Há determinadas músicas (das boas músicas, digo) que são epifanias. E com o mar pelo meio então! A conferir isso aí, com Dulce Ponte, em 'Canção do Mar'. A histórica saga lusitana. Descobrir onde está a razão. A luz sem par. O mar.
domingo, 31 de maio de 2015
sábado, 30 de maio de 2015
'Serenidade és Minha'
A 'semática lítero-poética' está sujeita a uma série de incompreensões, sendo habitual o autor (ou reprodutor) trazer a lume algo com um sentido e a interpretação sobre esse algo variar em sentidos que ele sequer tinha imaginado. Conta-se que, certa feita, o lusitano Sérgio Godinho, presente em um colóquio que analisava a sua obra, não se conteve com as interpretações que emergiram, dizendo que 'não sabia que tinha feito tanto'. Pois bem, Raul Carvalho, poeta português do Baixo Alentejo e que viveu no Porto, possivelmente esteja por aí - tendo a sua obra entendida em sentidos vários. Foi incluído, por Jorge de Sena, na relação dos cem melhores poetas do século XX português, e Eduardo Lourenço considerou-o um herdeiro de Álvaro de Campos. Não por acaso. É da sua pena um poema que já foi considerado 'um dos mais belos uma vez escrito em língua portuguesa'- chama-se 'Serenidade és Minha'. Escrito exatamente em homenagem à memória de Fernando Pessoa. Reproduzo-o a seguir. Qual interpretação pode ser feita de 'Serenidade és Minha'? Trata-se de fazer um movimento mental-analítico, pode-se dizer, hercúleo, ou não? Deixo a resposta a seu juízo, caríssimo/a leitor/a.
Por Raul Carvalho
Vem, serenidade!
Vem, serenidade!
Vem
cobrir a longa
fadiga
dos homens,
este
antigo desejo de nunca ser feliz
a
não ser pela dupla humanidade das bocas.
Vem
serenidade!
Faz
com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e
com que os lábios cheguem à altura dos
beijos.
Carrega
para a cama dos desempregados
todas
as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas
no cofre das águas:
os
corais, as anémonas, os montros sublunares,
as
algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.
Vem
serenidade,
com
o país veloz e viginal das ondas,
com
o mart]irio leve dos amantes sem Deus,
com
o cheiro sensual das pernas no cinema,
com
o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com
o macio ventre das mulheres violadas,
com
os filhos que os pais amaldiçoam,
com
as lanternas postas à beira dos abismos,
e
os segredos e os ninhos e o feno
e
as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,
com
Deus molhando os olhos
e
as esperanças dos pobres.
Vem,
serenidade,
com
a paz e a guerra
derrubar
as selvagens
florestas
do instinto.
Vem,
e levanta
palácios
na sombra.
Tem
a paciência de quem deixa entre os lábios
um
espaço absoluto.
Vem,
e desponta,
oriunda
dos mares,
orquídea
fresca das noites vagabundas,
serena
espécie de contentamento,
suroresa,
plenitude.
Vem
dos prédios sem almas e sem luzes,
dos
números irreais de todas as semanas,
dos
caixeiros sem cor e sem família,
das
flores que rebentam nas mãos dos namorados,
dos
bancos que os jardins afogam no silêncio,
das
jarras que os marujos trazem sempre da China,
dos
aventais vermelhos com que as mulheres esperam
a
chegada da força e da vertigem.
Vem,
serenidade,
e
põe no peito sujo dos ladrões
a
cruz dos crimes sem cadeia,
põe
na boca dos pobres o pão que eles precisam,
põe
nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.
Vem
nos bicos dos pés para junto dos berços,
para
junto das campas dos jovens que morreram,
para
junto das artérias que servem
de
campo para o trigo, de mar para os navios.
Vem,
serenidade!
E
do salgado bojo das tuas naus felizes
despeja
a confiança,
a
grande confiança.
Grande
como os teus braços,
grande
serenidade!
E
põe teus pés na terra,
e
deixa que outras vozes
se
comovam contigo
no
Outono, no Inverno,
no
Verão, na Primavera.
