terça-feira, 31 de março de 2015

A cegueira da pequenez de espírito diante da pequenez humana

Por Luiz Caversan* 

‘Pobreza’ e grandeza de espírito: os espíritos inferiores ressentem-se frequentemente com coisas insignificantes; os espíritos elevados apercebem-se delas, mas não se ressentem minimamente.
(François de La Rouchefocauld) 


Chegaram esses dias pela internet uma sequência de fotos muito emblemáticas sobre o maremoto na Ásia. Diz o e-mail que são imagens inéditas, que registram alguns momentos dramáticos, exatamente quando a fúria da natureza desaba, literalmente, sobre os homens.
Há divergências quanto à autenticidade das fotos; poderiam ser de um outro evento na região, mas não deixam de ter conexão com o que acaba de acontecer.
Principalmente uma dessas fotografias, que é particularmente assustadora. Mostra, em primeiro plano, um grupo de pessoas correndo, algumas delas rindo, como se aquilo fosse mais uma brincadeira de praia, e logo atrás a monstruosa massa de água.
A imagem remeteu imediatamente à fragilidade, à pequenez do ser humano diante da natureza que desde sempre ele, homem minúsculo, tenta domar, controlar, conduzir. Em vão, como sempre se viu.
Na semana passada, uma revista holandesa ocasionou revolta por conta de um artigo em que diz nada menos o seguinte: trata-se, o maremoto de milhares de vítimas, de nada menos que uma punição de Deus. Esse desatino tem sua "lógica", porque, afinal, diz a tradição cristã que nascemos em culpa, desde Adão e devemos louvar, sim, a infinita bondade do criador, mas também temer, sempre e sempre, a sua eventual ira.
Dogmas religiosos à parte, o maremoto, os mais de 150 mil mortos e os outros tantos que virão por conta das doenças e do desamparo que irão se suceder, oferecem mesmo uma grande oportunidade de reflexão.
Sobretudo sobre a transitoriedade de tudo o que nos cerca e sobre a nossa incapacidade de aceitar a condição em que vivemos, seja ela imposta por Deus ou apenas pela inexorabilidade da evolução de nossa espécie nesse planeta lindo e instável.
"Carpe diem", sugere o dito latino, aproveite, desfrute o dia, porque se provavelmente jamais saberemos exatamente de onde viemos, uma certeza a tsunami nos reavivou: iremos, desta para outra, seja ela qual for, a qualquer momento, em situações as mais impensáveis.
Há, portanto, a chance que nos resta, de desfrutar a felicidade de olhar o céu azul e constatar, por exemplo, a beleza do dia, que, sabe-se lá até quando, podemos desfrutar com alegria e paz.
Sim, vale a pena tentar.
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Jornalista e produtor cultural.  

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/luizcaversan/ult513u383305.shtml. 


Educação, docentes e alunos do meio popular: avanço insuficiente


O que o texto aí abaixo realça é algo que merece reflexão. Definitivamente, há alguma coisa errada. Em síntese, o que está em causa é o seguinte: em uma década, alunos mais empobrecidos tiveram acesso a professores com melhor titulação, mas os ganhos de aprendizado foram pequenos. O foco é a Escola Básica, mas a análise valeria muito bem também para a universidade, no contexto da sua expansão. Por que será que a qualificação, proporcionada pelos títulos, não tem gerado os efeitos de aprendizagem esperados? Como tem sido a formação desses 'docentes qualificados'? Como lidam com o processo de ensino-aprendizagem? Como planejam, como preparam as aulas e as executam? Bem, mudemos de assunto para continuarmos no mesmo tema - lendo, a seguir, o referido texto. 


Por Antônio Gois

Uma tese de doutorado, apresentada mês passado na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, mostra como é árdua a tarefa de reduzir desigualdades na educação brasileira. No trabalho, a pesquisadora Lara Simielli traz uma boa notícia: a chance de um aluno mais pobre do 5º ano do ensino fundamental estudar com um professor com formação universitária mais que dobrou entre 2001 e 2011. É um feito notável, mas, apesar de todo esse esforço, o quadro verificado em 2011 para esses alunos de menor renda não era suficiente para alcançar sequer o nível que as crianças mais ricas já verificavam em suas escolas dez anos antes.
O estudo identificou que, em 2001, menos de 30% dos alunos que pertenciam à classe E tinham professores com diploma de nível superior. Na classe A, o percentual ultrapassava 80%, uma diferença de mais de 50 pontos. Dez anos depois, o percentual aumentou para cerca de 70% entre os mais pobres, enquanto entre os mais ricos a proporção já ultrapassava 90%.
Foram analisadas também outras variáveis do professor, como a cobertura do currículo durante o ano letivo e o percentual de docentes pós-graduados. No caso da cobertura do currículo, o padrão se repetiu: avanços para os mais pobres, mas ainda insuficiente para alcançar o nível dos mais ricos dez anos antes. Já no caso dos professores com mestrado ou doutorado, os ganhos em todas as classes foram uniformes. Entre estudantes da classe E, a proporção de docentes pós-graduados variou de cerca de 30% a 50%, enquanto na classe A passou de cerca de 50% a 70%. A distância entre os dois grupos, portanto, permaneceu exatamente a mesma.
Para a autora, é preciso continuar investindo na melhoria da formação docente, mas é preciso também estabelecer padrões mínimos para todas as escolas, além de combater a desigualdade investindo mais em áreas de maior vulnerabilidade.
Outro dado interessante da tese: houve melhoria das condições socioeconômicas dos estudantes. Em 2001, 35% dos alunos do ensino fundamental estavam nas classes D e E. Dez anos depois, o percentual caiu para 15%. A geração que estava em sala de aula em 2011, portanto, tinha melhores condições de vida e teve acesso a professores com melhor titulação (sem entrar no mérito da qualidade dessa formação), em comparação com a de 2001.
Das variáveis externas à escola, sabemos que a mais influente no desempenho dos estudantes é o grau de escolaridade e pobreza das famílias. Entre aquelas que dizem respeito ao que acontece dentro de sala de aula, o destaque é para o professor. Com esses dois fatores jogando a favor da melhoria da qualidade do ensino no Brasil, poderíamos esperar ganhos mais expressivos no aprendizado. No 5º ano do fundamental, eles até ocorreram, e há quem diga que sua principal causa tenha sido a diminuição nos níveis de pobreza dos estudantes. Já no 9º ano e no ensino médio, os avanços foram residuais.

