This is history... this is U2
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
As dores do mundo
"Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode-se dizer que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra". Aqui está um, digamos, axioma de Arthur Schopenhauer, com as suas "dores do mundo". O seu pessimismo, por certo, impacta as mentes ufanistas, mas não é o pessimismo uma condição do realismo? Pistas para respostas a estas e outras questões mais, no pensamento de Schopenhauer, podem ser encontradas numa versão de As Dores do Mundo disponibilizada aqui: http://www.4shared.com/get/bF52QvCw/SCHOPENHAUER_Arthut_-_Dores_do.html
O Grito, do norueguês Edvard Munch
domingo, 30 de outubro de 2011
I still haven't found what I'm looking for (U2)
Well, it was a long time ago. But today it is the same thing. The way, the way... U2
Um mundo de tanta injustiça
José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, falecido em 2010, continuará, por certo, a ser um maître à penser do mundo de língua portuguesa. Não só por sua produção literária, mas por textos como o que a seguir reproduzo.
José Saramago
Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira.
Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira.
Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
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* Texto lido no ato de encerramento do Fórum Social Mundial de 2002, em Porto Alegre.
sábado, 29 de outubro de 2011
Relações livres
Há já um bom tempo, acompanho os trabalhos de François de Singly, sociólogo francês com particular contribuição nos temas da sociologia da educação e da família. O seu sociologie de la famille contemporaine (Paris, Nathan, 1993; A. Colin, 2004) tem-se constituído numa referência central nos estudos de temas como casamento e novas formas de relações. Pelas mãos de Clarice Ehlres Peixoto, e publicado pela FGV, temos o livro traduzido para português (brasileiro). Abaixo, reproduzo uma resenha da obra, realizada pela Profa. Carolina M. de Souza (Universidade Estadual de Feira de Santana), publicada em Cad. CRH, vol 21, n. 54.
Família na contemporaneidade: mudanças e permanências
Carolina M. B. de Souza
Ao longo das últimas décadas o debate sobre a crise da família, no Ocidente, foi propiciado pelos efeitos da generalizada aceitação social do divórcio, do declínio da instituição do casamento e da baixa taxa de fecundidade. Esses acontecimentos tanto indicaram a compreensão de que se delineara o enfraquecimento da família, quanto sugeriram a análise do surgimento de novos modelos familiares, caracterizados, por sua vez, pelas mudanças nas relações entre os sexos e as gerações, tais como: controle mais intenso da natalidade, autonomia relativa da sexualidade referente à esfera conjugal (posto que o exercício da atividade sexual deixa de estar circunscrito à esfera do matrimônio), inserção massiva da mulher no mercado de trabalho, questionamento da autoridade paternal, atenção ao desenvolvimento das necessidades infantis e dos idosos, entre outras.
Essa segunda vertente de entendimento é a perspectiva condutora das análises de Singly (2007) emSociologia da família contemporânea, que aborda a individualização das relações familiares, especificamente na França, estabelecendo associações entre as mudanças da modernidade e seus efeitos na família. O autor, que dirige oCentre d'Études sur les Liens Sociaux (Centro de Estudos sobre os Laços Sociais), em suas pesquisas, focaliza os comportamentos interpessoais no âmbito conjugal, procurando demonstrar que, nas sociedades contemporâneas ocidentais, os indivíduos não se parecem com aqueles das gerações precedentes, devido ao surgimento do indivíduo original e autônomo, resultante da imposição dessas sociedades, as quais fazem vigorar razões tanto ideológicas quanto objetivas. Salienta que a procura de si não traduz, primordialmente, narcisismo; solicita, contrariamente, destaque do olhar dos outros. Considera a dimensão relacional presente no processo constitutivo da identidade pessoal dos indivíduos, em que os outros significativos são, em geral e prioritariamente, o cônjuge ou o parceiro para um homem ou uma mulher, os pais para os filhos e reciprocamente.
