Da obra original de Lucien Golmann, Celso Frederico fez vir a lume o texto aí abaixo.
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Pintura afiliada ao Movimento Romântico |
Por Celso Frederico
Os estudos literários representam um momento
importante na produção goldmanniana. As contribuições do autor para a
sociologia da literatura são inegáveis e seus numerosos estudos particulares
permanecem uma referência viva para os especialistas. Justamente nesse núcleo
central da obra goldmanniana as questões metodológicas alçam o primeiro plano1.
O materialismo histórico ou o
estruturalismo-genético (expressão que substitui a primeira nos textos da
década de 1960) é considerado um "método geral" válido para todas as
ciências humanas. A criação cultural e, especialmente, a literária, constitui
um campo privilegiado de aplicação daquela metodologia.
Goldmann considera uma característica universal do
comportamento humano a tendência à coerência. Os homens, perante os desafios
colocados pela realidade exterior, procuram agir no sentido de interferir nos
acontecimentos através de respostas às questões com que deparam. Esse empenho
para adaptar-se à realidade segundo as conveniências humanas faz com que os
indivíduos tendam a fazer de seu comportamento uma "estrutura
significativa e coerente". Tal estrutura não é um dado atemporal, como no
estruturalismo formalista. Há um processo prévio de elaboração, de gestação, de
gênese das estruturas significativas. Além disso, a ação do homem
modificando cotidianamente a realidade resulta em um processo contínuo de
desestruturação das antigas estruturas e criação de novas. Com isso, o caráter
significativo do comportamento humano, sua tendência natural à coerência, não é
uma adequação mecânica às estruturas fixas, como pretendem os estruturalistas
não-genéticos.
Por outro lado, a formação das estruturas
significativas não deve ser considerada uma façanha individual. Elas,
ao contrário, são o resultado complexo de um esforço coletivo, da ação das
classes e grupos sociais que se constituem num processo amplo de relacionamento
com o mundo, de adaptação e de respostas aos desafios da vida social.
A tendência à coerência e o caráter coletivo da
elaboração das estruturas significativas já anunciam o caminho
por onde irá trilhar a sociologia da literatura de Goldmann: as idéias
piagetianas sobre a "assimilação" e "acomodação" do
indivíduo ao meio social. Piaget desenvolveu uma elaborada teoria sobre a
"natureza adaptativa da inteligência". Segundo esse autor, o
indivíduo, desde a infância, constrói suas estruturas mentais por meio da
interação com o grupo social, num processo ininterrupto de acomodação e
assimilação que conhece diversas fases, durante as quais ele assimila novas
estruturas de percepção. Goldmann retoma o processo de construção das
estruturas cognitivas para aplicálo às relações entre o autor e o grupo social.
Aquele interage com o grupo social e procura responder às suas expectativas: a
criação artística surge como uma resposta significativa e articulada, como
expressão das possibilidades objetivas presentes no grupo social. Essa resposta
significativa, segundo observou Sami Naïr,
funda o autor enquanto mediação constitutiva
através da qual a consciência possível de um grupo se encarna de maneira
coerente na obra literária. Inversamente, essa mediação constitutiva é o meio
pelo qual o sujeito individual, imediatamente criador, entra em acomodação, em
equilíbrio e assimila, sempre em sentido piagetiano, as categorias mentais possíveis
do grupo, sujeito transindividual. Não há, portanto, homologia entre a
estrutura biográfica ou sociológica do autor e aquela do grupo, mas entre as
estruturas mentais categoriais da obra enquanto virtualidade daquelas do grupo2.
A aplicação do materialismo histórico no estudo da
criação cultural em geral e da literatura em especial afirma a existência,
nesses domínios, de uma coerência levada ao extremo que "se aproxima de um
fim para o qual tendem todos os membros de um grupo social"3.
O ponto de partida de nosso autor é o Lukács de A
alma e as formas e A teoria do romance. Essas obras,
segundo Goldmann, marcam uma ruptura nos estudos de sociologia da literatura.
Até então, os estudiosos consideravam a obra literária como um reflexo da
realidade social, limitando-se a procurar uma correlação entre a obra e o conteúdo da
consciência coletiva. Esse procedimento só é válido para as obras menores,
aquelas que reproduzem a realidade social nos moldes do naturalismo, com
exatidão de detalhes e pretensões de completa objetividade, mas cujo valor é meramente
documental. Para as verdadeiras obras-primas, entretanto, em que a imaginação
criadora dá altos vôos, esse método reducionista tem pouco a dizer.
O jovem Lukács subverteu essa perspectiva ao buscar
uma nova correlação entre literatura e sociedade. Tal correlação não se dá mais
no plano do conteúdo, mas da forma, da correspondência
entre as categorias que estruturam a criação literária e a consciência
coletiva. Essas categorias caracterizam-se basicamente por suacoerência,
compreendida ainda de modo metafísico e a-histórico pelo Lukács de A
alma e as formas. Goldmann submete a forma a um tratamento
historicista, aprofundando, nessa direção, as análises que já apareciam de modo
incipiente em A teoria do romance.
A historicização da forma levou-o
a substituir a vaga consciência coletiva por um novo sujeito,
formado pelas condições históricas e sociais. Mas o sujeito, nas ciências
humanas em geral, não deve ser concebido em rígida oposição ao objeto, como
ocorre nas ciências naturais. O sujeito que observa a sociedade e reflete sobre
ela, seja o cientista social ou o artista, faz parte dessa mesma sociedade. A
reflexão, portanto, "não se faz do exterior, mas do interior da
sociedade". Por outro lado, a reflexão "é em grande medida organizada
pelas categorias da sociedade", e o objeto estudado "é um elemento
constitutivo, e mesmo um dos mais importantes, da estrutura do pensamento"4.