Um outro estudo, de Priscilla Tavares, analisou justamente o impacto que a melhoria das condições de vida da população teve no desempenho dos alunos nos últimos anos. O trabalho foi publicado em dezembro no livro “Educação básica no Estado de São Paulo”, mas não se restringe ao cenário paulista. Priscilla mostra que o peso do nível socioeconômico para explicar as desigualdades de notas entre os estudantes brasileiros é muito menor hoje do que há dez anos. Para ela, “isto significa que as políticas, ações e os programas educacionais possuem muito mais possibilidades de atuar para elevar o aprendizado e reduzir ainda mais as diferenças existentes entre os alunos. O desafio agora é adequar a escola a este novo perfil de estudante, com novos anseios e novas demandas para a escola pública.”
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Cérebro e decepção

Bom, em face de tantas circunstâncias imprevistas da vida, é aguardar o que aí abaixo é noticiado, indagando-se criticamente, contudo, se a 'medicalização das almas' é o caminho apropriado para enfrentar os impactos que as surpresas e frustrações decorrentes das decepções causam no cotidiano de cada um. 

Fonte: Redação da TV Cultura 

A revista Science publicou um estudo sobre o como a decepção ocorre no cérebro e afeta a saúde, causando problemas como a depressão. O objetivo é fazer com que a pesquisa possa ajudar no desenvolvimento de novos medicamentos.
O trabalho que o sistema nervoso faz  é usar inúmeros neurotransmissores - substâncias químicas que enviam sinais de um neurônio a outro -, a fim para permitir o pensamento e os movimentos que fazemos.
Cada neurônio deve produzir apenas um neurotransmissor, porém, quando dois deles - o glaumato e o gaba - são lançados ao mesmo tempo na chamada habenula lateral, surge o sentimento da decepção.
Alguns estudos anteriores mostram que a depressão está relacionada à atividade neural da habenula lateral. Testes com macacos mostram que essa parte do cérebro cresce relativamente quando os animais esperam algum tipo de recompensa, mas não ganham nada.

De acordo com os cientistas da Universidade de Califórnia, responsáveis pela pesquisa, o desenvolvimento de um tipo de medicamento específico para a habenula lateral poderia ajudar em um tratamento mais eficiente no combate à depressão. 

domingo, 29 de março de 2015

Sonhos em câmara lenta


 (Foto: e_walk/flickr/creative commons)


Por André Jorge de Oliveira 
Além de conseguirem resolver melhor seus problemas, as pessoas que têm sonhos lúcidos estão ajudando os pesquisadores a entender o que acontece com nosso cérebro enquanto estamos dormindo. Por terem controle pleno de suas ações enquanto sonham, elas são uma ótima fonte para a realização de experimentos que buscam desvendar alguns dos grandes mistérios que ainda envolvem nosso sono. Para determinar se a "velocidade" dos sonhos é similar a da realidade, o cientista suíço Daniel Erlacher reuniu alguns sonhadores lúcidos e pediu para que realizassem uma série de passos e movimentos de ginástica enquanto dormiam. Como relata a Simithsonian Mag, Erlacher solicitou também para que sinalizassem através de movimentos com os olhos quando o sonho começasse - este estímulo é um dos poucos que se reflete no corpo físico. Estas atividades estão relacionadas com as mesmas regiões do cérebro que usamos quando corremos, comemos ou cantamos. Apesar de os voluntários acharem que tudo ocorria em tempo real, o pesquisador descobriu com os sinais cerebrais que eles demoravam 50% mais tempo para fazer aquelas coisas do que demorariam se estivessem acordados. "Talvez isso explique o motivo de um sonho curto parecer ser capaz de preencher uma hora inteira", conclui a BBC Future.
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Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Neurociencia/noticia/2014/12/pesquisa-revela-que-nos-sonhamos-em-camera-lenta.html

sexta-feira, 27 de março de 2015

Benjamin e o Anjo da História: inquietação e melancolia


Walter Benjamin 

Por José Francisco Botelho

Muitas vezes, quem melhor capta a essência de uma época são aqueles que nela não se ajustam: os náufragos da história, condenados a lutar de forma apaixonada contra o tempo em que nasceram – e, por isso mesmo, capazes de vivê-lo e de interpretá-lo com intensidade única. Nesse sentido, o judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940) encarnou como poucos a alma da modernidade – porque nela se sentia desconfortável, desorientado e cheio de angústia. Homem de sensibilidade passadista e aspirações utópicas, foi um espírito do século 19 transportado para o século 20: viu a civilização industrial com olhos de estrangeiro e por isso foi capaz de compreendê-la profeticamente.

Crítico literário, pensador político e filósofo da história, Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o mundo ocidental. Profundamente judeu e profundamente alemão, só se sentia realmente em casa passeando pelas ruas de Paris – cidade que descrevia deliciosamente como “a capital do século 19”. Era dono de grande erudição, mas jamais se tornou um erudito profissional: desprezado pelas academias durante a vida, só foi por elas endeusado após a morte. Deixou- se seduzir pelo marxismo, mas jamais se encaixou no padrão do intelectual materialista, guardando até o fim da vida um viés místico herdado da tradição judaica. Todos esses ingredientes fizeram dele um desajustado universal. Não foi um favorito da fortuna, e sabia disso – até o último momento, sua existência foi marcada por uma mistura de má sorte, brilhantismo e trágica autoconsciência. Foi um daqueles que, no dizer do latino Cícero, “só venceram na morte”.