Vem,
serenidade,
para
que não se fale
nem
de paz nem de guerra nem de Deus,
porque
foi tudo junto
e
guardado e levado
para
a casa dos homens.
Vem,
serenidade,
vem
com a madrugada,
vem
com os anjos de oiro que fugiram da Lua,
com
as núvens que proíbem o céu,
vem
com o nevoeiro.
Vem
com as meretrizes que chamam da janela,
volume
dos corpos saciados na cama,
as
mil aparições do amor nas esquinas,
as
dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as
costas que os marinheiros levantam
quando
arrastam o mar pelas ruas.
Vem
serenidade,
e
lembra-te de nós,
que
te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um
sítio aonde a morte tem todos os direitos.
Lembra-te
da miséria dourada dos meus versos,
desta
roupa de imagens que me cobre
corpo
silencioso,
das
noites que passei perseguindo uma estrela,
do
hálito, da fome, da doença, do crime,
com
que dou vida e morte
a
mim próprio e aos outros.
Vem
serenidade,
e
acaba com o vício
de
plantar roseiras no duro chão dos dias,
vício
de beber água
com
o copo do vinho milagroso do sangue.
Vem,
serenidade,
não
apagues ainda
a
lâmpada que forra
os
cantos do meu quarto,
papel
com que embrulho meus rios de aventura
em
que vai navegando o futuro.
Vem,
serenidade!
E
pousa, mais serena que as mãos de minha Mâe,
mais
húmida que a pele marítima da cais,
mais
branca que o soluço, o silêncio, a origem,
mais
livre que uma ave em seu voo,
mais
branda que a grávida brandura do papel
em que escrevo,
mais
humana e alegre que o sorriso das noivas,
do
que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.
Vem
serenidade,
para
perto de mim e para nunca.
…
… ... … ... … … … … … … … … … … … … … … … … … … …
De
manhã, quando as carroças de hortaliça
chiam
por dentro da lisa e sonolenta
tarefa
terminada,
quando um ramo de flores matinais
é
uma ofensa ao nosso limitado horizonte,
quando
os astros entregam ao carteiro surpreendido
mais
um postal da esperança enigmática,
quando
os tacões furados pelos relógios podres,
pelas
tardes por trás das grades e dos muros,
pelas
convencionais visitas aos enfermos,
formam,
em densos ângulos de humano desespero,
uma
núvem que aumenta a vâ periferia
que
rodeia a cidade,
é
então que eu peço como quem pede amor:
Vem
serenidade!
Com
a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,
vem,
serenidade!
Com
as horas maiúsculas do cio,
com
os músculos inchados da preguiça,
vem,
serenidade!
Vem,
com o perturbante mistério dos cabelos,
o
riso que não é da boca nem dos dentes
mas
que se espalha, inteiro,
num
corpo alucinado de bandeira.
Vem
serenidade,
antes
que os passos da noite vigilante
arranquem
as primeiras unhas da madrugada,
antes
que as ruas cheias de corações de gás
se
percam no fantástico cenário da cidade,
antes
que, nos pés dormentes dos pedintes,
a
cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,
a
revolta semeie florestas de gritos
e
a raiva vá partir as amarras diárias.
Vem,
serenidade,
leva-me
num vagon de mercadorias,
num
convés de algodão e borracha e madeira,
na
hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,
na
carnívora concha do sono.
Leva-me
para longe
deste
bíblico espaço,
desta
confusão abúlica dos mitos,
deste
enorme pulmão de silêncio e vergonha.
Longe
das sentinelas de mármore
que
exigem passaporte a quem passa.
A
bordo, no porão,
conversando
com velhos tripulantes descalços,
crianças
criminosas fugidas à polícia,
moços
contrabandistas, negociantes mouros,
emigrados
políticos que vão
em
busca da perdida liberdade.
Vem,
serenidade
e
leva-me contigo.
Com
ciganos comendo amoras e limões,
e
música de harmónio, e ciúme, e vinganças,
e
subindo nos ares o livre e musical
facho
rubro que une os seios da terra ao Sol.
Vem,
serenidade!
Os
comboios nos esperam.
Há
famílias inteiras com o jantar na mesa,
aguardando
que batam, que empurrem, que irrompam
pela
porta levíssima,
e
que a porta se abra e por ela se entornem
os
frutos e a justiça.
