sexta-feira, 27 de junho de 2014

800 Anos de Língua Portuguesa - Manifesto



Extrato do 1º documento oficial escrito em língua portuguesa, o Testamento de D. Afonso II - em 27 de junho de 1214
A língua que falamos não é apenas comunicação ou forma de fazer um negócio. Também é. Mas é muito mais. É uma forma de sentir e de lembrar; um registo, arca de muitas memórias; um modo de pensar, uma maneira de ser – e de dizer. É espaço de cultura, mar de muitas culturas, um traço de união, uma ligação. É passado e é futuro; é história. É poesia e discurso, sussurro e murmúrios, segredos, gritaria, declamação, conversa, bate-papo, discussão e debate, palestra, comércio, conto e romance, imagem, filosofia, ensaio, ciência, oração, música e canção, até silêncio. É um abraço. É raiz e é caminho. É horizonte, passado e destino.
Na era da globalização, falar português, uma das grandes línguas globais do planeta, que partilha e põe em comum culturas da Europa, das Américas, de África e da Ásia e Oceania, com centenas de milhões de falantes em todos os continentes, é um imenso patrimônio e um poderoso veículo de união e progresso.
Em 27 de Junho de 2014, passam oitocentos anos sobre o mais antigo documento oficial conhecido em língua portuguesa, a nível de Estado – o mais antigo documento régio na nossa língua, o testamento do terceiro rei de Portugal, Dom Afonso II.
Nesse dia, queremos festejar esses oito séculos da nossa língua, a língua do mar, a língua da gente, uma grande língua da globalização. Fazemo-lo centrados nesse dia e ao longo de um ano, para festejar com o mundo inteiro esta nossa língua: a terceira língua europeia global e a terceira também das Américas, uma língua em crescimento em todos os continentes, a quarta mais falada do mundo, a língua mais usada no Hemisfério Sul. Celebramos o futuro.
Em qualquer lugar onde se fala Português, 27 de Junho de 2014