Inadequação crônica
Walter Benjamin nasceu em Berlim, em uma família de judeus assimilados, nos tempos do Império Alemão. No início da juventude, assistiu o Velho Mundo descer aos infernos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Das ruínas da belle époque, emergiu uma Europa mecanizada e cheia de traumas. Mais tarde, em um ensaio, descreveria o choque dessas mudanças: “Uma geração que fora à escola em bondes puxados por cavalos se encontrou, subitamente, em uma paisagem onde tudo se alterara e nada permanecia igual ao que fora antes – exceto as nuvens e, debaixo delas, em meio a explosões, o frágil e minúsculo corpo humano”.
Benjamin jamais se adaptou aos novos tempos. Os fados o haviam dotado de dons brilhantes, mas incompatíveis com o mundo que o cercava. Tinha uma mente eclética e fascinada pelas minúcias, numa época em que a especialização e as generalizações ideológicas imperavam. Seu campo de estudo e fascínio era a vida humana: refletia com igual profundidade sobre a literatura alemã, a história dos brinquedos e a Hagadá (livro da Páscoa) judaica. Sua recusa à especialização custou-lhe a carreira acadêmica. Em 1925, tentou ganhar um diploma de livredocência na Universidade de Frankfurt com uma dissertação sobre o barroco alemão. Os caciques do departamento de letras acharam que o trabalho pouco tinha a ver com literatura e o enviaram à faculdade de filosofia. Os filósofos do instituto, por sua vez, consideraram que ali havia literatura demais e o mandaram de volta aos literatos. O século 19 saberia apreciar a figura do cavalheiro diletante, o hoje legendário homem culto, que ponderava ao sabor de sua biblioteca e podia falar sobre quase tudo sem dizer tolices – mas qual personagem seria mais ameaçador no tecnocrático século 20? Impossibilitado de lecionar, por excesso de inteligência, Benjamin passou a ganhar a vida com traduções e esporádicos artigos para jornais e revistas (o que faz dele, hoje, uma espécie de santo padroeiro dos escritores free-lancer).
Outro motivo de desentendimento entre Benjamin e sua época foi um fenômeno moderno que o próprio autor diagnosticou, em ensaios como O Narrador, de 1935: a perda da experiência coletiva. Para Benjamin, as sociedades baseadas no artesanato viviam num tempo lento e orgânico, ritmado pelos trabalhos manuais, um tempo em que as experiências individuais podiam sedimentar- se e transmitir-se gradualmente em tradições compartilhadas, como as formações minerais que se depositam gota a gota. A civilização industrial havia esfacelado esse mundo feito de vagar, memória e contemplação. No século 20, os acontecimentos passaram a se amontoar de forma tão veloz que a mente humana se tornou impermeável à realidade. Desnorteado, desprovido daquele senso de pertença que era tão natural aos artesãos de outrora, o homem industrial estava condenado a ser o fragmento de um quebra-cabeça cuja forma não percebia. “Por isso, parecemos estar perdendo uma faculdade que antes nos parecia segura e inalienável”, escreve Benjamin, “a faculdade de intercambiar experiências”.
Em poucos lugares do mundo, essas mudanças eram tão notáveis quanto na Alemanha dos anos 1930, que vivia uma industrialização galopante, acompanhada pela corrida armamentista e pela ascensão do nazismo. Em 1933, Benjamin trocou Berlim por Paris, que então era o porto seguro dos desajustados e dos boêmios. Lá, viveu alguns dos anos mais felizes de sua vida. Mesmo no agitado coração do século 20, Paris continuava sendo “capital do século 19”. Flanando por seus bulevares em peregrinações diárias, Benjamin conseguia reencontrar o que mais lhe fazia falta no turbilhão moderno: o sabor da lentidão, que é a face amena e modesta da eternidade.
Mas esse idílio acabou em 1939. Em agosto daquele ano, o ditador soviético Joseph Stalin assinou um pacto de não agressão com Hitler – o que lançou boa parte dos intelectuais marxistas da Europa num estado de perplexidade incrédula. Dois me- ses depois, os nazistas invadiam a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. E foi sob o choque desses acontecimentos que Benjamin pôs-se a redigir, no início de 1940, um de seus textos mais pungentes: as curtas, melancólicas e eloquentes Teses sobre o Conceito de História, último escrito que completou antes de morrer.