Serenidade,
eu rezo:
Acorda
minha mãe quando ela dorme,
quando
ela tem no rosto a solidão completa
de
quem passou a noite perguntando por mim,
de
quem perdeu de vista o meu destino.
Ajuda-me
a cumprir a missão de poeta,
a
confundir, numa só e lúcida claridade,
a
palavra esquecida no coração do homem.
Vem
serenidade
lve
os vencidos,
regulariza
o trânsito cardíaco dos sonhos
e
dá-lhes nomes novos,
novos
ventos, novos portos, novos pulsos.
E
recorda comigo o barulho das ondas,
as
mentiras da fé, os amigos medrosos,
os
assombros da Índia imaginada,
o
espanto aprendiz da nossa fala,
ainda
nossa, ainda bela, ainda livre
destes
montes altíssimos que tapam
as
veias ao Oceano.
Vem,
serenidade,
e
faz que não fiquemos doentes, só de ver
que
a beleza não nasce dia a dia na terra.
E
reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e
não cedas demais ao vislumbre de vermos
a
nossa idade exacta
outra
vez paralela ao percurso dos pássaros.
E
dá asas ao peso
da
melancolia,
e
põe ordem no caoss e carne nos espectros,
e
ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e
enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e
não apagues nunca o fogo que os consome,
o
impulso que os coloca, nus e iluminados,
no
topo das montanhas, no extremo dos mastros,
na
chaminé do sangue.
Serenidade,
assiste
à
multiplicação original do Mundo:
Um
manto terníssimo de espuma,
um
ninho de corais, de limos, de cabelos,
um
universo de algas despidas e retrácteis,
um
polvo de ternura deliciosa e fresca.
Vem,
e compartilha
das
mais simples paixões,
do
jogo que jogamos sem parceiro,
dos
humilhantes nós que a garganta irradia,
da
suspeita violenta, do inesperado abrigo.
Vem,
com teu frio de esquecimento,
com
a tua alucinante e alucinada mão,
e
põe, no religioso ofício do poema,
a
alegria, a fé, os milagres, a luz!
Vem,
e defende-me
da
traição dos encontros,
do
engano na presença de Aquele
cuja
palavra é silêncio,
cujo
corpo é de ar,
cujo
amor é demais
absoluto
e eterno
para
ser meu, que o amo.
Para
sempre irreal,
para
sempre obscena,
para
sempre inocente
Serenidade,
és minha.
sexta-feira, 29 de maio de 2015
'Taça da Vida'
O Poeta Gilmar Leite, amigo com raízes também no chão pernambucano, faz-me uma saudação de 'natureza enológica' com o atributo que lhe é próprio: a verve poética. Aí abaixo, 'Taça da Vida'. Obrigado, Poeta!
Gilmar
Leite
Ergo a taça da vida, faço um brinde,
Em louvor ao sentir da liberdade;
O perfume do líquido me invade,
E persisto que o gole não se finde.
Bebo o vinho da paz e da verdade,
No
chalé do viver que me prescinde;
Sinto
o beijo da vida dizer vinde,
Ofereço os sabores da humildade.
Cada gole do vinho abre e mente...
Faz meu peito sentir-se diferente,
Despertando o sol da percepção.
No balcão do bar da livre existência,
Brindo
a vida com toda consciência,
E embriago o meu
nobre coração.
'Tempos Líquidos' e a imprevisibilidade do agora
Aí segue uma boa recensão do livro 'Tempos Líquidos', de Zygmunt Bauman, publicado pela Editora Jorge Zahar. Uma obra a ter em conta na análise do imprevisível mundo contemporâneo.