O livro compõe-se de três partes. Singly visa a elucidar a família contemporânea, demonstrando sua dependência em relação ao Estado (parte I) e sua independência quanto aos grupos de parentesco (parte II) e à família (parte III). Os argumentos apresentados em seu desenrolar examinam algumas características: a família contemporânea é relacional, é privada e pública, é individualista e precisa de horizonte intergeracional - eixos norteadores através dos quais explicita suas idéias.
A característica referente ao duplo movimento da família contemporânea de ser privada e, ao mesmo tempo, pública, é destacada pelo autor, que apreende a família como um espaço no qual os indivíduos acreditam proteger a sua individualidade, ao tempo em que sofrem intervenção do Estado mediante o apoio e a regulação sobre as relações dos seus componentes - como exemplo, refere-se à criação de leis que objetivam limitar o direito da punição paternal.
Os argumentos apresentados no desenvolvimento do livro remetem à idéia central de Singly - a família contemporânea se define mais pelas relações internas travadas no cerne familiar e menos como instituição. O ponto em comum existente entre a família antiga e a família moderna, na compreensão do autor, consiste em contribuir para a função da reprodução biológica e social da sociedade, e ambas procuram manter e melhorar a posição da família no espaço social de uma geração a outra. O autor, que formula uma abordagem sociológica da percepção de como se expressam sentimentos e emoções no âmbito da família durante o século XX, destaca a predominância, a partir da segunda metade desse século, de relações menos hierarquizadas, quer entre o casal, quer entre pais e filhos - ambas sob o olhar atento dos agentes do Estado (demógrafos, psicólogos, assistentes sociais e sociólogos). Assinala, todavia, que os conflitos não deixam de existir no contexto familiar.
"A dependência da família em relação ao Estado" é o título da Parte I de Sociologia da Família Contemporânea, em que Singly examina detalhadamente as relações travadas entre Estado, escola e família. Nesse sentido, reflete sobre análises de Parsons, contrapondo-se à sua idéia, predominante na sociedade norte-americana nos anos 1950, de que toda responsabilidade assumida pela instituição escolar é retirada da família. Na tentativa de elucidar os elos existentes entre a família e a escola, Singly ratifica algumas concepções de Àries (1981), como aquela de que as preocupações educativas são pilares norteadores da família moderna, e de Bourdieu (1996), ao salientar a predominância do capital escolar nas sociedades contemporâneas.
Um esboço da tendência geral dos processos de formação familiar pelas novas gerações é traçado por Singly na segunda parte da obra, ressaltando o desuso da recorrência aos casamentos arranjados e questionando se as alianças são seladas apenas pelo amor e pelo desinteresse. O autor utiliza, então, o conceito de capital cultural formulado por Bourdieu para apreender algumas mediações que tornam possível o amor desinteressado e a defesa dos interesses sociais - o corpo e o caráter revelam os capitais escolares e sociais.
Singly demarca que o período contemporâneo se caracteriza pelo maior domínio do destino individual e familiar, devido a um sistema de valores que aprova a autonomia e a recusa dos indivíduos em seguirem costumes referentes ao desempenho dos papéis sociais de marido e esposa, das gerações passadas. Consequentemente, ocorre o duplo movimento - recusar a instituição do casamento e criticar a divisão do trabalho entre os sexos. Menciona, como exemplo, as condições objetivas que permitem o controle desse domínio individual, especialmente as técnicas modernas de controle dos nascimentos.
Considera que as transformações da família têm uma grande coerência, embora deem a impressão de certa desordem e de uma incerteza, que poderiam preocupar. Singly destaca que a história da família contemporânea pode ser dividida em dois períodos. Assinala a evidência verificada em todos os meios sociais, durante meio século (1918-1968), do fato de o homem trabalhar fora para ganhar o dinheiro da família e de a mulher ficar em casa para se ocupar, o melhor possível, dos filhos. Essa tipologia familiar é designada, pelo autor, de família moderna 1, ou da primeira modernidade - está centrada no grupo, e os adultos estão a serviço da família e, principalmente, das crianças. A partir dos anos 1960, quando a modernidade na Europa muda de direção e entra no período denominado por Giddens (1991) de "modernidade avançada", a família atribui peso ao processo de individualização. Singly qualifica essa segunda tipologia familiar de família moderna 2.