ABEL BAPTISTA, presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República (Portugal)
AFONSO CAMÕES, jornalista, presidente da Agência LUSA
ALBERTO DA PONTE, gestor, presidente da RTP - Rádio e Televisão de Portugal
ALEXANDRE MESTRE, advogado, ex-secretário de Estado do Desporto e Juventude (Portugal)
ANA FAZENDEIRO, advogada, Propriedade Intelectual e Tecnologias de Informação
ANA PAULA LABORINHO, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, presidente do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua
ANA PESSOA, ex-Procuradora-Geral da República e ex-Ministra da Administração Estatal, assessora do Presidente da República de Timor-Leste
ANTÓNIO FILIPE, Vice-Presidente da Assembleia da República (Portugal)
ANTÓNIO LOBO ANTUNES, escritor
ANTÓNIO MOTA, Presidente da Associação de Amizade Macau-Timor (RAEM)
ANTÓNIO PEDRO VASCONCELOS, cineasta
ANTÓNIO PINTO BASTO, fadista
ANTÓNIO VITORINO DE ALMEIDA, compositor, maestro, pianista e escritor
AURÉLIO SÉRGIO GUTERRES, Reitor da Universidade Nacional Timor Lorosae
BENDITO FREITAS, Ministro da Educação de Timor-Leste
BENJAMIM CORTE-REAL, professor universitário, presidente do Instituto Nacional de Linguística de Timor-Leste
CARLOS FARACO, professor titular de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná
CHRYS CHRYSTELLO, presidente da AICL - Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia
CYRO MIRANDA, senador, presidente da Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal (Brasil)
DIONÍSIO BABO, Ministro da Justiça de Timor-Leste
DOMINGOS SIMÕES PEREIRA, Primeiro-Ministro eleito da Guiné-Bissau
FERNANDO PINTO DO AMARAL, poeta, crítico literário e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, comissário do Plano Nacional de Leitura
FRANCISCO GUTERRES "LU-OLU”, presidente da Comissão de Preparação da Cimeira da CPLP, ex-Presidente do Parlamento Nacional (Timor-Leste)
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS, escritor, ex-secretário de Estado da Cultura (Portugal)
GILVAN MÜLLER DE OLIVEIRA, diretor executivo do IILP - Instituto Internacional da Língua Portuguesa
HÉLDER LUCAS, embaixador, chefe da Missão de Angola junto da CPLP
INÊS DE MEDEIROS, atriz, deputada à Assembleia da República (Portugal)
ISABEL PIRES DE LIMA, professora catedrática de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ex-ministra da Cultura (Portugal)
JACINTO LUCAS PIRES, escritor
JOÃO ALVIM, editor, presidente da APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros
JOÃO DAVID NUNES, radialista e gestor, diretor do Centro Nacional de Cultura
JOÃO PINTO DE SOUSA, editor
JOÃO VEIGA GOMES, advogado, Presidente da APILOP - Associação para a defesa da Propriedade Intelectual nos Países de Língua Oficial Portuguesa
JORGE BARRETO XAVIER, secretário de Estado da Cultura (Portugal)
JORGE CARLOS FONSECA, Presidente da República de Cabo Verde
JORGE RANGEL, presidente do Instituto Internacional de Macau
JORGE VAZ DE CARVALHO, poeta, ensaísta e tradutor, cantor lírico, professor e Coordenador Científico de Estudos Artísticos da Universidade Católica Portuguesa
JOSÉ AUGUSTO BERNARDES, professor catedrático de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras de Coimbra e diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
JOSÉ CARLOS VASCONCELOS, jornalista, diretor do Jornal de Letras
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, escritor
JOSÉ LUIS GUTERRES, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação de Timor-Leste
JOSÉ MÁRIO COSTA, jornalista, criador do Ciberdúvidas
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO, advogado e deputado, ex-presidente das Comissões de Educação, Ciência e Cultura e de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas da Assembleia da República (Portugal)
KAY RALA XANANA GUSMÃO, Primeiro-Ministro do Governo de Timor-Leste
MADALENA NEVES, embaixadora de Cabo Verde em Portugal e chefe da Missão de Cabo Verde junto da CPLP
MANUEL PERES MACHADO, presidente da direção da Escola Portuguesa de Macau
MARGARITA CORREIA, professora de Linguística na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, vice-presidente do ILTEC
MARI ALKATIRI, ex-Primeiro-Ministro de Timor-Leste
MARIA AMÉLIA ANTÓNIA, presidente da Casa de Portugal em Macau
MARIA BARRADAS, responsável do serviço de Língua Portuguesa da Euronews
MARIA BOCHICCHIO, filóloga, doutorada em Literatura Portuguesa, professora na Universidade de Coimbra
MARIA DA CONCEIÇÃO PEREIRA, deputada à Assembleia da República (Portugal)
MARIA CRISTINA PACHECO, mestre em Literatura, ex-docente de Literaturas Africanas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, doutoranda em Estudos Africanos, bolseira da FCT
MARIA HELENA MIRA MATEUS, professora (jubilada) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, presidente do ILTEC
MÁRIO VILALVA, diplomata, embaixador do Brasil em Portugal
MIGUEL HONRADO, gestor cultural, presidente da EGEAC - Empresa de Gestão de Equipamentos e Ação Cultural do município de Lisboa
MURADE MURARGY, embaixador (Moçambique), Secretário-Executivo da CPLP
PAULO TRANCOSO, produtor de cinema e audiovisual, presidente da Academia Portuguesa de Cinema
PEPETELA, escritor
ROBERTO MORENO, investigador e professor (Brasil), fundador e presidente da Fundação Geolíngua (Guiné-Bissau)
ROQUE RODRIGUES, embaixador e ex-Ministro da Defesa (Timor-Leste), Vice-Presidente da Comissão de Preparação da Conferência de Chefes de Estado da CPLP
RUI REININHO, músico, vocalista dos GNR
SARA RODI, escritora
TAUR MATAN RUAK, Presidente da República de Timor-Leste
VICENTE GUTERRES, Presidente do Parlamento Nacional de Timor-Leste
VÍTOR SERPA, jornalista, diretor do jornal A Bola



sábado, 21 de junho de 2014

'Adeus: na lucidez dos passos exatos, uma luz velada'

O luso Vergílio Ferreira é um autor de muitas faces. Na sua perspectiva de existencialismo, questiona a condição existencial do ser humano envolvido em suas tragédias, nas decisões tomadas, na busca de opções, consubstanciando uma inexorável solidão. Mas, vamos ao terreno do conto. Aí ele praticamente estiola o modelo tradicional de conto, atribuindo-lhe um lirismo refinadíssimo. É o que vemos, por exemplo, no conto Adeus, que a seguir reproduzo. 