Por Márcio Pereira Basílio
O
autor é um sociólogo polonês, de descendência judaica, nascido em 1925, em
Pozna. Quando a Polônia foi invadida pelo nazismo em 1939, sua família
refugiou-se na União Soviética. Bauman serviu na Polish First Army, sob o
controle dos soviéticos. Neste período, tomou parte nas batalhas de Kolberg e
Berlin. De 1945 a 1953, Bauman passou a servir na Korpus Bezpieczestwa
Wewnrznego (KBW), a unidade foi responsável pela repressão à resistência
ucraniana e germânica. Neste momento de incertezas, iniciou seus estudos em
sociologia na universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados e
em 1968 foi afastado da universidade. Logo em seguida emigrou da Polônia,
reconstruindo sua carreira no Canadá, Estados Unidos e Austrália, até chegar à
Grã-Bretanha, onde em 1971 se tornou professor titular da universidade de
Leeds, cargo que ocupou por vinte anos. Responsável por uma prodigiosa produção
intelectual, recebeu os prêmios Amalfi, em 1989, por sua obra Modernidade
e Holocausto e Adorno, em 1998, pelo conjunto de sua obra. Atualmente é
professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.
Bauman é um sociólogo atual, que transmite
sua percepção do mundo sem saudosismo. Neste sentido, em suas últimas obras tem
empregado o termo "liquefação" ou "fluidez" como uma
metáfora adequada para expressar o dinamismo do processo de transição entre a
modernidade e a fase atual, que o próprio Bauman prefere compreender como uma
pós-modernidade. A famosa frase sobre "derreter os sólidos", cunhada
há um século e meio pelos autores do Manifesto Comunista, referia-se ao
tratamento que o autoconfiante e exuberante espírito moderno dava à sociedade,
que considerava estagnada demais para seu gosto e resistente demais para mudar
e amoldar-se a suas ambições. Isso só poderia ocorrer dissolvendo-se o que quer
que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo.
Desta forma, essa intenção clamava, por sua vez, pela "profanação do
sagrado": pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de
tudo, da "tradição"; clamava pelo aniquilamento da armadura protetora
forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à
"liquefação". Todavia, "o derretimento dos sólidos" abriu
caminho para novos e aperfeiçoados sólidos (2001, p. 9). Os primeiros sólidos a
derreter foram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as
obrigações. Esta forma de derretimento fragilizou a complexa rede de relações
sociais, tornando-a impotente para resistir aos critérios de racionalidade
inspirados pelos negócios. Este desvio permitiu a invasão e a dominação da
racionalidade instrumental, ou para o papel determinante da economia. O
derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus
tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais. Na verdade, nenhum molde
foi quebrado sem que fosse substituído por outro. Os sólidos que estão para ser
lançado no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da
modernidade fluída, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em
projetos e ações coletivas - os padrões de comunicação e coordenação entre as
políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas
de coletividades humanas, de outro. A apresentação do membro como individuo é a
marca da sociedade moderna, em detrimento da "fábrica fordista",
símbolo da modernidade oriunda do derretimento dos primeiros sólidos. A qual
apesar dos conflitos internos, era um sinônimo de segurança para o individuo. A
"vontade de liberdade", para Bauman é o esteio da modernidade
líquida, que se opõe à segurança construída em torno de uma vida social estável,
na ordem moderna.
Em tempos líquidos1,
logo na introdução, Bauman aponta cinco pontos de partida para nossa reflexão a
respeito dos desafios impostos ao indivíduo na era presente. Em primeiro lugar,
a passagem do estado "sólido" para o "líquido" da
modernidade imprimiu as organizações sociais - as quais limitavam as escolhas
individuais, instituições que asseguravam a repetição de rotinas, padrões de
comportamento aceitável - a obsolescência. Desta forma, incapacitando-a como
parâmetro para condução dos projetos de vida individual. Em segundo lugar, a
separação e o iminente divórcio entre o poder e a política. Sendo assim, grande
parte do poder de agir efetivamente, antes disponível ao Estado moderno, agora
se afasta na direção de um espaço global. O que o incapacita a operar
efetivamente na direção planetária, já que permanece local. Em terceiro lugar,
os laços inter-humanos, que antes teciam uma rede de segurança digna de um
amplo e contínuo investimento de tempo e esforço, e valiam o sacrifício de
interesses individuais imediatos, se tornam cada vez mais frágeis e
reconhecidamente temporários. A sociedade é cada vez mais percebida e tratada
como uma "rede" do que uma "estrutura": ela é compreendida
e encarada como uma matriz de conexões e desconexões aleatórias e de um volume
essencialmente infinito de permutações possíveis. Em quarto lugar, o colapso do
pensamento, do planejamento e da ação a longo prazo, e o desaparecimento ou
enfraquecimento das estruturas sociais nas quais estes poderiam ser traçados
com antecedência, leva a um desmembramento da história política e das vidas
individuais numa série de projetos e episódios de curto prazo que são, em
princípio, infinitos e não combinam com os tipos de sequências aos quais
conceitos como "desenvolvimento", "maturação" ou
"progresso" poderiam ser significativamente aplicados. E por fim, em
quinto lugar, a responsabilidade em resolver os dilemas gerados por
circunstâncias voláteis e constantemente instáveis é jogada sobre os ombros dos
indivíduos - dos quais se espera que sejam free-choosers e
suportem plenamente as consequências de suas escolhas.