A diversidade das formas familiares e a menor estabilidade da vida conjugal não devem induzir a um diagnóstico errôneo, na elucidação de Singly, que constata, em suas pesquisas, o ideal da vida conjugal para um grande número de pessoas. Contrariamente ao celibato ou à vida solitária, a vida conjugal é mais atrativa, pois assegura a impressão de que não se é somente um personagem público ou um indivíduo que deve viver, sobretudo, segundo a lógica do interesse e das relações de competição que dominam a esfera do trabalho.
O triplo movimento da segunda fase da família contemporânea, do ponto de vista das relações entre os sexos, é assinalado por Singly: diminuição sensível da dependência objetiva da mulher, manutenção dos investimentos profissionais e domésticos diferenciados segundo o sexo e fuga dos papéis sexuais que surgiram com o compromisso conjugal.
No entender do autor, o movimento de individualização que perpassa as relações conjugais encontra-se inacabado, indicando a permanência das desigualdades do trabalho doméstico, devido à atribuição desse trabalho às mulheres, bem como a exclusão dos homossexuais do casamento. Considera que as sociedades ocidentais não seguem nem seguirão um processo similar de etapas, o que não significa que elas estejam ao largo da modernidade - entendida sob a perspectiva da individualização.
Reflete, enfim, que, tal como a modernidade, a família se define por um futuro incerto, pois, embora os entraves e constrangimentos sociais estejam presentes, os indivíduos constroem suas histórias.
REFERÊNCIAS
ÀRIES, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. 234p. [ Links ]
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996. 224p. [ Links ]
CICHELLI, Vincenzo; PEIXOTO, Clarice Ehlers; SINGLY, François de. Família e individualização. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. 200p. [ Links ]
GIDDENS, Anthony. Conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. Universidade Federal Paulista, 1991. 177p. [ Links ]
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Peso e leveza
Há textos que escrevemos carregados pelo lugar onde nos encontramos. O que abaixo segue, por exemplo, escrevi-o na cidade do Porto, à beira do mar... na Praia da Foz do Douro, num café sugestivamente chamado homem do leme.
EXISTÊNCIA E QUOTIDIANO: PESO E LEVEZA
Por Ivonaldo Leite
Ecoando Nietszche, disse Milan Kundera, em A Insustentável Leveza do Ser, que, no mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade. A ideia do eterno retorno é o fardo mais pesado.
Se assim o é, então sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza, afirma Kundera. O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos ao solo. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida, mais real e verdadeira ela é. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre. Por um percurso mais musical, o brasileiro Belchior também chegou a algo semelhante: “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e o meu delírio é a experiência com coisas reais”.
O peso do quotidiano. Liberdade versus determinismo. O padrão de comportamento esperado, os factos sociais, dir-se-á em linguagem sociológica. Efemeridade e evanescência contrastando com a possibilidade de permanência. A fulgacidade de cada momento não elimina a possibilidade de ele ser captado e guardado. Mas, e a leveza? Aqui o que importa é entregar-se à práxis. O que não significa apenas uma experiência que serve de base para toda a vida teórica e prática do ser humano, mas algo que emerge do próprio questionamento da vida. A experiência originária é a experiência de constituição, onde o ser humano surge como ser contrário do ente simplesmente dado. Eis a práxis: a forma própria de um ente que cria o seu próprio ser a partir da sua realidade primeira, buscando autosatisfazer-se.
O ser humano é um ser que se experimenta a si próprio como um ser a se construir, histórico, e a história é o espaço e o tempo do possível. Para se realizar, ele precisa sair de si, pois, em si, é necessidade e carência. Um ser sofredor. Que por ser inquieto, tem uma necessidade permanente de vida. O sair de si, contudo, não implica entender o espaço como conceito empírico abstraído de experiências externas e nem o tempo como conceito abstraído de qualquer experiência.