Quem é esse sujeito socialmente constituído cuja
consciência é organizada pelas categorias da sociedade? Antes de ensaiar uma
resposta, Goldmann procurou contrapor sua sociologia da literatura à
psicanálise freudiana. Inicialmente, um elemento comum parece aproximar as duas
disciplinas: ambas consideram o comportamento humano como dotado de um
"fragmento de sentido" que se esclarece quando integrado no conjunto
do qual faz parte. O comportamento, quando conectado a uma estrutura
englobante, revelase significativo. Essa estrutura, por sua vez, não é
invariável: ela formou-se geneticamente e está em permanente mudança. Esses
pontos coincidentes permitem que a sociologia goldmanniana e a psicanálise
freudiana possam ser consideradas como pertencentes ao estruturalismo-genético.
As semelhanças, entretanto, param aí. O que separa
as duas disciplinas é a questão do sujeito. A psicanálise, assim, como o
cartesianismo, a fenomenologia e o empirismo, ficou restrita ao sujeito
individual. Na psicanálise, esse sujeito é determinado pela biologia.
Concebido, dessa forma, o sujeito vê a sociedade como um meio e
os demais indivíduos como objetos, objetos de frustração,
satisfação dos desejos ou obstáculos a eles.
Contra o culto do indivíduo, Goldmann elege como
sujeito uma coletividade - o sujeito transindividual. Um exemplo recorrente
através do qual Goldmann explica esse sujeito coletivo é a ação exercida por
três indivíduos que carregam um piano. Quem é o sujeito da ação? Certamente,
nenhum deles considerados separadamente e sim a realidade nova criada pela ação
conjugada em que cada um dos participantes é parte integrante do verdadeiro
sujeito da ação. Estamos aí perante um conjunto, perante relações
intrasubjetivas que envolvem os participantes e que os transcendem. A
participação consciente do indivíduo, sua imersão na atividade comum, distingue
a concepção goldmanniana da "consciência coletiva" de Durkheim - um
consciência exterior aos indivíduos e que se volta contra eles para integrálos
coercitivamente nas engrenagens sociais.
O exemplo dos três homens que carregam o piano é
ilustrativo da existência de um sujeito coletivo, e isso vale para todo
pensamento e ação social e cultural. O estudo da literatura não deve, por isso,
restringir-se às relações entre o escritor e a obra, pois, se assim fizer, a
análise fornecerá apenas uma imagem da "unidade interna da obra", mas
não "uma relação do mesmo tipo entre essa obra e o homem
que a criou". O que se pode saber da estrutura psíquica de um autor morto
há tanto tempo? A análise sociológica, contrariamente, consegue
"destrinçar os elos necessários, vinculando-os a unidades
coletivas cuja estruturação é muito mais fácil de apurar e elucidar"5.
A ênfase na singularidade do escritor cede lugar ao
estudo sociológico, estrutural e genético, cuja "hipótese
fundamental" pressupõe que "o caráter coletivo da criação literária
provém do fato de as estruturas do universo da obra serem
homólogas às estruturas mentais de certos grupos sociais"6. Os grupos estruturam na consciência de
seus membros uma "resposta coerente" para as questões colocadas pelo
mundo circundante. Essa coerência (ou visão do mundo) é elaborada pelo grupo
social e atinge o máximo de articulação através da atividade imaginativa do
escritor. A obra, assim, permite ao grupo entender mais claramente suas
próprias idéias, pensamentos, sentimentos. Esta é a função da arte: favorecer a
"tomada de consciência" do grupo social, explicitar num grau extremo
a "estrutura significativa" que o próprio grupo elaborou de forma
rudimentar para orientar o seu comportamento e a sua consciência.
Percebe-se aqui a diferença entre a abordagem
psicanalítica da criação artística e a sociologia de Goldmann. Na interpretação
de Freud, a criação artística é sublimação, é o resultado de um
processo inconsciente que visa a compensar as frustrações libidinais do indivíduo
fazendo aflorar aquilo que a consciência havia recalcado. Para Goldmann,
contrariamente, a criação cultural é movida pela aspiração a um máximo de
coerência, a um máximo de consciência possível. Essa
intencionalidade não é a vingança do recalcado contra as censuras impostas pela
consciência, mas o trabalho da própria consciência em busca do esclarecimento.
A aspiração à coerência projeta um mais-além, uma antecipação da consciência em
relação à imediatez. A perspectiva de futuro como dado integrante da vida
social não existe para a psicanálise, prisioneira da eterna viagem ao passado,
onde repousariam os segredos recalcados do homem. O passado explica o presente,
e o futuro é uma dimensão inexistente. Goldmann diversas vezes repetiu que a
única vez que Freud se referiu ao futuro foi ao nomear uma de suas obras de O
futuro de uma ilusão, mostrando, assim, que "essa ilusão não tem
futuro"...
A coerência perseguida pelo artista e tomada pelo
jovem Lukács e por Goldmann como critério para se avaliar a criação literária,
remete a uma concepção de arte originária de Kant:
a definição da obra válida como tensão
ultrapassada, num plano não conceitual, entre a extrema
unidade e extrema riqueza, entre de uma parte a
multiplicidade de um universo imaginário complexo e, de outra parte, a unidade
e o rigor da criação estruturada7.
Goldmann aceita essa conceituação, porém com a
retificação trazida por Hegel e pelo marxismo que vêem a unidade como
decorrência de fatores sociais e históricos, e não algo atemporal. O
estruturalismo genético, abre, assim, o caminho para se estudar a
correspondência entre a unidade expressa pela criação cultural e a evolução da
estrutura de uma determinada sociedade, a unidade entre as estruturas mentais
ou categorias que organizam a consciência empírica dos grupos sociais e o
universo imaginário criado pelo artista. Importante ressaltar aqui o papel de mediação atribuído
às visões de mundo das classes sociais: são elas que se interpõem entre a vida
econômica da sociedade e as criações culturais.