O conceito recorrente, que permeia Tempos
líquidos é
o da insegurança existencial. Sendo assim, cabe aqui fazermos uma inferência a
respeito do termo. A insegurança apontada por Bauman tem sua origem na
desregulamentação, no enfraquecimento das relações humanas, na busca do
esclarecimento por meio da liberdade. Contudo, outro ramo proveniente deste
termo que está ligado à violência urbana, em alguns trechos mencionados pelo
autor, não reflete a expressão real do medo. Todavia, este também é um efeito
da atualidade, que sinaliza com a liberdade de escolha, a qual a massa
desprovida de recursos não tem acesso, causando com isso uma tensão entre os
que podem desfrutar desta liberdade e os estranhos das grandes metrópoles. Esta
tensão gera a incerteza e aumenta os riscos da vida individual.
No primeiro capítulo - "A vida
líquido-moderna e seus medos" - Bauman salienta que:
se
a idéia de 'sociedade aberta' era originalmente compatível com a
autodeterminação de uma sociedade livre que cultivava essa abertura, ela agora
traz à mente da maioria de nós a experiência aterrorizante de uma população
heterônoma, infeliz e vulnerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por
forças que não controla nem entende totalmente. (2007, p. 13)
"(...) a nova ordem, como no
derretimento dos primeiros sólidos, necessita derribar qualquer resistência que
impeça o seu avanço". Sendo assim, "as pressões voltadas à perfuração
e à quebra de fronteiras, comumente chamadas de 'globalização', fizeram seu
trabalho." (2007, p. 12). Num planeta aberto à livre circulação de capital
e mercadorias, o que acontece em determinado lugar tem um peso sobre a forma
como as pessoas de todos os outros lugares vivem, esperam ou supõem viver.
Bauman afirma que nada pode ser considerado com certeza num "lado de
fora" material. O bem-estar de um lugar, qualquer que seja, nunca é
inocente em relação à miséria de outro. Pode-se inferir que tal vulnerabilidade
produz a sensação de insegurança e de medo no individuo pós-moderno. Contudo,
segundo Bauman "grande parte do capital comercial pode ser - e é acumulada
a partir da insegurança e do medo" (2007, p. 18). Talvez estejamos diante
de um enorme e resistente sólido - a ordem econômica - a qual, se assim podemos
dizer, se realimenta da própria insegurança e do medo. Bauman aponta ainda para
a liquefação do Estado-nação, face a sua incapacidade responder localmente aos
estímulos globais. Segundo o autor, num planeta atravessado por
"auto-estradas da informação", nada que acontece em alguma parte dele
pode de fato, ou ao menos potencialmente, permanecer do "lado de
fora". A sociedade não é mais protegida pelo Estado, ou pelo menos é pouco
provável que confie na proteção oferecida por este. Ela agora está exposta à
capacidade de forças que não controla e não espera, nem pretende, recapturar e
dominar. "Aberto" e cada vez mais indefeso de ambos os lados, o
Estado-nação perde sua força, que agora se evapora no espaço global, assim como
a sagacidade e a destreza políticas, cada vez mais relegadas à esfera da
"vida política" individual e "subsidiadas" a homens e
mulheres. O que resta de política a cargo do Estado e de seus órgãos se reduz
gradualmente a um volume talvez suficiente para guarnecer pouco mais que uma
grande delegacia de polícia. Segundo o autor, o Estado reduzido dificilmente
poderia conseguir ser mais que um Estado da proteção pessoal. Bauman afirma que
num planeta negativamente globalizado, todos os principais problemas são
globais e, sendo assim, não admitem soluções locais. Um mundo saturado de
injustiças e habitado por bilhões de pessoas a quem se negou a dignidade humana
vai corromper inevitavelmente os próprios valores que os indivíduos deveriam
defender. Desta forma, a democracia e a liberdade não podem mais estar plena e
verdadeiramente seguras num único país, ou mesmo num grupo de países. Sendo
assim, o autor assevera que o medo é reconhecidamente o mais sinistro dos
demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Contudo, é a
insegurança do presente e a incerteza do futuro, adverte o autor, que produzem
e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável. Essa insegurança e essa
incerteza, por sua vez, nascem de um sentimento de impotência individual.