Não lhe pedi que viesse. Pedi-lhe só que às dez da noite, e pela última vez, a sua lembrança me esperasse ao caminho. Cheguei cedo e sentei-me. Quando soasse a hora, eu queria senti-la ao pé de mim, não bem no seu corpo, não bem nas suas palavras, mas apenas naquele sossego harmonioso que tornava o mundo perfeito. No momento combinado, eu havia de respirar o sonho de quando não sabia que era sonho.
Tudo isto está errado. Vejo-lhe daqui o erro fechado e exacto como um cubo de pedra. Mas sei que lá dentro não há erros para fora. Por isso, espero. Não lhe pedira que viesse. Também não tinha pedido a lua, e a lua veio, precisamente, quando pensei que era bom haver lua. Não fiquei pois surpreendido, quando, à hora marcada, no caminho que vai à fonte, Marta apareceu tão leve como a sua lembrança. Percebi então que as mimosas rescendiam através da noite sem medos. E que havia em roda pinheiros e veios de água e que eu estava ali no meio de tudo.
Agora, mais perto de mim, ela trazia já um cântaro no braço. Mas não parara na fonte e subira o carreiro até onde, do fundo de sua casa, devia despedir-se para sempre do meu destino. Quando saiu da sombra e me viu, parou. A lua vestia-a de noivado, a cauda do véu estendia-se por toda a terra que tínhamos pisado juntos. Assim queda, em pé diante de mim, eu sentia-a verdadeira como tudo o que era verdade à nossa volta.
- Paulo!
O caminho da serra corre ali aos nossos pés. Olho a sua mancha branca, direita por entre os pinhais, até ao alto de uma colina. Depois é tudo a vaguidão da noite, não o escuro de passos audazes, nem a lucidez bastante dos passos exactos, mas apenas uma luz velada, boa para todos os caminhos de quem não escuta as razões do caminhar.
Então ela pousou o cântaro e o restolho rangeu quando se sentou. Eu tinha a certeza de que ela iria falar de qualquer coisa misteriosa e longínqua, qualquer coisa já morta, mas onde pudéssemos, dali donde estávamos, ver-nos ainda vivos, sem pensarmos no depois do que agora podíamos pensar. Tinha a certeza de que ela me levaria para um presente sem memória do passado nem receio de um passado no futuro. Eu estava ali de mãos abertas e olhos dóceis, encostado a um tronco de pinheiro. Então ela contou dos patos que criara nessa primavera, das manhãs altas de sol, do pão que vira semear. E eu gostei, naquela hora harmoniosa, de que ela falasse nos patos, no pão e nas manhãs.
Agora todo o campo e toda a serra abriam num místico perfume a lua e a criação. Não fugíamos propriamente à dor do momento; apenas escavávamos com os dedos o chão da nossa angústia, para tocarmos o vento que o cobrira. Depois ficámos de novo em silêncio. Tínhamos mil coisas a dizer, mas todas elas nos ficavam tão perto que podiam estrangular-nos se quisessem. Era conveniente dizer delas não o corpo rigoroso de unhas e dentes, não os pés de botas cardadas, mas apenas o bafo ligeiro ou os olhos que à distância não fossem senão olhos de olhar. Por isso ela me perguntou, quase assustada, quase supersticiosa de turvar os rios e lagos de lua, coalhados a nossos pés:
- Paulo! Porque escolheste esta vida?
A aldeia estava ao fundo, quieta, sem respirar, os cães uivavam das eiras para o céu. Ao longe, na serra em frente, um comboio silvou pela noite fora. Ouvia-se perfeitamente o martelar das ferragens e o apito. E eu pensei: «Vai chover. Amanhã ou depois chove. Quando se ouve o comboio, chove sempre.»
- Porque escolheste esta vida?
Agora a pergunta era tão clara que eu não achei uma sombra para me esconder. De outras vezes, outra gente me perguntara o mesmo. E nunca soube responder. Falavam-me de fora, de outro mundo, com uma linguagem diferente. E assim, as nossas ideias jogavam à cabra-cega. Eu próprio, quando queria entender-me, espreitando-me donde me não suspeitasse, não tinha razões talhadas à medida do meu sonho. Os princípios do senso, da justiça, talvez tivessem envelhecido e não pudessem acompanhar o meu anseio. Só metido dentro de mim eu me compreendo todo e sem razões. Hei-de um dia tombar e arrefecer. Talvez então seja possível a outros ler em rigor o que se imobilizou da minha agitação. Até lá, é difícil. Qualquer coisa me está sempre forçando os limites, mesmo da regra que julgo dar-me. Um vento largo ergueu-se não sei donde e arrebatou-me. Lembra-me bem como tudo aconteceu. Mas quando no que eu fui, nada me parece que tenha acontecido nada de extraordinário. É como se eu tivesse já nascido para isso. Meu pai às vezes dizia: «hoje vou ter sorte»; ou: «hoje vai-me acontecer uma desgraça». O mais difícil era convencer-se de que seria assim. Porque depois, durante o dia, só tinha de andar atento para achar a sorte ou a desgraça que profetizara. Mas nunca fui capaz de entender que arranjos da vida o faziam acreditar assim nos anúncios do seu destino. Havia sol ou chuva no céu, nem sempre o comer estava pronto a horas, às vezes o filho mais novo chorava sem razões adultas, ou qualquer coisa parecida. Mas é difícil pensar que factos desses decidissem das certezas de meu pai.
- Como explicar-te porque parti?
Tenho pés para andar e olhos para ver. Posso sentar-me ou posso fechar os olhos e dizer que não há sol nem estradas. Mas eu sei que há estradas e sol e os olhos vêem e os pés andam. Por mais que eu queira, quando sei por dentro que uma coisa está certa, eu tenho de saber que está certa. E ainda que os outros saibam que está errada, isso não me ajuda.
- Não me ajuda nada, Marta.
Mas como convencê-la? As razões são tanto o que somos, que só nascendo outra vez as poderemos renegar. Talvez Marta o acreditasse em fim, porque, sentada, enlaçou as mãos à frente dos joelhos unidos e se calou de vez. Já não tínhamos que dizer, mas o eco das nossas vozes e o vapor quente da nossa presença imobilizavam-nos a vontade. Um fluido estranho dissolvia-nos, e não era fácil assim acharmos o que nos tornava distintos. A lua vogava agora pela água alta do céu. Marta foi a primeira a erguer-se. Então eu ergui-me também e apertei-lhe as mãos devagar:
- Adeus!
Caminhei pela vereda branca, lavado numa pureza desconhecida, anterior à minha humanidade, e onde, no entanto, eu me sentia todo inteiro. Quando cheguei ao topo da colina, olhei ainda atrás a ausência de Marta. Mas lentamente, surpreso e todavia calmo, fui descobrindo Marta em pessoa, em pé, no meio do caminho, vestida de lua, esperando decerto como eu que toda a serra e toda a aldeia e tudo o que nos fora prometido ficasse enfim tão diferente como quando ainda não tínhamos nascido.
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Extraído de FERREIRA, Vergílio. Contos. 4 ed. Lisboa: Bertand, 1991.  