O objetivo de uma sociologia da literatura é,
portanto, a busca das homologias, o estudo das estruturas
significativas presentes nos grupos sociais - o substrato social que
confere unidade à obra literária. O projeto de Goldmann procura transpor para a
literatura dois movimentos: o estudo da compreensão, isto é, da estrutura
significativa imanente da obra e a explicação, a
"inserção dessa estrutura, enquanto elemento constitutivo e funcional,
numa estrutura imediatamente englobante [para] tornar inteligível a gênese da
obra que se estuda"8.
Os textos goldmannianos, contudo, concentraram-se
quase que exclusivamente no segundo momento. A busca da gênese das condições
sociais que tornaram possível a obra de arte, o momento da explicação,
consumiu a atenção de nosso autor. Suas incursões na vida literária e cultural
procuraram oferecer um mapeamento das visões do mundo e dos grupos sociais que
as estruturaram.
Goldmann objetivava realizar uma tipificação
sistemática das visões do mundo, tarefa que requereria a
contribuição de muitos pesquisadores. Sua militância no magistério levou-o a
incentivar estudos coletivos e interdisciplinares nessa direção.
Ciências humanas e filosofia9, o livro mais divulgado de Goldmann no
Brasil, apresenta um mapeamento detalhado das classes sociais e de suas visões
do mundo expressas nas criações filosóficas e literárias do século
XVII. Trata-se de um verdadeiro programa de trabalho e de um modelo para novas
pesquisas.
Cinco classes comparecem nesse painel da cultura
francesa nos tempos de Luís XIV: os grandes senhores, a nobreza da corte, a
magistratura, o terceiro estado enriquecido e o povo miúdo (artesãos e
camponeses).
Os grandes senhores (o autor
refere-se basicamente aos duques) viviam uma situação incômoda. De um lado,
assistiam impotentes às transformações sociais que lhes tiravam o poder; de
outro, não podiam partilhar dos novos valores do mundo burguês ascendente,
"mundo de egoísmo e de ambições mesquinhas". Por isso, diz Goldmann,
a realidade é muito próxima para eles, "muito
insuficiente e ao mesmo tempo muito potente para ser apreendida além do dado
imediato, do acontecimento e da psicologia". É esse o contexto social dasMemórias do
Duque de Saint Simon e das Máximas do Duque de La
Rochefoucauld.
A nobreza da corte vivia uma
situação especial: uma vida de prazeres e de moral sexual livre, tanto para os
homens como para as mulheres. A plena aceitação de uma ordem que os beneficiava
traduz-se num epicurismo expresso na filosofia, por Gassendi e, no plano
literário, por Molière. As peças deste autor revelam com clareza a posição da
nobreza da corte e sua visão crítica sobre as demais classes. O
avarento satiriza o burguês que faz do dinheiro a única finalidade da
vida; O tartufo volta-se contra o falso moralismo da igreja e
a hipocrisia; O misantropo revela a imagem que a corte fazia
dos jansenistas e de sua vida solitária etc.
A magistratura, ou nobreza de
toga, era constituída por setores de origem plebéia que ascenderam
socialmente através do exercício das funções administrativas. O
"pensamento trágico" é a expressão desse segmento sediado na
província, em contato com o terceiro estado, de quem recebia influência, mas
cujas idéias radicais não podia aceitar integralmente, já que sua fortuna se
devia exclusivamente às funções exercidas e à fidelidade à monarquia. Essa
situação contraditória propiciou a recusa ao mundo existente e o conseqüente
isolamento social - fatores que levaram ao desenvolvimento de uma visão trágica
do mundo (Pascal, Racine).
O romance e a reificação
Quando passa do século XVII para o mundo burguês
plenamente constituído, Goldmann procura identificar as novas homologias que se
estabelecem entre a "estrutura de troca da economia liberal" e a
manifestação literária característica do período: o romance. O instrumental
teórico de que lança mão para enfrentar esse desafio parte das reflexões de
Marx sobre o fetichismo da mercadoria e de sua generalização
para todas as esferas da vida social, tal como foi desenvolvida na teoria da reificação de
Lukács em História e consciência de classe.
A outra fonte de Goldmann é a concepção hegeliana
do romance como "epopéia do mundo burguês", retomada e desenvolvida
por Lukács, em A teoria do romance e por René Girard, em Mesonge
romantique et verité romanesque. Esses dois autores desenvolveram a
contraposição entre a epopéia clássica e o romance, mostrando esse último como
um gênero problemático em que o herói se debate com a tarefa
impossível de tentar realizar valores num mundo hostil a eles. O caráter problemático atribuído
ao romance traz uma modificação no enfoque goldmanniano: a homologia das
estruturas continua sendo a referência básica, mas, agora, ela dispensa o papel
mediador da visão do mundo das diversas classes sociais.
As duas fontes teóricas são mobilizadas por
Goldmann para estudar os impasses do romance moderno.
N'O capital de Marx, o mundo burguês é
distinguido das formas anteriores de produção pela predominância e
universalização da forma mercadoria. O processo de
mercantilização em curso dissimula o fato de que a produção é uma façanha
humana, pois, ao assumir a forma de mercadoria, os produtos do trabalho humano
ganham uma objetividade ilusória que, encobrindo as suas características sociais,
apresenta-as de forma invertida como "características materiais e
propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho"10. Assim, essas mercadorias (coisas),
parecem enfeitiçadas: esquecida sua origem humana, social, elas parecem
movimentar-se por conta própria e estabelecer relações "sociais" com
as outras mercadorias, num movimento automático que parece prescindir da
presença humana. Essa "ilusão fantasmagórica" foi chamada por Marx de
fetichismo da mercadoria. No terceiro tomo d' O capital, Marx
voltou ao tema em sua análise da "fórmula trinitária", a
"santíssima trindade" por meio da qual os economistas procuravam
explicar a origem da riqueza. Esta, segundo eles, provém de três generosas
fontes: o capital, que propicia os lucros e os juros do
capitalista; a terra, que garante a renda fundiária do proprietário
rural; o trabalho, que proporciona o salário, a renda do operário.