Ruínas ao léu

Benjamin fora introduzido ao marxismo na década de 1920 graças a seus camaradas Theodor Adorno e Bertold Brecht – mas, à época do pacto entre Hitler e Stalin, já havia se desiludido com o comunismo real. E, a bem da verdade, sempre fora um marxista um tanto sui generis. O misticismo judaico acompanhou-o da infância ao túmulo. Sempre foi intelectualmente fascinado pela doutrina judaica do Messias, o futuro enviado de Deus, que virá redimir as confusões da história e encenar o epílogo de nossa tragicômica epopeia na terra. A decepção política e o sonho teológico perpassam suas Teses, escritas em tons de elegia e de parábola, num estilo de intensidade ominosa. Nessa reflexão profunda e urgente feita à beira do abismo, Benjamin lança um ataque certeiro contra o credo máximo daquele mundo que enlouquecia: a fé no progresso inelutável da humanidade.
Pelo menos desde o início da Revolução Industrial, o Ocidente se convencera de que o avanço técnico era sinônimo de avanço moral. A novidade de hoje, por banal que seja em si mesma, é sempre mais valiosa, mais sublime, mais respeitável que a novidade de ontem. No centro dessa concepção, está a ideia de que o presente é necessariamente melhor que o passado – em todos os aspectos. Segundo Benjamin, o culto ao Deus Progresso era uma neurose universal da qual o marxismo também padecia: para os materialistas clássicos, a história da humanidade era um fluxo implacável rumo à utopia e a revolução comunista era o resultado natural – e, portanto, acima de críticas – do desenvolvimento humano.
No lugar do Deus Progresso, Benjamin colocou o demônio da catástrofe. O avanço da técnica, o domínio material sobre a natureza, a capacidade de erigir prédios e detonar bombas – nada disso, argumenta Benjamin, tem um valor intrínseco em si mesmo. O desenvolvimento moderno pode ser uma aceleração rumo ao desastre. O progresso, quando desabrido e arbitrário, é a pior forma de regresso. E Stalin lá estava, ao lado de Hitler, para provar que o “resultado natural” da história podia ser o oposto da utopia. Essas sombrias intuições estão expressas com soberba imaginação poética em um dos parágrafos mais belos na história do pensamento. É a Nona Tese de Benjamin, escrita sob a inspiração do Angelus Novus, uma aquarela do suíço Paul Klee.
Na pintura, uma desajeitada figura angélica parece voar em marcha à ré, com os olhos fixos no caminho que vai deixando para trás. Trancado em seu quarto enquanto o exército alemão se aproximava, Benjamin observou longamente a aquarela de Klee e por fim escreveu: “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. O anjo gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se a suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”. O involuntário Anjo da História é uma dessas raras imagens que transcendem interpretações e dispensam comentários. Sabemos simplesmente que ele segue voando e que as ruínas ainda se acumulam ao léu.
Walter Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o mundo ocidental

Naufrágio anunciado
Benjamin fugiu de Paris em junho de 1940, um dia antes que o exército alemão entrasse na capital – e a partir de então teve de perambular de cidade em cidade, carregando uma valise cheia de manuscritos inéditos, com a Gestapo em seu encalço. Em agosto daquele ano, conseguiu escapar para a Espanha. Seu plano era chegar a Portugal e dali emigrar para os Estados Unidos. Benjamin já estava na cidade fronteiriça de Portbou, na Catalunha, quando recebeu a notícia fatídica: o governo de Franco cancelara os vistos de todos os refugiados vindos da França. Alquebrado e exausto, após meses de pânico e fuga, Walter Benjamin tomou uma overdose de morfina em seu quarto de hotel, em 25 de setembro de 1940. Sua valise perdeu-se e até hoje não sabemos que manuscritos continha. As folhas rabiscadas com as Teses sobreviveram num dos raríssimos lances de sorte na vida de seu desafortunado autor: antes de fugir de Paris, ele entregara uma cópia a sua amiga, a filósofa Hannah Arendt, que, meses depois, conseguiu escapar para os Estados Unidos.
Se a execução de Sócrates foi o mito fundador da filosofia ocidental, o suicídio de Benjamin simbolizou de forma exemplar o naufrágio da modernidade. Um naufrágio anunciado: considerados em perspectiva, seus escritos têm uma sombria aparência de vaticínio. A disciplinada selvageria do Holocausto, com sua industrialização da morte em escala de milhões, seria impensável sem o avanço técnico e a mecanização das sociedades industriais. Mas o pensamento de Benjamin não é um simples aviltamento do presente ao sabor de idealizações do passado. Pelo contrário: em sua concepção da história, a catástrofe é permanente; cada nova era estraçalha algo de precioso que o período anterior conseguiu, por algum tempo, preservar. A redenção humana só virá quando o doloroso contínuo da história se interromper.
Como a revolução comunista falhou, só restava a Benjamin esperar que o prometido Messias judaico viesse um dia restaurar os escombros do Anjo desalentado. Em uma carta escrita a Hannah Arendt, em 1935, ele resumiu suas considerações sobre o futuro do ser humano – um pêndulo que oscila entre a redenção imaginada e o apocalipse provável. “Nesse planeta, um grande número de civilizações pereceu em sangue e horror. Naturalmente, é de se desejar que o planeta algum dia experimente uma civilização que renuncie a tudo isso...”
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Fonte: http://filosofialimite.blogspot.com.br/2010/12/o-anjo-da-hidtoria-por-jose-francisco.html


Para lá do arco-íris

Israel Kamakawiwo'ole - Over the Rainbow/What a wonderful World.



quarta-feira, 25 de março de 2015

O ponto da questão: 'a ética do bem e da felicidade'

Em 2013, Analas of the New York Academy of Sciences publicou pesquisa que indicava uma 'reação biológica' em pessoas que não só não se sensibilizam com o sofrimento alheio, como chegam até mesmo a experimentar prazer diante das dificuldades e da dores do outro. As bizarrices do mundo! Claro, não se trata de valorizar o "coitadismo", que, no final das contas, termina por anular as pessoas. De resto, o coitadismo quase sempre anda na garupa de 'preceitos morais' que dispensam juízos lustrados pela razão.  Trata-se, sim, de ter sobre a mesa a temática do 'humanismo concreto', no sentido de garantir a afirmação autônoma de cada um como autor da sua própria história. E aqui, pelo caminho, encontra-se a questão da felicidade. Aí abaixo, segue um pequeno texto discutindo o assunto a partir de uma incursão na antiguidade clássica grega, com foco em Platão e Aristóteles. De rerum natura. É necessário apreender a captar a 'natureza das coisas'. Sócrates: "é sábio quem  coloca em si o que leva à felicidade ou dela se aproxima." 