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Igor Leite - 'No Veneno da Bala'

Igor Leite é delegado em Pernambuco, e está a anunciar a escrita do livro de ficção 'No Veneno da Bala'. A seguir, reproduzo um breve trecho da primeira parte.

Igor Leite: Ficção, bala e veneno 
Depois dos tracejados vermelhos e enfumaçados, um estrondo contínuo e ensurdecedor. O céu tinha testemunhado a fúria de um míssil, que cruzou o oceano e a tarde, atingindo em cheio a Penitenciária de Segurança Máxima da cidade. Foi o primeiro ataque dos Estados Unidos da América (EUA) ao Brasil. Ninguém poderia imaginar. Seria o início de uma guerra de proporções e consequências inimagináveis?
Difícil dizer. De início, ao observar o céu, ninguém sequer entendeu coisa alguma. Parecia um desastre aéreo. Não seria a primeira vez em Pernambuco. Minutos depois e uma chamada urgente nos canais de televisão dava conta da realidade. Um repórter, em choque, narrava cenas de terror, apontando o local onde caíra o míssil e onde antes ficava a penitenciária. Agora não passava de um aterro de escombros.  Poeira cinzenta ainda escurecia o quarteirão, formando uma névoa onde apenas se viam pedras e alguns bombeiros em transe, revirando os escombros. O repórter, ainda confuso, dizia que o alvo seria um posto militar avançado da inteligência. Na penitenciária? Em Pernambuco? Ninguém entendeu muita coisa. Nem mesmo aquele jornalista, que vomitava as notícias em descrença.
O fato é que nada restou. O resultado foi a morte imediata de aproximadamente seis mil presos, uma dezena de carcereiros, oito policiais militares e uma quantidade de visitantes e advogados ainda desconhecida. Apenas vizinhos foram ainda socorridos, com lesões leves e sequelas psicológicas irrecuperáveis (...).
Era o caos. E o delegado Aguiar, assim como o resto da população, tomava conhecimento das notícias pela imprensa. Aguiar estava em sua sala, folheando uma investigação, quando ouviu o estrondo. Correu da sala com a arma em punho, sem saber o que esperar. Não viu mais nada no céu. A coisa toda foi muito rápida. Ouviu então apenas o relato dos transeuntes, que viram o jogo de fogo e som que cortou o céu (...).