No segundo capítulo intitulado "A
humanidade em movimento", o autor retrata as conseqüências da
globalização, do enfraquecimento da soberania do Estado-Nação, quando aborda a
questão do aumento de refugiados em diversas áreas do globo. O autor assevera
que a única indústria que floresce nas terras dos retardatários - conhecidas
pelo apelido tortuoso e frequentemente enganoso, de "países em desenvolvimento"
- seja a produção em massa de refugiados. Neste sentido, o número de vítimas da
globalização sem teto e sem Estado cresce rápido demais para o planejamento, a
instalação e a construção de zonas que possam conter esses refugiados. Bauman
aponta a desregulamentação das guerras como um grande efeito da globalização,
que em grande medida contribui diretamente para o aumento destes refugiados. O
autor descreve que tornar-se um refugiado significa perder os meios em que se
baseia a existência social, ou seja, um conjunto de coisas e pessoas comuns que
têm significados - terra, casa, aldeia, cidade, país, posses, empregos e outros
pontos de referência cotidianos. Essas criaturas à deriva e à espera não têm
coisa alguma senão sua "vida indefesa, cuja continuação depende da ajuda
humanitária". Outro ponto preocupante relacionado a esta questão, se
refere à absorção de parte destes excedentes populacionais pelas guerrilhas,
gangues de criminosos e traficantes de drogas, que em seus conflitos aniquilam
e reabsorvem o "excedente populacional". A partir de suas inferências
o autor recorrer a Wacquant (2001) para asseverar que a missão do Estado está
sendo redefinida; este recua na arena econômica, alegando a necessidade de
reduzir seu papel social à ampliação e ao reforço de sua intervenção penal. Um
reflexo desta mudança pode ser observado no tratamento que alguns países adotam
em relação aos estrangeiros, permitem a saída, mas "protegem contra o
ingresso indesejado de unidades do outro lado", isto é o que o autor
denominou de "membranas assimétricas".
No terceiro capítulo, Bauman aponta três
possíveis causas para o sofrimento humano: a primeira está relacionada ao poder
superior da natureza; a segunda diz respeito à fragilidade de nossos corpos;
contudo, a terceira causa se relaciona intimamente a questão central desta obra
e emerge da inadequação dos regulamentos que ajustam as relações dos seres
humanos na família, no Estado e na sociedade. Castel (2003) chegou à conclusão
semelhante, depois de descobrir que a insegurança moderna não deriva de uma
carência de proteção, mas sim da "falta de clareza de seu escopo".
Bauman cita Castel, que "atribuí à individualização moderna a
responsabilidade por esse estado de coisas; sugere que a sociedade moderna,
tendo substituído as comunidades e corporações estreitamente entrelaçadas, que
no passado definiam as regras de proteção e monitoravam sua aplicação, pelo
dever individual do interesse, do esforço pessoal e da auto-ajuda, tem vivido
sobre a areia movediça da contingência" (2007, p. 63). Segundo Bauman, a
segurança das pessoas e a proteção de suas propriedades são condições
indispensáveis para a capacidade de lutar efetivamente pelo direito à
participação política, mas não podem se estabelecer de forma definitiva nem
serem adotadas com confiança, a menos que a forma das leis impostas a todos
tenha se tornado dependente de seus beneficiários. Contudo, devemos fazer uma
ressalva: se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e solidificar
as liberdades pessoais assentados no poder econômico, dificilmente garantirão
liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm direito aos recursos sem os
quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática, desfrutada -
deixada à sua própria lógica de desenvolvimento, a "democracia"
poderia continuar sendo não apenas na prática, mas também de modo formal e
explícito, um assunto essencialmente elitista -, sem direitos políticos, as
pessoas não podem ter confiança em seus direitos pessoais; mas sem direitos
sociais, os direitos políticos continuarão sendo um sonho inatingível, uma
ficção inútil ou uma piada cruel para grande parte daqueles a quem eles foram
concedidos pela letra da lei. Assim sendo, "a liberdade de escolha é
acompanhada de imensos e incontáveis riscos de fracasso" (2007, p. 71).