Por Bento Silva Santos (UFES) 


O objetivo desta comunicação tem em vista esboçar, para além de todas as   diferenças, o que existe de comum nas éticas descritivas ou “empiristas” de Platão e Aristóteles a partir da estrutura fundamental da ética eudaimônica: a eudaimonia é entendida como posse de bens reais, dotados de um valor objetivo. Para Platão, esses bens são, além do conhecimento, a ordem, a medida, aproporção que, presentes em toda a realidade humana, contribuem para assegurar aos homens a vida feliz. Aristóteles acrescentará aos bens intelectuais certos bens exteriores, tais como a saúde e a reputação, poder, que são necessários para o exercício da espontaneidade moral. Ambos se aproximam na questão do “bem humano”: este, enquanto expressão de “felicidade”, pode ser tematizado a partir das analogias entre os termos em redor dos quais gravita pre- ponderantemente a ética grega: techne, agathon, arete. Quando os vinculamos ao conceito axial de eudaimonia, o “bem humano” aparecerá como característica principal da “felicidade”  humana nas abordagens mais descritivas e empiristas de Platão e Aristóteles. Por conseguinte, a “felicidade” historicamente realizável dependerá da posse de bens reais aos quais a razão imporá uma justa medida (Político), um meio termo (Ética a Nicômaco), uma mistura ou combinação de prazer e inteligência (Filebo), uma mistura das distintas Constituições (Leis).

1. A ética “empirista” de Platão

Segundo o consenso unânime dos autores, dois temas fundamentais norteiam a reflexão ético-filosófica de Platão: de um lado, o conhecimento e as condições que o tornam possível e, simultaneamente, a natureza metafísica do que é conhecido (“Como posso conhecer como devo viver?”); de outro lado, a questão socrática fundamental que tematiza a importância da moralidade para a vida feliz e as condições necessárias de sua realização na polis: Como eu devo viver?”. A pretensão de uma compreensão racional do eu, formulada pela pri- meira vez por Sócrates nos diálogos primitivos, fez com que Platão buscasse um fundamento filosófico da abordagem racional de seu mestre conectando-a com o conhecimento da realidade inteligível, que é a Idéia do Bem. O conhecimento do Bem e sua interiorização constituem a resposta platônica à questão normativa socrática: “Como eu devo viver?” A verdadeira “felicidade, segundo as reflexões ético-políticas dos livros centrais da República, reside na forma de existência consagrada ao conhecimento do Bem. Este ideal filosófico, portanto, seria o verdadeiro ideal humano do viver, no sentido de assemelhar-se a Deus enquanto é possível”1. As respostas às questões normativas e epistemológica dependem, respectivamente da doutrina de Platão sobre a conexão entre  virtudes e felicidade, bem como de sua interpretação sobre o conhecimento, opinião e ciência2.

Em relação aos diálogos de Platão, a problemática presente no tema desta reflexão poderia ser formulada com as seguintes perguntas: como relacionar a ontologia da maturidade, mais voltada ao conhecimento das Idéias e de sua geração, com as reflexões sobre as ações humanas?3 Como em Platão se     modificou a questão ética associada ao problema cósmico e metafísico com as noções de kosmos e taxis4 para o “bem” ético definido nos diálogos tardios como metrion? Se o conhecimento do Bem absoluto preconizado na República é a suprema Idéia que norteia as vertentes das ações humanas (gnoseológicas, éticas, estéticas, políticas, técnicas) em direção a uma vida feliz na prática da virtude, Platão terá descortinado um pessimismo acerca da viabilidade prática deste princípio fundamental em suas obras da velhice? Em que medida, portanto, se configu- ram as continuidades e descontinuidades entre as aplicações éticas de Platão sobre a noção de “intermediário” (justa medida, proporção, mistura dos elementos, meio-termo, etc.) e as éticas mais descritivas e “empiristas” de Aristóteles?5
As semelhanças com as éticas aristotélicas se tornam evidentes a partir do estudo dos últimos diálogos de Platãoque tematizam novos aspectos na postura idealista e metafísica conquistada a partir do ensinamento socrático que inaugurou no ocidente a reflexão ética organizada como uma ciência do bem: do exame do Bem em si nos livros centrais da República7, Platão se voltará ao e- xame do bem humano concreto. Do estudo das últimas fontes constitutivas da moralidade na esfera metafísica – relação com o Bem absoluto – passará a con- siderar descritivamente os constitutivos imediatos do bem humano in facto esse. Neste sentido, lendo os últimos diálogos isto é, o Político, o Filebo, o Timeu e as Leis -, que se supõe tradicionalmente posteriores à República, verificamos que a grandiosa síntese metafísica e epistemológica sobre a Idéia do Bem se desintegrou8. É impossível que o Bem absoluto se realize neste mundo9. Uma mudança notável se realiza: os aspectos teórico e prático da filosofia do conhe- cimento em Platão estão agora separados. No entanto, Platão permanece fiel à diretriz dada pelas analogias socráticas. Os elementos que descritivamente e como que a posteriori Platão descobre no Bem são a ordem, a medida, a pro- porção, a reta combinação ou mistura dos elementos, a harmonia; esses ele- mentos são como o leitmotiv ético dos diálogos tardios, mas quase todos estavam de certo modo implícitos, ou às vezes explícitos, na analogia técnica tão habitual em Sócrates. A missão da técnica consiste em estabelecer ordem, me- dida, proporção, harmonia, etc. entre elementos dispersos.