Com tal procedimento a-histórico, os economistas colocavam no mesmo plano um
elemento natural (a terra), com categorias sociais que só passaram a existir
efetivamente no capitalismo, além de atribuírem equivalência entre o trabalho
vivo executado pelo operariado e o trabalho morto, o trabalho objetivado que se
transformou em capital.
Ao estudar a "fórmula trinitária", Marx
observa a existência do fetichismo em todas as formações sociais em que há
produção de mercadorias, vale dizer, também nas sociedades pré-capitalistas.
Mas, no capitalismo, elas tornam-se uma'"categoria dominante". Outra
característica importante, ao lado do fetichismo, do enfeitiçamento das
mercadorias que ganham uma objetividade fantasmagórica e passam a estabelecer
relações "humanas" entre si, é o processo correlato de reificação das
relações entre os homens. Assim, de um lado, "personificação" das
coisas e, de outro, "reificação" das relações de produção (os homens
relacionam-se no mercado como portadores, suportes de mercadorias - força de
trabalho versus dinheiro, salário).
História e consciência de classe trouxe para o primeiro plano a discussão sobre reificação, dando
novos contornos ao tema. Em Marx, com vimos, a "ilusão
fantasmagórica" já se fazia presente, embrionariamente, nas formações
pré-capitalistas. Para Lukács, "a questão do fetichismo é uma questão específica da
nossa época e do capitalismo moderno"11. O tráfico mercantil já existia anteriormente,
mas no capitalismo a dominação da forma mercadoria produz um salto qualitativo,
passando a "influenciar toda a vida" da sociedade. A
mercantilização, agora, penetra "o conjunto das manifestações vitais da
sociedade", transformando-a à sua "imagem". Com isso, Lukács faz
da reificação "o problema central, estrutural da sociedade capitalista em
todas as suas manifestações vitais". O seu empenho, portanto,
estará voltado para "descobrir na estrutura da relação mercantil o
protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as formas
correspondentes de subjetividade da sociedade burguesa"12. O estudo dessas últimas formas (as
subjetivas) é a contribuição original de Lukács ao marxismo, de enorme
influência no pensamento social do século XX.
Goldmann, a seu modo, retoma as análises de Lukács
para explorar essa correlação entre objetividade e subjetividade, instaurada
pela reificação, aplicando-a ao estudo da criação cultural e literária, áreas
não trabalhadas naquele texto lukacsiano.
A reificação, entendida pelo nosso autor como um
"processo psicológico permanente", afirma-se cada vez com mais
intensidade. O romance, produto do mundo burguês, mantém uma relação de
"rigorosa homologia" com as principais fases da estrutura econômica
dessa formação social.
A primeira fase, marcada pela economia liberal,
estende-se até o início do século XX. A expressão ideológica dominante é o
liberalismo e a apologia do individualismo e da livre iniciativa. O indivíduo,
portanto, foi alçado ao centro da vida social. Esta, contudo, começava a sofrer
os efeitos perturbadores da reificação. A literatura, nesse contexto, expressa
o desconforto perante a reificação nascente. No mundo desumanizado, os
personagens se debatem em busca de um sentido para a existência. O "herói
problemático" faz a sua aparição, inicialmente em Dom Quixote e, depois,
em Stendhal, Flaubert e Goethe. Romance, aqui, é crônica social: é estudo das relações
entre os personagens problemáticos e os contextos sociais opressivos: essas
relações nos contam a tentativa de realização de valores autênticos num mundo
hostil aos valores; portanto, busca degradada de valores por personagens
desadaptados - busca condenada ao fracasso, que assinala o caráter precário e problemático da
forma romance.
Na fase seguinte, a imperialista, a formação dos
monopólios suprime a livre concorrência e a iniciativa individual, produzindo
uma modificação substantiva na ordem burguesa. Segundo Goldmann, o período
assinala "a supressão de toda a importância essencial do indivíduo e da
vida individual, no seio das estruturas econômicas e, a partir destas, no
conjunto da vida social"13. O romance, acompanhando as
metamorfoses da estrutura social, sofre uma drástica modificação formal. O
"herói problemático" sai de cena e seu lugar é ocupado pelo processo
de dissolução do personagem, tais como aparece em Kafka, Joyce, Musil e em
algumas obras do existencialismo francês (A náusea de Sartre e O
estrangeiro de Camus).
Finalmente, o período posterior à Segunda Guerra
Mundial é caracterizado pela intervenção do Estado na economia visando a
controlar as crises cíclicas do capitalismo. A nova fase, chamada de
"capitalismo de organização", inaugura um longo ciclo de estabilidade
e expansão econômica, produzindo a impressão de uma ordem auto-regulada, uma
segunda natureza, destinada a se perpetuar. A expressão literária do período é
onouveau roman, que registra a vitória definitiva da reificação, o
triunfo acachapante das coisas sobre os homens.
O novo momento, afirma Goldmann, não se exprime
totalmente em todos os romances do período. Os de Nathalie Sarraute, por
exemplo, ainda estariam presos à problemática psicológica: mesmo quando utiliza
quarenta páginas (quarenta páginas!) para descrever a maçaneta de uma porta em Planetário,
a descrição permanece subordinada às reações psicológicas dos personagens, tal
como pregava o realismo crítico em seu empenho de subsumir a descrição à
narração, à ação dos personagens. A figura central da nova fase, em que o
romance adquire uma forma homóloga às estruturas do mundo totalmente reificado,
é Robbe-Grillet. Os romances (e filmes) desse autor ressaltam a coisificação de
uma sociedade auto-regulada na qual os objetos postos em primeiro plano ganham
uma total autonomia em relação aos homens, estes reduzidos a espectadores
passivos que se limitam a contemplar a realidade. Nesse mundo imóvel, não há
lugar nem para a ação nem para a intencionalidade: a descrição detalhista e
obsessiva dos objetos reproduz, no plano literário, a fixidez das estruturas
sociais e a total desimportância dos homens.