No quarto capítulo o autor trata da dicotomia
social vivida nas grandes cidades. Segundo Castells (1989) há uma crescente
polarização e uma distância cada vez maior entre os mundos das duas categorias
em que se dividem os habitantes: o espaço da camada superior geralmente está
conectado à comunicação global e a uma vasta rede de intercâmbio, aberta a
mensagens e experiências que envolvem o mundo inteiro. Na outra extremidade do
espectro, redes locais segmentadas, frequentemente de base étnica, recorrem a
sua identidade como o recurso mais valioso para defender seus interesses e, em
última instância, sua existência. Desta forma, as pessoas da "camada
superior" não pertencem ao lugar que habitam, pois suas preocupações estão
em outro lugar. Segundo Bauman, além de ficarem sozinhas, e, portanto livres
para se dedicarem totalmente a seus passatempos, e terem os serviços
indispensáveis a seu conforto diário assegurados, elas não têm outros
interesses investidos na cidade em que se localizam suas residências. Por outro
lado, o mundo em que vive a outra camada de moradores da cidade, a camada
"inferior", é o exato oposto da primeira. "Os cidadãos urbanos
da camada inferior são 'condenados a permanecer locais'. Para eles, é dentro da
cidade que habitam que a batalha pela sobrevivência, e por um lugar decente no
mundo, é lançada, travada e por vezes vencida, mas na maioria das vezes
perdida." (2007, p. 81). Pois, como afirma Bauman, qualquer um que tenha
condições adquire uma residência num "condomínio", planejado para ser
uma habitação isolada, fisicamente dentro da cidade, mas social e
espiritualmente fora dela. O traço mais proeminente do condomínio é seu
isolamento e distância da cidade. Isolamento significa a separação daqueles
considerados socialmente inferiores. As cercas têm dois lados. Elas dividem em
"dentro" e "fora" um espaço que seria uniforme. Desta
forma, as cidades, originalmente construídas para fornecer proteção a todos os
seus habitantes, hoje se associam com mais frequência ao perigo do que à
segurança. O processo de individualização da modernidade líquida nos confronta
diariamente com outros indivíduos (estranhos) dos quais podemos, no máximo,
supor, embora nunca se tenha certeza de haver captado suas reais intenções.
Finalizando a obra, o autor trata da utopia
em face da incerteza do mundo contemporâneo. Viver em um mundo incerto com a
esperança de dias mais equilibrados é necessário para o progresso. Bauman cita
Anotele France, que afirma que: "sem as utopias de outras épocas, os
homens ainda viveriam em cavernas, miseráveis e nus. Foram os utopistas que
traçaram as linhas da primeira cidade... Sonhos generosos geram realidades
benéficas. A utopia é o princípio de todo progresso, e o ensaio de um futuro
melhor" (2007, p. 102). Para nascer, o sonho dos utopistas necessitava de
duas condições. Primeiro, um sentimento irresistível de que o mundo não estava
funcionando de maneira adequada e de que era improvável consertá-lo sem uma
revisão completa. Segundo, a confiança na capacidade humana de realizar essa
tarefa, a crença de que "nós, humanos, podemos fazê-lo", armados como
estamos da razão capaz de verificar o que está errado no mundo e descobrir o
que usar para substituir suas partes doentes, assim como da capacidade de construir
as armas e ferramentas necessárias para enxertar esses projetos na realidade
humana. Neste sentido, o autor apresenta três metáforas, diferentes entre si,
mas relacionadas ao modo de interagir com o mundo vivido. A primeira diz
respeito ao guarda-caça, que tem por princípio defender a terra sob sua guarda
contra toda interferência humana, a fim de proteger e preservar. A segunda é a
do jardineiro, o qual presume que não haveria nenhuma espécie de ordem no
mundo, não fosse por sua atenção e esforços constantes. Essas duas metáforas
tipificam a autoridade investida aos Estados-Nações. A terceira metáfora é a do
caçador, o qual não dá a menor importância ao "equilíbrio" geral
"das coisas", seja ele "natural" ou planejado e maquinado.