Neste sentido, é assim significativo o posicionamento mais realista no Político, onde Platão introduz o tema da justa medida” ou proporção, to metrion, que retornará em quase todos os diálogos tardios e que, sem dúvida, é o ante- cedente imediato da famosa mesotes aristotélica10. A medida é algo que pode aplicar-se a tudo que admite excesso ou defeito; mas deve-se distinguir duas classes de medida: a primeira, que é mera comparação de diversas grandezas entre si que é o que se faz ao “medir” algo com um padrão de longitude, ca- pacidade, peso, etc.; a segunda, que se faz com “relação às necessidades es- senciais do devir” (kata ten geneseos anankaian ousian, 283 d)11: Em outras palavras: podem estabelecer-se toda espécie de medidas relativas por comparação entre diversas grandezas; mas um tipo de medida que é, em certo sentido, absoluta, pois responde ao que exige a essência de cada coisa: cada coisa exige por sua essência determinadas qualidades em determinado grau, e é o excesso ou defeito em relação a esta medida o que determina o que está bem ou mal nas coisas. Se a Idéia do Bem representava a objetivação no plano metafísico do sumo valor, a justa medida representa uma objetivação semelhante no plano concreto. Isto porque se supõe que esta justa medida é algo objetivo e plena- mente determinado na ordem dos valores. A justa medida é o bem próprio de cada essência, e a justa medida para o homem consiste em realizar em todas as suas ações o bem que lhe corresponde por sua essência.
Trata-se, portanto, de dois tipos de metrética: um de caráter quantitativo
e matemático, que vem a ser a mensuração do mais e do menos nas suas rela- ções recíprocas, segundo a relação de grande e pequeno (exemplos: comprimento, largura, profundidade, espessura, velocidade e os seus contrários), e outro de caráter ontológico-axiológico, que é a mensuração do mais e do menos em relação ao justo meio, segundo a medida necessária para a geração das coisas e segundo o que faz com que exista o bom e o mau (exemplos: conveniente, oportuno, devido e tudo o que implica o meio entre os extremos).

2. As éticas de Aristóteles12

Se Platão ofereceu sua grande tentativa de “salvar” a vida do homem ne- gando todo valor ao mundo da mutabilidade e do contingente, à vida das pai- xões, aos bens necessariamente efêmeros em sua grandiosa síntese metafísica da Idéia do Bem, a autocrítica e a revisão filosófica de seu pensamento na fase tardia redimensionaram a sua teoria ética: nos diálogos de seu último período de produção literária, Platão lança elementos que permitirão reabilitar o valor dos bens humanos que, sendo mutáveis e instáveis, não deixam, porém, de ser componentes indispensáveis de uma vida boa. É o caso das éticas de Aristóteles. Na Ética a Nicômaco, considerada como um manual para a felicidade, o discípulo de Platão estabelece desde o início da obra sua primeira “definição”:  O bem do homem vem a ser uma atividade da alma de conformidade com a virtude, e se as virtudes são várias, de conformidade com a melhor e mais completa entre elas, e ademais devemos acrescentar que tal atividade deve estender-se por toda a vida”13. Assim, o primeiro livro da Ética a Nicômaco contém passagens que indicam a necessidade de bens externos (sendo a virtude o bem interno por antonomásia), cuja presença na vida do homem contribui essencialmente para a sua felicidade:“Por que não diríamos, então que é feliz o homem ativo de conformidade com a virtude perfeita e suficientemente aquinhoado com bens exteriores, não por um lapso de tempo qualquer; mas por toda a vida?”

Por conseguinte, segundo perspectivas epistemológicas semelhantes, e ao estabeleceram reflexões relacionadas com as ações humanas através da teoria do “bem humano15, Platão e Aristóteles propõem a busca da felicidade na vida virtuosa. De modo geral, a felicidade, da qual a virtude é uma condição necessária, requer também outros bens; trata-se do bem propriamente humano que, diferentemente do bem divino, monolítico e necessário, é radicalmente frágil e delicado, mas que integra essencialmente a busca da felicidade por parte do homem16; por mais contingente que seja em relação à sua forma, é inevitável o conflito entre os múltiplos valores que, com forças desiguais, atraem o ho- mem, e existem numerosos elementos da personalidade ou do caráter humano que não estão submetidos a uma deliberação prévia (boulesis) ou a uma escolha racional (proairesis)... Ora, admitindo que esta fragilidade ou vulnerabilidade a abertura ao risco e à incerteza, à paixão e ao sofrimento define radicalmente a condição humana, a insensibilidade diante da dor pessoal ou alheia implicaria mutatis mutandis perder a possibilidade de, enquanto humanos, sermos felizes.

3. Platão e Aristóteles
O exame comparativo das éticas de Platão e de Aristóteles sob o aspecto da célebre questão do Bem poderá levantar alguns problemas de grande relevância. Ambos os autores se distanciam quando determinam o significado ético do Bem. Em Platão, o conhecimento do bem permite ao filósofo julgar o que é o bem nos seres humanos e na totalidade do Universo. Antes de apresentar os fundamentos de sua ética nos livros centrais da República, Platão os prepara nos diálogos primitivos quando concebe a felicidade como fim último da ação moral e o agathon como conceito universal: a felicidade depende da ciência do bem e do mal (to agathon kai kakon) em todas as coisas. O objeto desta ciência (episteme) é universal: o eu prattein da moral é algo de incomensurável com o eu prattein da ação técnica (techne). Assim, por exemplo, no Cármides, chegou- se à conclusão de que a ciência que nos pode proporcionar a felicidade não é uma ciência da mesma categoria que a dos arquitetos ou sapateiros. Esta ciên- cia “real” ou “política” não é um objeto tão definido: no Cármides dizia-se que este objeto é simplesmente fazer o bem e o mal (174 b)17. No Eutidemo diz-se que é “tornar os homens sábios e bons” (292 b).
A preocupação socrática com o estabelecimento de uma techne da ação
humana18 como tal induziu Platão a criar uma epistemologia e uma metafísica: assim como a medicina abre o caminho para a fisiologia e a pressupõe como condição essencial, da mesma forma a ética pressupõe em sua teleologia uma concepção ontológica. A superação do paradigma técnico (Craft-analogy)19 e- merge no Górgias (464 c-465 a)20  com a racionalização ou sublimação do con- ceito de techne e, especialmente, no Ménon com uma estrutura mental centrada no conhecimento das matemáticas21. Sob o influxo analógico do bem técnico