Um bom exemplo é La jalousie14, romance que trata de um tema
tradicionalmente vinculado às inquietações subjetivas, já que para sentir ciúme
nem sempre é necessário a existência objetiva de indícios, pistas e referências
seguras. Justamente esse tema, tão recorrente na literatura, é enfocado por
Robbe-Grillet de modo nada convencional: um narrador distanciado (o marido
ciumento), como uma câmara fotográfica, retrata com um máximo de
distanciamento, frieza e indiferença, cenas que se repetem - sem deter-se em
nenhuma caracterização psicológica ou referir-se aos pensamentos e estados de
espírito dos personagens igualados às coisas. A supressão dos personagens, a
ausência de ação, a ruptura com qualquer linearidade temporal, marcam esse
livro perturbador. O único sentimento que tudo move - o ciúme do marido -
totalmente sublimado, transfigura-se em sua obsessão de registrar, sem nunca
comentar, as cenas imóveis que nos apresenta. Goldmann afirma ser esse romance
o verdadeiro protocolo da reificação de um mundo no
qual somente as coisas agem, onde o tempo humano desapareceu e onde o próprio
homem tornou-se um simples espectador reduzido ao estado mais abstrato: um olho
que registra15.
Robbe-Grillet, em seus ensaios teóricos, procurou
sempre afirmar o caráter realista de seus romances. A defesa do realismo, diz
ele, é uma constante na história literária. Cada nova escola literária,
voltou-se sempre contra as anteriores, invocando o realismo:
era a palavra de ordem dos românticos contra os
clássicos, depois a dos naturalistas contra os românticos; e os próprios
surrealistas afirmavam só se preocupar com o mundo real. [...]. Se não se
entendem é porque cada um tem idéias diferentes sobre a realidade16.
As transformações na sociedade explicariam o
surgimento e a caducidade dos modos de se entender a realidade. O nouveau
roman, segundo Robbe-Grillet, é uma tomada de consciência, uma afirmação da
impossibilidade de retratar o real seguindo o velho cânon do realismo clássico.
Aliás, ele não se preocupa mais com a verossimilhança, e nem com as tentativas
de utilizar a literatura para desvendar sentidos exteriores a ela; o foco da
narração deve ser a "significação imediata das coisas". O novo
romance, diz, "não exprime, procura. E aquilo que procura é ele
mesmo"17. Voltamos aos ensinamentos de Flaubert:
"construir alguma coisa a partir do nada, que fica em pé sem ter que se apoiar
seja no que for do mundo exterior à obra"18.
O fechamento da linguagem sobre si mesma, a ruptura
com o referente, eram idéias que aproximavam, naquele período histórico, as
teorias estruturalistas e os romances de Robbe-Grillet. A idéias postas em
circulação pelo estruturalismo são as mesmas do nouveau roman: a
ausência de historicidade, o descentramento do sujeito e a morte do homem, seja
ele o personagem (reduzido a "efeito" ou "suporte" das
estruturas - e por isso, igualado às coisas), ou o próprio autor (já que agora
quem "fala" é a escritura). Uma literatura reduzida ao fechamento da
linguagem sobre si mesma expressa, assim, o espírito de uma época hegemonizada
pelo estruturalismo em guerra contra a tradição humanista19.
Goldmann não se ateve a essa afinidade,
limitando-se a ver, com entusiasmo, na literatura de Robbe-Grillet a
manifestação de realismo adequada à era do capitalismo de organização. E por
realismo literário Goldmann entende a "criação de um mundo cuja estrutura
é análoga à estrutura essencial da realidade social"20.
Os estudos literários goldmannianos sobre o nouveau
roman, feitos a partir da teoria da reificação, marcam uma ruptura com toda
a teoria da consciência de classe que até então lhe servira de suporte. A
consciência de classe, ponto organizador das estruturas significativas,
perdeu a antiga função explicativa. O arcabouço teórico laboriosamente montado
para fundar uma sociologia da cultura esbarra na forma problemática do romance
num mundo governado pelo movimento autônomo dos objetos. A reificação venceu
definitivamente. Se a classe social não pode mais expressar-se, se sua
consciência está irremediavelmente atrofiada, quem "fala" através da
literatura?
Sujeito, classe, gênero problemáticos
A questão do sujeito da criação
cultural, desde o começo, estava marcada por uma indefinição. Apoiando-se em
Lukács, Goldmann trouxe para o primeiro plano as classes sociais e sua
consciência. Lukács, contudo, foi cauteloso ao discorrer sobre a formação das
classes. Para ele, só se pode falar na divisão da sociedade em classes com o
advento do capitalismo, momento em que a exploração econômica, libertada dos
véus da religião e da política, exerce soberana a sua dominação. É essa
visibilidade da economia que tornou possível a consciência de classe. Goldmann,
contrariamente, utiliza a teoria da consciência de classe de Lukács para
analisar as manifestações artísticas do século XVII21. E, como é impossível detectar aí a
existência de classes plenamente configuradas, Goldmann, recorre a expressões
imprecisas, como "grupos sociais específicos" e "sujeito
transindividual".
De qualquer modo, há uma diferença básica a separar
a concepção ontológica das classes sociais, presentes na obra de Marx, das
incursões sociológicas goldmannianas. Estas restringem-se à busca de um
equivalente sociológico para a produção literária. É como se as classes fossem
configurações estáticas e auto-suficientes e a criação artística um reflexo
passivo e imediato. Desse modo, pode-se falar em'"homologia das
estruturas", dispensando o papel ativo da consciência do artista e
qualquer outra mediação. Frederic Jamenson, a propósito, observa:
o que distingue a noção marxista de classe da noção
sociológica é que, para a primeira, a classe é precisamente um conceito diferencial,
que cada classe é, ao mesmo tempo, um modo de se relacionar com as outras e de
recusá-las. Quaisquer quer que sejam seus pressupostos filosóficos, a visão
sociológica é formalmente errada, na medida em que nos permite
pensar as classes individuais numa espécie de isolamento mútuo, com a separação
quase física dos grupos sociais na cidade ou no campo, ou como
"culturas" de algum modo independentes umas das outras e que se
desenvolvem de maneira autônoma: pois a noção da classe ou do grupo social
isolado é uma hipóstase exatamente como o é a noção do indivíduo solitário na
filosofia do século XVIII22.