À maneira kantiana, pode dizer-se que a representação do espaço já tem que estar subjacente para certas sensações se referirem a “algo fora de mim” (isto é, a algo num lugar do espaço diverso daquele em que me encontro), e igualmente para “eu poder representá-las como fora de mim” e uma ao lado da outra e, por conseguinte, não simplesmente como diferentes, mas como situadas em lugares diferentes. Assim, a representação do espaço não pode ser tomada emprestada, mediante a experiência, das relações do fenómeno externo, mas esta própria experiência externa é primeiramente possível só mediante a referida representação. O espaço é condição da possibilidade dos fenómenos, e não uma determinação dependente destes; é uma representação a priori que subjaz necessariamente os fenómenos externos. Por sua vez, o tempo é uma representação necessária a todas as intuições. No que concerne aos fenómenos em geral, não se pode suprimir o próprio tempo, apesar de se poder, do tempo, eliminar os fenómenos. O tempo é um dado a priori. Só nele é possível toda a realidade dos fenómenos. Estes podem, todos em conjunto, desaparecer, mas o tempo – como condição da sua possibilidade – não pode ser suprimido.
Enfim, apagam-se os acontecimentos (ou tenta-se), mas o tempo em que eles tiveram lugar não desaparece. E assim ficam as sombras do que ocorreu. “Nas paredes da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais”, canta o Belchior. Sombras a perambularem pelo quotidiano, a perpassar a existência. No horizonte, peso e leveza.
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
Romance: o símbolo esvaziado
"O romance é a forma artística que corresponde a fratura entre o sujeito e o mundo" - isto é o que afirma Georgy Lukács, em seu clássico Teoria do Romance. Uma pertinente incursão na obra foi realizada pela Professora Arlenice Almeida da Silva (UNESP). Está disponível aqui: http://www.scielo.br/pdf/trans/v29n1/30283.pdf
Mais um dos meus textos publicados na antiga Revista Portuguesa ZonaNon, reproduzido no Brasil na Revista Espaço Livre, que esteve sendo editada por Nildo Viana. A versão abaixo, contudo, diferencia-se da anterior.
DA INQUIETAÇÃO À MELANCOLIA: RISCO DE VIDA OU A INTROSPECÇÃO DE WALTER BENJAMIN
Por Ivonaldo Leite
“Quando uma luz se apaga, fica mais escuro do que se jamais ela tivesse brilhado”. Com esta frase, tomada de empréstimo à peça shakespereana Ricardo III, o romancista norte-americano John Steinbeck quis marcar o tom de desencanto de uma época. O “inverno da nossa desesperança”, disse ele. Desencanto com o tempo do declínio ético, e onde a felicidade é apartada da simplicidade, pelo que raramente é achada nos encontros e nas surpresas da vida cotidiana.
Qualquer coisa que, de alguma forma, nos faz lembrar o personagem de Al Pacino em scent of a woman (numa tradução directa, “perfume de mulher”). Entre a luz e a escuridão. No papel de um cego, Al Pacino transita entre o mundo pretérito e o presente, vivendo este pela imaginação que, sabemos, produz desejos precisamente por os desejos resultarem da curiosidade e da intrínseca necessidade humana de saciar a subjetividade. Já tendo um mundo vivido, o tempo a viver de Frank Slade – personagem interpretado por Al Pacino - é breve. Brevidade à qual ele procura lhe atribuir sentido a partir da amizade com um jovem que, nesta condição, ainda tem um mundo a viver e, por conseguinte, tem no seu horizonte a busca de significado para a existência. “Num momento, vive-se uma vida”. Com esta frase, Slade atenuou a reacção da jovem que ficou surpreendida com o convite que ele lhe dirigiu para dançar, alegando que o seu noivo estava a chegar. Temporalidade que, mesmo sendo breve, não finda.
Mas, as luzes apagadas. No mundo do conhecimento, há, contudo, aquelas que, mesmo após o seu crepúsculo, continuam a iluminar caminhos. Esse é o caso do pensador social judaico-alemão Walter Benjamin.