4 - Ética  e Felicidade” em Platão  e Aristóteles: semelhanças,  tensões e convergências                                   

(superado enquanto paradigma para a moral especialmente a partir do Ménon), fim objetivado de um processo teleológico concreto, chega-se nas obras da maturidade (cf. República) à objetivação do Sumo Bem como objeto absoluto e necessário do processo teleológico universal do ser. Em suma: Platão reivindica, em sua doutrina sobre a Idéia do Bem, uma pretensão ontológica universal como fim último e princípio primeiro das razões do agir.
Em seus tratados de ética, Aristóteles critica Platão por sua interpretação ontológica universal da doutrina sobre a Idéia do Bem e a integração, nesta sistematização metafísica, do problema da arete em geral22. Aristóteles propôs uma concepção pluralista e deu ao conceito de bem uma estrutura analógica, sem, porém, perder de vista a hierarquia dos bens estabelecida de acordo com as exigência da natureza racional da praxis. Conseqüentemente, a questão so- crática da virtude seria incompatível com a questão universal do agathon que visa a dialética platônica. Desta problemática surgem inevitavelmente alguns questionamentos importantes:
Como entender o interesse de Platão pelo mundo da geração e corrup- ção, da falibilidade e da mutabilidade nos últimos diálogos? O retorno aos temas da filosofia socrática teria como causa a “crise metafísica” surgida com o Parmênides 128 e-130 a? Se a doutrina da “justa medida” do Politico representa o reconhecimento do ser limitado na ordem dos valores, como paralelamente no Sofista admitiu a existência do não-ser para avançar o discurso, um exame do sentido “ético” dos últimos diálogos não contribuiria para ver em Platão um homem que esboça um outro modo de filosofar ao qual o diálogo se verifica cada vez menos apropriado -, um modo que parte de problemas concretos, que leva em conta o trabalho de terceiros? Ora, este procedimento se assemelha incontestavelmente ao de Aristóteles.

A impostação mais realista da ética aristotélica não se assemelharia ao in- teresse pelo “bem humanodos últimos diálogos de Platão, nos quais o autor impôs uma socialização ou “politização à ética socrática individualista e introduziu o tema da justa medida ou proporção, to metrion? Já o se espera, como pre- tendia Sócrates, que cada indivíduo particular tenha autêntica ciência do bem ou da medida; basta que a tenha o político que há de governar os demais. O objeto da arte ou técnica política o as artes “concernentes à justa medida, ao conveniente, ao oportuno, ao devido, e tudo o que se estabelece como um termo médio (to meson) entre dois extremos. Ora, esta doutrina platônica sobre a “justa medi- da é o embrião de toda a ética aristotélica, e Platão reiteradamente insiste na idéia de que a verdadeira felicidade dependerá da devida subordinação e harmonia entre as três classes de bens: bens da alma, bens do corpo e bens inferiores.

Enfim, se ambas as reflexões coincidem em uma abordagem ética mais descritiva e “empirista” sobre o bem humano, e levando em conta o verdadeiro drama vital do homem que experimenta sentimentos e paixões em constante conflito, não poderíamos aceitar que a ética de Platão e Aristóteles consistiria no conhecimento e na compreensão das condições limitativas da ação humana na busca da felicidade? A filosofia moral, neste sentido, consistiria igualmente não só em reconhecer na ambigüidade das ações humanas a sua profundidade e complexidade, mas também em responder às suas condições limitativas pela transformação em condições de possibilidade de atingir uma vida consumada em sua maturidade e florescimento na virtude?