Ao afirmar a vitória final da reificação no chamado
"capitalismo de organização", Goldmann afastou-se também das idéias
de Marx e Lukács que lhe serviram de ponto de partida para analisar as
metamorfoses do romance.
Em Marx, a autonomia das coisas não passava de uma
ilusão, se bem que ilusão necessária a uma ordem social na qual a exploração do
homem pelo homem apóia-se exclusivamente na coerção econômica, dispensando a
presença de outros fatores de legitimação (políticos, religiosos etc.),
presentes nas formações sociais anteriores. A economia política clássica foi
criticada por ser uma ideologia empenhada em duplicar essa aparência enganosa,
tomando-a como um dado natural, a-histórico e, dessa forma, elidindo a
existência do trabalho humano co-mo gênese da criação da riqueza. Lukács, a
propósito, observou que Marx, em oposição às mistificações da economia
política, promoveu'"a dissolução de todas as objetividades reificadas da
vida econômica e social em relações inter-humanas"23.
Constatando a extensão do processo de reificação na
sociedade moderna, Goldmann ateve-se à "ilusão fantasmagórica" e
tirou de cena as classes sociais e suas manifestações de consciência. No século
XVII, quando as classes ainda não estavam configuradas, a teoria lukacsiana
servia-lhe de referência; no século XX, ao contrário, quando elas já se
constituíram plenamente, Goldmann estuda o advento do nouveau roman sem
referir-se a nenhuma classe social24. Aqui, estamos em pleno mecanicismo:
literatura é reflexo imediato que dispensa a mediação das classes sociais e de
suas lutas; o próprio autor, em seu desenraizamento social, transformou-se num
mero fotógrafo de uma realidade estranha que não lhe diz respeito.
Outra questão a ser analisada é a concepção do
romance como epopéia do mundo burguês. A pertinência da tese hegeliana foi
contestada por Bakhtin para quem o romance não é a retomada da epopéia, mas a
consciência de uma realidade nova. Por isso, o romance é o único gênero não
acabado, em devir, que desconhece qualquer cânon. Ele formou-se em oposição à
epopéia, no "processo de destruição da distância épica, no processo de
familiarização cômica do mundo e do homem, no abaixamento do objeto da
representação artística ao nível de uma realidade atual, inacabada e
fluida"25.
Ao retomar a tese hegeliana, Goldmann incorporou a
idealização da epopéia e o conseqüente rebaixamento do romance. Por sua vez,
esse procedimento se fez acompanhar do culto à antiga comunidade perdida, da
totalidade harmoniosa que se estilhaçou no mundo moderno, mundo da
inautenticidade, tal como foi definido por Heidegger ou Mounier. A idealização
da epopéia e da comunidade harmoniosa, no jovem Lukács, havia sido uma datada
reação romântica à afirmação de uma sociedade capitalista em vias de
desenvolvimento e aos seus produtos culturais - uma posição regressiva,
portanto. Contra o inevitável progresso, Lukács figurava a oposição insuperável
entre o indivíduo e o mundo. Esse é o contexto do herói problemático, condenado
ao fracasso, e do próprio romance, um gênero destinado ao desaparecimento no
mundo reificado.
Goldmann, décadas depois, retomou as idéias de A
alma e as formas e de A teoria do romance sem
modificações substantivas. Ferenc Fehér, ao estudar as perspectivas do gênero
romance, criticou duramente as posições de Goldmann26, a partir das reflexões do Lukács
marxista de Escritos de Moscou27. Para Fehér, a glorificação da epopéia e
o conseqüente rebaixamento do romance é um equívoco. O romance não é um gênero
problemático, mas ambivalente. Ele é fruto da sociedade burguesa e,
como tal, sofre essa limitação; mas, essa sociedade, ao contrário do mundo
antigo, é estruturada sobre formas puramente sociais, e não mais naturais.
Os laços de sangue, as relações de parentesco, a religião etc. cederam lugar
nessa nova realidade onde tudo é visto como resultado da ação
humana. Com isso, pôde-se firmar, enfim, a consciência do gênero humano,
transcendendo todos os limites tribais, nacionais e religiosos. A nova
sociedade, apesar de todas as suas mazelas, significou um passo à frente no
processo de emancipação humana. O herói moderno, portanto, não deve ser visto
como se vivesse numa total incompatibilidade com o mundo, sem solução possível.
Ele é um ser que escolhe entre alternativas, que responde aos desafios da
realidade, ora em conformidade com os limites do mundo burguês, ora em
consonância com as necessidades do gênero humano e do processo de emancipação.
Ao contrário da epopéia, o herói do romance é alguém empenhado em "construir,
para seu uso, um universo - universo ilusório ou real"28. Enquanto o herói da epopéia cumpria um
destino que lhe foipredestinado, no romance há uma "orientação para
o futuro", que transfere a responsabilidade para as ações dos personagens.
O caráter aberto do romance é uma característica que aproxima, de certo modo,
Ferenc Fehér de Bakhtin. Nos dois autores há uma valorização do romance. Para
eles, trata-se de um gênero superior à epopéia, pois volta-se à desfetichização
do mundo. O romance moderno é um gênero que não está condenado a desaparecer,
mas, sim, em permanente transformação formal para enfrentar os novos desafios e
resgatar a humanitas ameaçada pela reificação.