Pelas sendas de um pensamento trágico e dilacerado, procurou ele incansavelmente uma via de salvação para o seu próximo. Era um dos melhores de nós. Um irmão, talvez. Não estando este ensaio ao abrigo do universo teológico-metafísico, possivelmente não seja aqui o sítio para categorizar esta perturbadora impressão. Todavia, enquanto teço o texto, dou uma vista de olhos nalgumas fotografias suas, e então sou tomado por um profundo sentimento de incógnita e mistério para sempre encerrados neste mundo. Benjamin viveu e amou, teve muitos sonhos e se viu perseguido pela lacinante dor, pela tristeza, angústia, enfim, os olhos secos. Até tudo ter fim na fuga apressada.
Foi assim. Num dia qualquer de 1940, algures no lado espanhol da fronteira entre França e Espanha, um grupo de intelectuais alemães fugia da Gestapo, a terrível polícia nazista. Entre eles, estava Walter Benjamin. Ao ver-se impedido de seguir o seu percurso, num misto de desespero (diante da possibilidade de cair nas garras dos militares hitleristas) e de negação a submeter à tortura, ele não resistiu a tensão psicológica e lançou mão do acto que tanto pode ser considerado um absurdo como também é passível de racionalização: o suicídio. Foi deste modo que Benjamin pôs termo à sua própria vida e, ao mesmo tempo, com a sua atitude, mostrou quão inesperados são os abismos dessa coisa chamada condição humana.
Como bem nos diz o seu contemporâneo Adorno Horkheimer, Benjamin era uma pessoa de personalidade enigmática, com uma conduta que oscilava entre a firmeza quase rígida e a polidez oriental. Uma maneira de ser que aparentava mais o temperamento vibrante dum artista, do que a frieza do cientista, e ele, todavia, não rejeitava a racionalidade. Seu pensamento parecia nascer dum impulso de natureza artística que, transformado em teoria, liberta-se da aparência e anuncia a promessa da felicidade. E, entretanto, como relatou o seu amigo Gerschom Scholem, após o conhecer na Primavera de 1915, metia impressão a profunda sensação de melancolia de que ele parecia estar permanentemente possuído. Assim era Walter Benjamin. Não menos real para mim é a sua imagem de poeta e místico heresiarca.
De forma sintética, penso que não se pode senão destacar que o que motivava Benjamin era, por exemplo, o impulso para romper com a lógica que aborda limitativamente o universal e o individual. Dos escritos benjaminianos, há o soar de um pensamento que recolhe as promessas dos contos infantis, em vez de as recusar por conta de uma presumível e depreciativa maturidade do adulto. Isto é assumido tão literalmente que torna até perceptível o pleno cumprimento real do conhecimento. E desde o início a sua topografia filosófica diz-nos o que não assimila: a renúncia. O que nos faz sentir como a criança que vislumbra, pelas frestas da porta, as luzes da árvore de Natal. Mas não estamos diante de um pensamento surgido do nada. Não. Ele é uma oferta a partir da plenitude. É daí que advém a sua interpretação do quadro de Paul Klee, que, denunciando a destruição causada pelo progresso, serve de inspiração à ecologia social.
Diz a interpretação benjaminiana: “há um quadro de Klee chamado Angelus Novus. Representa um anjo que parece a ponto de afastar-se para longe daquilo a que está olhando fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca aberta, suas asas estendidas. O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. Onde diante de nós aparece um encadeamento de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que vai empilhando incessantemente escombros sobre escombros, lançando-os diante de seus pés. O anjo bem que gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o que foi feito em pedaços. Mas uma tempestade sopra e prende suas asas com tal força, que o anjo já não as pode fechar. A tempestade irresistivelmente o impele ao futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce até o céu diante dele. Esta tempestade é aquilo que nós chamamos progresso”.
Dessa interpretação, pode-se inferir que os problemas ambientais, os prenúncios da crise ecológica que actualmente vivemos, são decorrências do modo de desenvolvimento prevalecente no mundo, onde a acumulação dos grandes grupos econômicos, a complacência de governos e o consumismo parvo geram o “progresso” destrutivo. “Progresso” que, no entanto, extasia, acomoda, mas não tem potencialidades para efetivar a realização dos sentidos da ontologia humana, e, como prova disso, pode-se mencionar o aumento das chamadas “doenças da alma” nas sociedades modernas.