Referências 

1 – Platão, Teeteto, 176a
2 Cf. T. IRWIN, Plato’s Ethics. Oxford,1995, 3-4. Uma vez que Platão julga que o conheci- mento é possível se postulamos as Idéias para prover a base do conhecimento, sua resposta à questão epistemológica exige uma resposta às questões metafísicas sobre as Idéias. Supondo os elementos essenciais sobre a Teoria das Idéias, remeto às discussões críticas do volume de T. IRWIN (ed.) Classical Philosophy 4: Plato’s Metaphysics and Epistemology. New York-London,1995, 173-302.
3  Por exemplo, a relação com as ações humanas ditas virtuosas a partir da noção de
prazer no Filebo: Sócrates propõe atingir a verdade naquilo que diz respeito a assegurar aos homens a vida feliz (cf. Filebo 11d). Cf. também COSENZA, P. (ed.) Il Filebo di Plato- ne e la sua fortuna. Napoli, 1996.
4 Cf., por exemplo, a analogia entre o ethos e a ordem universal no Górgias (507 e-508 a) de Platão.
5 Cf. a obra clássica de H. KRÄMER, Arete bei Platon und A
6 Tenho em vista fundamentalmente os seguintes diálogos: o Político, o Filebo, o Timeu e as Leis. Entre os estudos mais significativos sobre a ética platônica (cf. T. IRWIN, Plato’s Moral Theory. The Early and Middle Dialogues.Oxford,1977 (cf. também nota anterior); G. VLASTOS, Socrates: Ironist and Moral Philosopher. Cambridge,1991; T. IRWIN [ed.] Clas- sical Philosophy 3: Plato’s Ethics. New York-London,1995; J. ANNAS, Platonic Ethics, Old and New. Ithaca-London, 1999), não tem merecido a devida atenção o sentido “ético” dos diálogos tardios. Daí a importância de examinar como se configura a chamada ética “em- pirista” ou descritiva de Platão em sua última fase de produção literária.
7  Cf. PLATÃO, República 504 a-505 b; 507 a-509 c. A propósito dessas duas passagens
emblemáticas sobre a Idéia do Bem, cf. M. VEGETTI, L’Idea del Bene nella Repubblica di Platone, Discipline Filosofiche 1 (1993) 207-230; R. FERBER, Platos Idee des Guten.Sankt Augustin,1989, 49-148.
8  Cf. J. ANNAS, Platon, em BRUNSCHWIG, J. & LLOYD, G. (ed.) Le savoir grec. Dictionnaire critique.Paris,1996, 742.
9 É este o enfoque mais realista que dá origem às Leis: IX, 874 e; 713 e; 853 d; 897 d;955 d.
10 Em Platão, as noções de “medida” (metrion) e de “meio-termo” (mesotes) estabelecem a hierarquia das artes (technai) ou dos saberes práticos, que têm por objeto a própria praxis, hierarquia que culmina na arte política (cf. Górgias 521 d). Diferentemente de Aristóteles, a concepção da techne normativa das ações, para Platão, está ligada estrutu- ralmente à Teoria das Idéias.
10 Em Platão, as noções de “medida” (metrion) e de “meio-termo” (mesotes) estabelecem a hierarquia das artes (technai) ou dos saberes práticos, que têm por objeto a própria praxis, hierarquia que culmina na arte política (cf. Górgias 521 d). Diferentemente de Aristóteles, a concepção da techne normativa das ações, para Platão, está ligada estrutu- ralmente à Teoria das Idéias.
10 Em Platão, as noções de “medida” (metrion) e de “meio-termo” (mesotes) estabelecem a hierarquia das artes (technai) ou dos saberes práticos, que têm por objeto a própria praxis, hierarquia que culmina na arte política (cf. Górgias 521 d). Diferentemente de Aristóteles, a concepção da techne normativa das ações, para Platão, está ligada estrutu- ralmente à Teoria das Idéias.
11  Cf. Y. LAFRANCE, ttique, mathématiques et dialectique en Politique 283 c-285 c, em ROWE, C.J. (ed.) Reading the “Statesman”. Proceeding of the III Symposium Platoni- cum.Sankt Augustin,1995, 90-94.

12  A título de exemplificação, entre as éticas do Corpus Aristotelicum (Ética a Nicômaco, Ética a Eudemo e Magna Moralia), privilegio somente a Ética a Nicômaco. Sobre a relação desta com as demais éticas, cf. C. MAZZARELLI, Aristotele. Etica Nicomachea. Milano,
1998, 40-44; P. DONINI, Aristotele. Etica Eudemia. Traduzione, Introduzione e Note. Roma-Bari,1999, V-XIV

13 ARISTÓTELES , Ética a Nicômaco I,7, 1098 a 16-18.
14 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco I,6, 1101 a 15-17.
15  Sobre a questão do bem humano” em Aristóteles, cf. J.M. COOPER, Reason and Hu- man Good in Aristotle. Cambridge,1975; R. KRAUT, Aristotle on the Human Good. Prince- ton, 1989.
16 Para uma abordagem sobre a virtude e a felicidade a partir das perspectivas da vulne-
rabilidade e da contingência, cf. M. C. NUSSBAUM, The Fragility of Goodness. Cam- bridge,1988;  N.  SHERMAN,  The  Frabric  of  Character. Aristotle’s Theory  of  Vir- tue.Oxford,1989.
17  Sobre o Cármides, cf. M.’F. HAZEBROUCQ, La folie humaine et ses remèdes. Platon, “Charmide” ou “De la modération”. Paris, 1997.
18 Sobre a analogia técnica na ação moral, cf. D. ROOCHNIK, Of Art and Wisdom. Plato’s Understanding of Techne. Pennsylvania, 1996
19  Cf. T. IRWIN, Plato’s Moral Theory..., 6-10 et passim; IDEM, Plato. Gorgias. Ox- ford,1979, 134-136.
20 Cf. G. REALE, Gorgia. Traduzione, Introduzione e Commento. Brescia, 1994, 73-75.
21 Cf. G. VLASTOS, Elenchus et mathématiques: un tournant dans le développement phi- losophique de Platon, em CANTO-SPERBER, M. (ed.) Les paradoxes de la connaissance. Essais sur le Ménon de Platon. Paris,1991, 50-80 (retomado em G. VLASTOS, Socrates. Ironist and Moral Philosopher, 107-131); cf. também I. MUELLER, Mathematical Method and Philosophical Truth, em KRAUT, R. (ed.) Plato.Cambridge,1997, 170-199.
22 A definição de arete na República é modificada em função da psicologia moral de Platão que põe em xeque o “intelectualismo socrático: o conhecimento do bem não fornece sempre por si uma razão de ser virtuoso e que é sempre possível agir irracionalmente ainda que voluntariamente. Se elementos não-cognitivos estão nas fontes da motivação do agir moral, então é preciso reformular a noção de “excelência moral”: cada virtude, ou qualidade da alma, é definida como um forma de equilíbrio ótimo estabelecida entre as avaliações, as emoções, as reações e os desejos pprios à cada parte da alma. Sobre a complexidade da tripartição da alma na República, cf. os artigos programáticos de J. M. COOPER, Plato’s Theory of Human Motivation e de M. WOODS, Plato’s Division of the Soul, em IRWIN, T. (ed.) Classical Philosophy 3: Plato’s Ethics, 97-115.117-141, respecti- vamente. Cf. também S. CAMPESE, Epithymia/epithymetikon, em VEGETTI, M. (ed.) Pla- tone. La Repubblica. Traduzione e commento 3: Livro IV.Napoli,1998, 245-286.

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 Fonte: http://www.puc-rio.br/parcerias/sbp/pdf/3-jorge.pdf