Ao criticar aqueles que vêem o romance como uma
forma artística inferior condenada ao desaparecimento, Fehér volta-se contra a
"homologia das estruturas" de Goldmann:
[...] o romance é justamente não
homólogo à estrutura do sistema de mercado, porque atrás da estrutura
dominante deste, é verdade que numa medida decres-cente, emergem à superfície
os "autênticos" valores humanos, aqueles que nos dirigem para o
enriquecimento da "substância humana"29.
Vitória final da reificação e completa homologia
entre as estruturas do romance sem sujeito e a realidade depurada de todos os
seus vestígios humanos: o ponto de chegada da sociologia do romance de Goldmann
está em pleno desacordo com aquela tradição dialética e humanista reivindicada
pela melhor tradição marxista. A "lógica do conteúdo", substituída
pelo culto à forma e à busca das simetrias, assinala uma concessão às
pretensões do estruturalismo então em voga.
Talvez se possa afirmar que o nouveau roman é
um "romance de tese" e não o atestado de óbito da práxis humana
transferido para a figuração literária. O pessimismo daqueles tempos em que a
história surgia estagnada nos textos estruturalistas, embora continuasse se
movendo, envolveu o espírito inquieto de Goldmann, sempre atento para captar os
sinais emanados pela criação cultural. Mas, hoje sabemos, o nouveau
roman foi apenas um capítulo, e não dos mais brilhantes, das inúmeras
tentativas experimentais de renovação daquele gênero considerado erroneamente
como "problemático".
As "duas epistemologias" de Goldmann
A guinada teórica de Goldmann trouxe uma visível
contradição para o interior de sua obra - dividida entre a ênfase na
"consciência possível", como mediação entre a obra e a estrutura
social e a admissão do triunfo definitivo da reificação, que colocou em crise o
papel do indivíduo e das classes sociais na sociedade mercantil e, por
extensão, do personagem do romance burguês, o "herói problemático".
Um dos discípulos de Goldmann, Jacques Lenhardt constatou a contradição e a
existência de duas epistemologias em sua obra.
Após o movimento de maio de 1968, contudo, Goldmann
voltou a falar em "consciência possível", mas manteve a sua adesão ao
estruturalismo-genético. O último de seus livros, publicado em 1971, foi A
criação cultural na sociedade moderna. A saga do "herói
problemático" lukacsiano reaparece, timidamente, no enquadramento
histórico proposto.
Inicialmente, Goldmann retoma a fase do capitalismo
concorrencial, aquela em que o herói expressava a afirmação do indivíduo e de
seus valores, num momento em que a criação literária exercia um papel
abertamente crítico ao retratar os embates do personagem com um mundo que
rejeita os seus valores; depois, na fase imperialista, a literatura abandonou o
tema das possibilidades do personagem para enfocar os seus limites - a morte,
quando o autor era filiado ao existencialismo; finalmente, no capitalismo de
organização, efetivou-se o "encolhimento da consciência", e a
literatura deixou de ser o "processo de estruturação de uma consciência
coletiva", o ponto de encontro do indivíduo (o escritor) e a vida do grupo
social. A consciência agora tende a tornar-se "mero reflexo"30 e os valores transindividuais
desaparecem, bem como a angústia existencial que perseguia o
"ser-lançado-no-mundo", cujo horizonte na filosofia heideggeriana
seria a morte, a consciência da finitude como horizonte do ser. A homologia
entre a obra e a sociedade "não passa mais através da consciência de um
grupo qualquer"31. Goldmann, apoiando-se nos trabalhos de
Riesman e Habermas constata o desaparecimento da opinião pública, que para o
artista sempre havia sido "uma espécie de solo nutriente intermediário
entre a sociedade global e a criação cultural"32.
Apesar disso, duas formas de reação cultural ainda
sobreviveriam. A primeira delas, através da revolução naforma romanesca,
tal como praticada por Robbe-Grillet. O nouveau roman, portanto,
não é mais interpretado como constatação da reificação triunfante, mas sim como
revolta. Mas essa literatura, ao contrário do realismo crítico, encontra-se
impossibilitada de elaborar uma história capaz de ser percebida de modo
imediato pelo leitor, já que a realidade, sob a reificação, apresenta-se
invertida. Ao configurar a realidade sob o ângulo das coisas, a literatura
tornou-se incompreensível para o leitor comum, uma atividade acessível apenas
para os críticos. Além disso, o abandono do "herói problemático"
cedeu lugar à representação de "um universo estável, equilibrado, mas
rigorosamente a-humano"33.
A segunda forma de revolta é a do "pensamento
oposicionista" que traz o conflito social para o centro da figuração
literária. Mas, aqui, as dificuldades são também imensas: não se pode mais
escrever a história de um indivíduo, já que ele "não tem realidade
essencial", e nem se pode falar das forças de contestação, "quando
estas não existem ou estão desaparecendo"34. Tais dificuldades bloqueiam a criação
cultural na atualidade. Apenas uma exceção é lembrada: Jean Genet. Tanto ele
como Sartre, contudo, para abordar os temas da revolta, precisaram abandonar a
literatura e refugiar-se no teatro. No caso específico de Genet ocorre uma
outra modificação substancial: o personagem individual cede lugar aos
personagens coletivos. Por isso, Genet é figura solitária ao reafirmar a
dimensão do possível e a ultrapassagem da ordem. Seus primeiros textos, observa
Goldmann,
foram escritos na perspectiva de um sujeito
coletivo bem preciso: os outsiders, os pequenos ladrões, as
prostitutas e todo o mundo marginal em relação à sociedade; eles exprimem a
visão, a perspectiva deste grupo social. [...]. Todavia, este grupo não elabora
valores próprios35.
O recurso à visão do mundo e a concepção da
literatura como "estruturação das categorias mentais do grupo",
fazem, assim, suas reaparições no interior da sociedade administrada. Mas são
em número muito restrito os exemplos citados por Goldmann. No caso do Malraux
de A condição humana, trata-se de um grupo socialmente heterogêneo
que só se constituiu uma comunidade através do engajamento no processo
revolucionário - umaaposta, para usarmos uma expressão cara a Goldmann.