No mundo confuso e desequilibrado em que vivemos, a herança benjaminiana impulsiona-nos à busca da satisfação e da realização sócio-emotiva, as quais a adaptação e a auto-conservação nos impedem de ter. Impulsiona-nos ao prazer em que se articulam os sentidos e o espírito, na convicção de que o nome das coisas e dos seres humanos é o protótipo de toda a esperança. Lições para uma ecologia social da felicidade.
Da luz que se “apaga” aos raios inspiradores que continua a emitir. A iluminar as frestas do tempo. Walter Benjamin continua a nos falar. E nisso confirma a perspectiva hegeliana sobre a morte, pois, conforme Hegel, por um lado, ela é o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e age numa sociedade universal, e, por outro lado, é a negatividade natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o tempo absoluto do indivíduo que morre. A morte faz o indivíduo sair da universalidade quieta, da negatividade abstracta. À esta universalidade quieta, o morto é remetido como originalidade natural, como ente que, assim sendo, deixa de ser uma diferença, deixa de ser uma alteridade e um outro.
Assim é a morte. Ela nos proporciona uma pergunta sem resposta: "Por quê?". Por não termos resposta, emerge uma dor profunda e, diante desta instância incontrolável, a melancolia que se nos apodera, ora nos oprime na sensação do desaparecimento total e ora nos indaga sobre o significado e a validade das vidas individuais. Se a sensação vazia do desaparecimento que sentimos, diante do túmulo, nos provoca o luto e nos aprisiona à passividade, é na indagação sobre o significado e a validade das vidas individuais onde podemos encontrar o caminho que nos conduz a superar as reflexões sentimentais, para devolvermo-nos, a nós mesmos, ao mundo activo da história.
Somente com o nosso retorno ao mundo activo da história dos seres humanos vivos, podemos nos reconciliar com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida, que nos nega consolo, que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido. Porém, não como desaparecido, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de sua actividade (no que ele fez), que se apresenta como legado e como exemplo a inspirar ações no mundo dos vivos, pois o que sobrevive é a produção consciente e socialmente significativa do indivíduo. Ela é eterna-mente, ou seja, ficará para sempre na mente das outras pessoas.
Isso é o que se passa com Walter Benjamin, inspirando, a meu ver, a ecologia social. Por certo, ele desagradou “clubes intelectuais” nos “arrumados” em que estes são especialistas, e ele se sentia atraído pela academia com a ironia análoga à de Franz Kafka na sua atração pelas empresas de seguro. Super-talento, foi-lhe uma divisa endereçada, e um bonzo existencial o condenou “por não se enquadrar em padrões”, como se o sofrimento de quem é possuído pelo espírito transbordante tivesse de condenar a sua obra à morte apenas pelo facto de perturbar a simples relação tu-eu. Contudo, e talvez possa até parecer paradoxal, Benjamin evitava a violência com as palavras. Se despertava insatisfação era porque, sem querer, desprovido de qualquer intencionalidade polêmica, o seu olhar introspectivo, oscilando da inquietação à melancolia, mostrava sempre o mundo usual no eclipse que é a sua luz permanente.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Educação: sobre aprovação e reprovação
Ex-Presidente da CAPES, Ph.D em Economia, tendo sido Professor, no Brasil, na Universidade de Brasília e na PUC-Rio, e, no exterior, na Universidade de Chicago, na Universidade de Genebra e na Universidade de Borgonha, Cláudio de Moura Castro é, por certo, um acadêmico de referência, ao mesmo tempo, também, autor de abordagens polêmicas. Não necessariamente concordo com (todas) elas. Mas vale a pena conhecê-las. Abaixo, reproduzo um artigo seu sobre aprovação e reprovação estudantil.
Aprovar quem não aprendeu?
