade ao Executivo que existe no referido órgão, o script da parte 2 começa como thriller. Conseguirá a Rainha evitar que os guardiões da responsabilidade orçamentária, encastelados no TCU, rejeitem as pedaladas fiscais? Caso isto aconteça, o governo teria como impedir que o Congresso referende a decisão do TCU e reprove as contas do ano eleitoral? Nesta hipótese, os cavaleiros do apocalipse contarão com armas suficientes para entrar com o pedido atômico de impedimento, em nome de crime de "irresponsabilidade fiscal"? Disparado o míssil, terá acolhimento do Menino Maluquinho 1, que dirige a Câmara e decide sobre o assunto?
Deve-se reconhecer que o "plot" é assustador. Mas o artificialismo do conteúdo é tão gritante que a plateia, na prática, dorme. Para começar, porque há um pressuposto mal resolvido. Segundo o jurista Miguel Reale Jr., não pode haver processo para impedir o mandato de um presidente por algo cometido em mandato anterior. Como a suposta irresponsabilidade fiscal se refere a Dilma 1, não haveria como impedir Dilma 2 em nome dela. Reale sugere, em troca, uma ação penal junto à Procuradoria Geral da República.
Em segundo lugar, porque o caráter político do TCU, vinculado ao Congresso, é óbvio. Lá, dois terços dos ministros são indicados para o cargo por políticos para atuar no controle político dos administradores. Até uma criança percebe, e o filme é de indicação livre, a intenção de emparedar uma presidente que está em situação de patente fragilidade popular.
A plateia acha que pedidos de explicação sobre a execução orçamentária são legítimos e talvez devessem acontecer com maior frequência. Mas percebe que, no caso, está a serviço de montar um blockbuster de péssima qualidade, com atores canastrões e efeitos especiais duvidosos. Mesmo assim, ao menos parte do segundo semestre deve ser tomada por essa encenação fraca.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/2015/06/1645452-golpe-branco-parte-2.shtml

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Ciência social, gênero e sexualidade

NOTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA (SBS) SOBRE A SUPRESSÃO DO ENSINO DE QUESTÕES DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL NAS ESCOLAS


A Sociedade Brasileira de Sociologia considera preocupante a supressão dos temas das relações de gênero e orientação sexual dos planos de educação nacional, estaduais e municipais. Sem formação sobre eles, os estudantes não terão acesso a conceitos e vocabulário fundamentais para a vida na sociedade contemporânea, marcada pela luta por igualdade entre homens e mulheres e o enriquecedor contato com as diferenças sexuais e de gênero. As discussões sobre gênero e orientação sexual favorecem a compreensão de direitos fundamentais e oferecem embasamento para que pessoas recusem e se protejam do preconceito e da discriminação, contribuindo assim para a construção de uma sociedade mais justa. A exclusão de conteúdos educacionais sobre gênero e sexualidade fere valores republicanos como direito à informação e livre expressão do pensamento, impedindo que que os jovens reflitam sobre desigualdades históricas e possam participar de modo qualificado do aprimoramento da democracia brasileira.

A oposição sistemática e autoritária de alguns ao que chamam de “ideologia de gênero” revela desconhecimento da consolidada produção científica nacional e internacional na área dos estudos de gênero e sexualidade. Gênero é uma categoria analítica que permite compreender e criticar desigualdades históricas entre homens e mulheres, assim como os processos discriminatórios que impedem a livre transitividade de gênero legando pessoas ‘trans’ a uma injusta e inaceitável subcidadania. As investigações sociológicas sobre sexualidade permitiram a compreensão de formas institucionais e cotidianas de discriminação e violência contra homossexuais, o que tem contribuído para a formulação de políticas públicas que visem garantir a esses sujeitos seus direitos humanos. 
Impedir o acesso de alunas e alunos às teorias e pesquisas contemporâneas sobre gênero e orientação sexual e a propalada defesa da família proposta por segmentos de grupos de religiosos constitui indisfarçável ato obscurantista de censura ao acesso a informações de indiscutível validade científica. Cabe ressaltar que religiosos, das mais variadas crenças, tem se revoltado contra discriminações e desigualdades baseadas no gênero e na orientação sexual e não apoiam a restrição à propagação de conhecimentos sobre a temática.
Vedar a possibilidade de aprendizado sobre conhecimentos largamente comprovados na ciência contemporânea é uma medida obscurantista, incompatível com objetivos educacionais do país estabelecidos no próprio Plano Nacional de Educação (PNE), projeto de lei que define diretrizes e metas para a educação até 2020, dentre os quais destacamos: superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação; promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do país; promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental. Por essas razões, a Sociedade Brasileira de Sociologia vem a público expressar seu repúdio à supressão da menção às questões de gênero e orientação sexual no referido Plano, bem como a outras iniciativas similares que vem sendo tomadas em unidades da federação brasileira.

Porto Alegre, junho de 2015.

Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) 


'Quem és tu'

O tempo e a obra. Ou as esquinas do enigmático e solitário crepúsculo existencial. 


O Romantismo e os Três Poemas da Solidão


Por Maria Fernanda Teles de Castro e Quadros Ferro

I

Nem aqui nem ali: em parte alguma. 
Não é este ou aquele o meu lugar. 
Desço à praia, mergulho as mãos no mar, 
mas do mar, nos meus dedos, fica a espuma. 

Meu jardim, minha cerca, meu pomar. 
Perpassa a Ideia e mói, como verruma. 
Falar, mas para quê? Só por falar? 
Já nada quer dizer coisa nenhuma. 

Os instintos à solta, como feras, 
e eu a pensar em velhas primaveras, 
no antigo sortilégio das palavras. 

Agora é tudo igual, prazer e dor, 
e a tua sementeira não dá flor, 
ó triste solidão que as almas lavras. 

II 

Tão só! 
Cada vez são mais longos os caminhos 
que me levam à gente. 
(E os pensamentos fechados em gaiolas, 
as ideias em jaulas.) 

Ah, não fujam de mim! 
Não mordo, não arranho. 
Direi: 
— «Pois não! Ora essa! Tem razão». 

Entrando, na gaiola, 
cantarão em silêncio 
os sonhos, as ideias, 
como pássaros mudos. 

III 

Solidão. 
A multidão em volta 
e o pensamento à solta 
como alado corcel. 
E as ideias dispersas, em tropel, 
como folhas ao vento 
pétalas do Pensamento. 

Solidão. 
A angústia da Cidade, 
a impossível procura da Unidade, 
o clamor 
do silêncio interior, 
mais pungente, estridente, 
que os bárbaros ruídos 
que ferem, dilaceram 
os nervos e os sentidos.