Em Genet, como vimos, trata-se também de um grupo heterogêneo, porém incapaz de
afirmar valores, e que não propende "para uma visão global do homem"
- o objetivo da boa literatura, segundo pensava Goldmann.
Seja como for, a relação entre obra artística e
classe social permanece num esfera indefinida e vaga, criando dificuldades para
a construção de uma sociologia da literatura.
Notas
1 Na vasta produção voltada para a
literatura destacam-se os seguintes trabalhos: Sociologia do romance,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; "Structuralisme génétique en sociologie
de la littérature", em VV. AA. Le structuralisme génétique. L'oeuvre et
l'influence de Lucien Goldmann, Paris, Denoël/ Gonthier, 1997; "Máterialisme dialectique et
histoire de la littérature"; "Le concept de structure significative
en histoire de la littérature", em Recherches dialectiques,
Paris, Gallimard, 1959; "Critique et dogmatisme dans la
création littéraire"; "La sociologie de la littérature: statut et
problèmes de méthode"; "Le subject de la création culturelle", em Marxisme
et sciences humaines, Paris, Gallimard, 1970; Structures
mentales et création culturelle, Paris, Anthropos, 1971; A criação
cultural na sociedade moderna, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972.
2 Sami Naïr,'"Forme et subjet dans la
création culturelle", em VV. AA., op. cit., pp. 52-53.
3 L. Goldmann, "Structuralisme
génétique en sociologie de la littérature", em V.V. A.A., op. cit.,
p. 21.
4 Cf. L. Goldmann, "La sociologie de la
littérature: statut et problèmes de méthode", em Marxisme et
sciences humaines, op. cit., p. 55.
5 L. Goldmann, "O método estruturalista
genético na história da literatura", em Sociologia do Romance, op.
cit.,p. 206.
7 L. Goldmann, "Critique et dogmatisme
dans la création littéraire", em Marxisme et sciences humaines,
op. cit., pp. 46-47.
8 L. Goldmann, "La sociologie de la
littérature: statut et problèmes de méthode", em Marxisme et
sciences humanaines, op. cit., p. 66.
9 Cf. Ciências humanas e filosofia, 10ª
ed., São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1986, especialmente pp. 90-93.
10 K. Marx, O capital, livro I,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 80.
11 G. Lukács, História e consciência
de classe, Porto, Publicações Escorpião, 1974, p. 98.
13 L. Goldmann, op. cit., 1967,
p. 176.
14 Há tradução brasileira: O ciúme,
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
15 Lucien Goldmann, Recherches
dialectiques, Paris, Gallimard, 1959, p. 92.
16 Alain Robbe-Grillet, Por um novo
romance, São Paulo, Documentos, 1969, p. 105.
19 François Dosse assinalou a confluência do
estruturalismo tanto com os modelos formais das ciências exatas como da
"nova sensibilidade literária". Sobre esse último ponto observou:
"reencontra-se a temática estrutural em ação nos princípios fundadores donouveau
roman: a mesma colocação do sujeito à distância, com a exclusão do
personagem romanesco clássico, o mesmo privilégio concedido ao espaço que se
desenrola através das diversas configurações das coisas localizadas pelo olhar
do romancista, o mesmo desafio em face da temporalidade em sua dialética, a
qual é substituída por um tempo suspenso, um presente estático que se dissolve
ao desvendar-se". Cf. História do estruturalismo, vol. 2, São
Paulo, Ensaio, 1994, p. 231.
20 L. Goldmann, op. cit., 1967,
p. 195.
21 Fato que não escapou ao olhar atento de
Agnes Heller: "Contrariamente a Lukács, Goldmann aplica a noção de
consciência de classe ou grupo quase exclusivamente a sociedades
precapitalistas. A objetivação analisada por ele e relacionada a diferentes
grupos sociais são aquelas das sociedades precapitalistas, e nenhuma delas
reflete primordial ou diretamente a base econômica da sociedade como um
todo". "Role of the intellectual
in Lukács and Goldmann", em Agnes Heller e Ferenc Fehér, The
Grandeur and Twilight of Radical Universalism,New Brunswick, New Jersey,
Transaction Publishers, 1991, p. 369.
22 Frederic Jamenson, Marxismo e
forma, São Paulo, Hucitec, 1985, p. 289.
23 G. Lukács, op. cit., 1974,
p. 62.
24 Um discípulo de Goldmann, Jacques
Leenhardt, estudou detidamente O ciúme de Robbe-Grillet.
Procurando ir além das idéias do mestre, empenhou-se em desvelar as bases
sociais do nouveau roman. A visão do mundo expressa no Nouveau
Roman apontaria para "os primeiros lineamentos de uma ideologia que teria
por função, como o grupo ou a fração de classe tecnocrática no plano da
produção, transcender tanto os antagnismos de classe, simbolizados pelos
pensamento socialista, como o individualismo". Cf. Jacques Leenhardt, Lectura política
de la novela, México, Siglo Veintiuno, 1975, p. 38.
25 Mikhail Bakhtin, Questões de
literatura e estética, São Paulo, Unesp/ Hucitec, 1988, p. 427.
26 Cf. Ferenc Fehér,O romance está
morrendo? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972.
27 Cf. G. Lukács, Écrits de Moscou,
Paris, Sociales, 1974. Os dois principais ensaios do livro foram traduzidos
para o português: "O romance como epopéia burguesa", na revista Ad
hominem, n. 1, São Paulo, 1999; en"Nota sobre o romance", em José
Paulo Netto (org.), Lukács, São Paulo, Ática, 1981 (Grandes
Cientistas Sociais).
30 L. Goldmann, A criação cultural
na sociedade moderna, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972, p.
66.
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