Claudio de Moura Castro
Para chamar atenção sobre pesquisas irrelevantes, um bando de gaiatos de Harvard criou o prêmio Ignobel (um brasileiro já foi agraciado, por estudar o impacto dos tatus na arqueologia). De fato, esse é um problema clássico da academia. Como às vezes aparecem descobertas de valor na enxurrada de idéias que parecem bobas, todos se acham no direito de defender as suas. Diante disso, é reconfortante encontrar pesquisas colimando assuntos palpitantes e com resultados precisos e definitivos. Esse é o caso da tese de Luciana Luz, orientada pelo professor Rios Neto (UFMG), que examinou um problema fundamental: no fim do ano, o que fazer com um aluno que não aprendeu o suficiente? Dar bomba, para que repita o ano? Ou deixá-lo passar? O uso de dados longitudinais permitiu grande precisão na análise. A autora tratou os números com cuidado e sofisticação estatística. O cuidado aumenta a confiança nos resultados. Mas a sofisticação impossibilita que se faça aqui uma explicação acessível da análise estatística.
Contudo, a interpretação das conclusões é clara. A tese permite comparar um aluno que repetiu o ano por não saber a matéria com outro que foi aprovado em condições similares. Os números mostram com meridiana precisão: um ano depois, os repetentes aprenderam menos do que alunos aprovados sem saber o bastante. Tudo o que se diga sobre o assunto não pode ignorar o significado desses dados, que, aliás, corroboram o que foi encontrado pelo professor Naércio Menezes e por pesquisadores de outros países.
Ao que parece, para os repetentes, é a mesma chatice do ano anterior, somada à frustração e à auto-estima chamuscada. Andemos mais além da tese. Não reprovando, a nação economiza recursos, pois, com a repetência, o estado paga a conta duas vezes. E, como sabemos por meio de muitos estudos, os repetentes correm muito mais risco de uma evasão futura. Logo, ganha-se de três lados. Como a "pedagogia da reprovação" não funciona, a "promoção automática" é um mal menor.
A história não acaba aqui. A angústia de decidir se devemos aprovar quem não sabe torna-se assunto secundário, diante da constatação de que o aluno não aprendeu. Esse é o drama mais brutal do ensino brasileiro. Por isso, a discussão está fora de foco. Precisamos fazer com que os alunos aprendam. De resto, não faltam idéias nos países onde a educação dá certo. Por exemplo, na Finlândia – e mesmo no Uruguai – há professores cuja tarefa é dar uma atenção especial aos mais fracos. Por que se digladiam todos contra a "promoção automática", quando a verdadeira chaga é o fraco aprendizado? De fato, há uma razão. Grosso modo, três quartos da população brasileira é definida como de "classe baixa". Dada essa enorme participação, o que é verdade para seus membros é verdade para o Brasil como um todo. Mas há os 20% de classe média e alta. Para esses pimpolhos, a situação é diferente. Famílias de classe baixa são fatalistas, assistem passivamente à reprovação dos seus filhos. Se não aprenderam a lição, é porque "sua cabeça não dá". Já na classe média a regra é outra. Levou bomba? Antes zunia a vara de marmelo, depois veio o confisco da bola, da bicicleta ou do iPhone. Santo remédio!
Reina a "pedagogia do medo da repetência". Essa é a arma dos pais para que o filho se mantenha por longo tempo colado à cadeira e com os olhos no livro. Cá entre nós, eu estudava por medo da bomba. É também a ameaça da bomba que permite aos professores forçar os alunos a estudar. Sem ela, sentem-se impotentes. Portanto, estamos diante de um dilema. O medo da repetência leva a minoria de classe média a estudar, para evitar os castigos. Pode não ser a pedagogia ideal, mas ruim não é. Já nas famílias mais modestas não há medo nem pressão para que os filhos estudem. O que há são as bombas caindo do céu e criando repetência abundante e disfuncional. Pouquíssimos países no mundo têm níveis tão altos de repetência como o nosso. Ao contrário de outros dilemas, esse tem solução clara, ainda que difícil. Basta melhorar a qualidade da educação para todos.
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Fonte: www.claudiomouracastro.com.br/