A única tarefa que os caçadores buscam é outra "matança",
suficientemente grande para encher totalmente suas bolsas. Esses são produtos
da globalização e do enfraquecimento do Estado-Nação. Contudo, nem todos podem
tornar-se caçadores, somente os mais abastados.
Acredito que os aspectos apresentados por
Bauman nessa obra sejam relevantes para as ciências sociais. Pois apresenta
elementos que podem inflamar a reflexão sobre a possibilidade de sobrevivência
da ideia de Estado-Nação em um mundo globalizado.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade
líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt.Tempos líquidos.
Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
CASTEL, Robert. L'Insécurité
sociale. Qu'ste-ce
qu'être protege? Paris: Seuil, 2003.
CASTELLS, Manuel. The informational city.
Blackwell, 1989.
WACQUANT, Loïc. Symbale fatale. Quand ghetto et prision se ressemblent et
s'assemble. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, set. 2001.
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-45222010000100016&script=sci_arttext
A arte de um poeta: Paulinho Leite
Se há algo a não se perder de vista pelas lentes da estética da arte é que as 'classificações estanques', em matéria artística, não têm muito sentido. E nessa fonte o surrealismo bebeu muito bem. Alimentar dicotomias, como singular versus universal, é algo que nunca fez sentido, e hoje muito menos. Contrapor uma 'cultura global' (em boa parte das vezes, entendida como superior) às culturas locais, de cidades menores, é um disparate, e atualmente, por diversas razões, o é cada vez mais. Lançando-se mão da referida dicotomia, tentou-se, por exemplo, diminuir a dimensão da obra de figuras como José Lins do Rego, Ariano Suassuna e Augusto dos Anjos. Pura asneira. O universal conecta-se ao singular, logo também realiza o singular; assim como o global imbrica-se com o local, e este se reconfigura naquele, modificando-o. Isto é reforçado nos dias atuais pelas decorrências da sociabilidade em rede, das tecnologias da informação e da 'vida virtual', apagando as fronteiras entre os modos de existência/sociabilidades das pequenas e grandes cidades. Na arte, isto significa a interconexão de conteúdo e forma entre o singular e o universal. Muitos artistas existem, poucos, contudo, captam isso. Digo assim, para referir a obra de Paulinho Leite, nome já de referência no cenário artístico pernambucano, e alçando outros voos. A singularidade do seu estilo visita o universal: vai às raízes do forró original, lembra Alceu Valença, mas tem marca própria como cantor-poeta. A seguir, dois momentos seus, com a letra cantada em 'A Cor do Tempo' e o cantar das raízes da sua urbe - Muira ubi ('Olho D'água dos Bredos' - Arcoverde). Na cor do tempo quando passa, digo eu, é interessante ver/ter visto, de perto, o andar dos acontecimentos.
Poeta-cantor Paulinho Leite |
A Cor do Tempo (Flávio Leandro/Paulinho Leite)
Cada minuto a mais
é um minuto a menos
que a gente deixa de viver
cada pegada na estrada dessa vida
mostra a cor embranquecida
da face do envelhecer
cada fiapo de cabelo que se pinta
mostra que o tempo tem tinta
pra pintar qualquer cristão
pode ser do estrangeiro
ou de qualquer religião
pode fugir que o tempo pega e lhe consome
se ficar o tempo come
pro tempo tem jeito não
ai se eu pudesse contra o tempo eu lutaria
armava a rede na garupa do destino
e num balanço matutino
eu misturava a noite e o dia